A voz das mulheres no traço de Laura Athayde
Entrevista com a quadrinista amazonense autora da série “Aconteceu comigo” e vencedora do Troféu HQMix em 2019
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Entrevista com a quadrinista amazonense autora da série “Aconteceu comigo” e vencedora do Troféu HQMix em 2019
Na lista de premiados do 31º Troféu HQMIX está a quadrinista amazonense Laura Athayde. Ela é vencedora na categoria Publicação Independente de Autor com Histórias tristes e piadas ruins. O livro é fruto de cinco anos de trabalho publicando quadrinhos na internet e reúne um apanhado de seu trabalho autoral.
Na internet, Laura é conhecida por sua série de tirinhas Aconteceu Comigo, publicada regularmente em seu Instagram, @ltdathayde. Nela, seus quadrinhos dão voz a relatos de mulheres e minorias que querem tornar suas histórias visíveis e compartilhadas.
A seguir, a própria Laura conta um pouco mais sobre esse projeto e como tem sido trabalhar com histórias tão delicadas.
A primeira HQ da série surgiu baseada nas histórias que minha irmã mais nova me contava. Ela cursava Ciências da Computação na faculdade e diariamente escutava dos colegas e professores que não devia estar ali, que mulheres não pertenciam a cursos de exatas. Isso a desanimava muito e ela chegou a pensar em desistir da área. Me ocorreu que muitas garotas provavelmente passavam pelo mesmo e eu queria que elas soubessem que não deviam acreditar nas coisas negativas que ouviam. Essas ideias de que certas atividades ou espaços não devem ser ocupados por mulheres são resquícios do machismo que, eventualmente, se insistirmos e lutarmos por igualdade todos os dias, vão desaparecer. Por isso, comecei a desenhar uma historinha curta baseada nas coisas que ela me contou e terminando em uma nota otimista, estimulando as meninas a não desistirem, e pensei em postar no Facebook, onde todos poderiam ler e compartilhar.
Durante esse processo, me ocorreu que desconhecemos muitos aspectos sobre as vidas de outras mulheres. Eu, como mulher branca, jamais sofri racismo, por exemplo. Mas eu ouvia as minhas amigas negras falando sobre isso, então eu sei que ele existe e determina muitas vivências que elas terão e eu não. Também sei que muita gente acha que racismo e machismo são, na verdade, vitimização, mimimi. Mas, assim como eu descobri um novo aspecto da realidade ao escutar a minha irmã contando sobre as experiências dela, imaginei que essas pessoas poderiam compreender melhor as demandas das minorias se conhecessem histórias reais contadas pelas próprias pessoas que sofreram essas opressões.
Pensando nisso, decidi postar a HQ sobre a minha irmã e abrir meu inbox pra receber outros relatos de mulheres que quisessem compartilhar relatos sobre machismo, racismo, capacitismo e outros preconceitos que interferem em suas vidas e que poderiam desaparecer se a sociedade, como um todo, trabalhar pra isso.
O meu objetivo imediato era compartilhar histórias reais para que diversas pessoas as conhecessem e pudessem, talvez, se tornar mais empáticas em relação a vivências diversas. De maneira mais ampla, eu espero que isso resulte em um maior respeito por minorias oprimidas e, quem sabe, em uma sociedade mais justa e solidária.
Como comentei antes, quando postei a primeira história da série, eu abri meu inbox do Facebook pra quem quisesse compartilhar seus relatos. Na terceira postagem da série, com a quantidade de relatos crescendo cada vez mais, compreendi que não ia conseguir mantê-los organizados desse jeito e abri um formulário anônimo do Google. Imaginei que isso também abriria as portas para mulheres que não gostariam de ser identificadas, mas que ainda assim queriam se ver representadas na série e acompanhar as reações nas redes sociais de uma distância segura. A partir disso, o formulário anônimo tem sido a minha principal fonte de relatos. Mas, quando alguém que conheço me conta uma história que acho interessante ou quando quero tratar de um tema específico que ainda não apareceu na série, costumo pedir diretamente às pessoas.
As reações são bastante diversas. Tem muita identificação e apoio, especialmente por parte das mulheres. Mas, quando abordo temas mais polêmicos (porém indispensáveis) como aborto, recebo muitos comentários indignados, grosseiros e até agressivos por parte de homens e mulheres. Atualmente posto a série em várias redes sociais e acompanho as respostas principalmente no Instagram, que é onde tem uma visibilidade maior, e é bem interessante ver como as leitoras respondem a esses comentários, gerando discussões muito ricas. A parte mais legal de tocar esse projeto nas redes sociais é justamente poder contar com essa rede de apoio e troca, e eu acabo aprendendo muito também!
Não consigo escolher um só. Eu já chorei várias vezes adaptando relatos pra HQ. Tem algumas coisas que demorei muito pra tomar coragem de abordar, como o próprio tema do aborto, tanto por saber que haveria reações violentas como por acreditar que deveria tratar esse assunto com muita sensibilidade. Mas eu sabia que essa discussão, em tempos de misoginia e religiosidade impregnados na política, era urgente e importantíssima, então eu precisava fazer a minha parte e falar sobre isso. Outra tirinha que me tocou muito e que exigiu bastante cuidado na criação do roteiro e das imagens foi a que envolve estupro e culpabilização da vítima.
Entre 2015 e 2017 eu fiz cerca de 20 histórias pra série. Como é um trabalho demorado que eu fazia no meu tempo livre, entre faculdade e emprego, o projeto acabava ficando meio de lado e sofrendo vários hiatos. Em 2017 eu o inscrevi no edital Rumos do Itaú Cultural e, pra minha enorme surpresa, passei! Desde então, eu venho recebendo apoio financeiro para continuar desenvolvendo as histórias e a previsão é de concluir a série com 70 HQs em novembro deste ano. A partir daí, elas serão compiladas em um livro e lançadas pelo Brasil todo!
A série também está em exposição no espaço do Itaú Cultural em São Paulo até dia 03.11.2019. A entrada é gratuita e a obra é interativa, além de estar acompanhada de várias outras exposições de outros ganhadores do edital. Eu recomendo muito a visita️. <3