As HQs de Chantal Montellier
Texto da pesquisadora Natania Nogueira apresenta o trabalho de Chantal Montellier, um dos maiores nomes dos quadrinhos franceses
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Texto da pesquisadora Natania Nogueira apresenta o trabalho de Chantal Montellier, um dos maiores nomes dos quadrinhos franceses
Se você não conhece a quadrinista francesa Chantal Montellier, vou tentar abarcar toda sua importância nesse pequeno texto a partir da introdução de sua HQ Social Fiction (Comix Zone, 2022), que não por acaso, foi escrita por uma das maiores pesquisadoras de quadrinhos femininos do Brasil, a Natania Nogueira.
Natania não foi escolhida à toa, ela já esteve com a autora algumas vezes e é uma das responsáveis por conhecermos a quadrinista aqui no Brasil. E, para entendermos o contexto da produção de quadrinhos na França, é impossível não falarmos sobre a Chantal.
Chantal Montellier é uma autora francesa que polariza opiniões. Seu temperamento forte, sua resiliência e engajamento político fazem dela uma figura no mínimo controversa. Pioneira nos quadrinhos franceses, Chantal Montellier se considera uma ativista da arte, uma militante da imaginação, e acredita que a partir dela o artista pode promover mudanças, despertar questionamentos e levar a outras pessoas visões diferentes de mundo que podem ser reinterpretadas e reconstruídas a partir da leitura. É uma mulher que vive por seus ideais e procura expressá-los através de suas histórias em quadrinhos. Com uma carreira de meio século, e mais de 30 obras publicadas, Chantal Montellier já deixou sua marca na cena cultural da França e em outros países onde sua obra foi traduzida e publicada.
Chantal estará na Bienal de Curitiba
A obra de Montellier é um verdadeiro testemunho da história da França e da própria história da autora. Enquanto profissional, ela se manteve firme em suas convicções, enfrentando a censura, denunciando a violência, o abuso de poder e a alienação de uma sociedade na qual a conquista e manutenção de direitos é uma luta constante. Enquanto mulher e indivíduo, acumulou experiências que resultaram em uma obra rica e impactante. São quadrinhos que podem reunir tanto um humor ácido quanto uma realidade bruta. Com Chantal Montellier, fazer quadrinhos se torna um ato político, de várias maneiras. Nascida em 1947, Montellier teve uma infância difícil. Sua mãe desenvolveu epilepsia depois de um aborto causado por uso de analgésicos. Como tinha ataques frequentes não podia cuidar da filha, que foi praticamente criada pela avó materna. A autora conta que a mãe tentou cometer suicídio várias vezes. Ao completar 15 anos foi abandonada pelo pai e ficou sobre a tutela de seus tios maternos. Segundo ela, esta é a “dimensão trágica” presente em sua obra.
Podemos considerar 1971 como o ano do seu début nas artes gráficas, quando foi convidada para ser colaboradora no jornal sindical Le Combat syndicaliste. A partir daí, se tornou uma das primeiras mulheres a publicar charges políticas na França, tendo sido convidada a produzir para diversos outros periódicos, como o Charlie, em 19745. Sua participação na imprensa política foi marcante nas décadas de 1970 e 1980, contribuindo para periódicos como l’Unité, l’Humanité e Révolution, que possuíam posicionamentos políticos diferentes, um representando a esquerda revolucionária, o outro a social democracia. Em 1976, a quadrinista foi convidada a participar da revista feminista Ah! Nana, tendo participado initerruptamente do periódico, publicando por vezes até mais de uma HQ por edição. Na revista ela lançou o personagem que marcaria sua carreira: Andy Gang, um sargento de polícia, de Marselha, responsável por uma equipe dedicada a solucionar crimes suburbanos. A HQ Le Brigadier Andy Gang trouxe questões relacionadas a crimes e corrupção, às dificuldades de se aplicar a lei e o desencanto da própria polícia. O personagem foi inspirado, segunda a autora, em Roger Marchaudan, um policial conhecido por seus atos violentos, marcados pela impunidade6. Marchaudan foi condenado, em 1981, a cinco anos de prisão por homicídio doloso e dez anos por degradação dos direitos civis.
A carreira de Chantal Montellier é marcada por diversas publicações na Les Humanoïdes Associés e Futuropolis, duas editoras que desempenharam um papel fundamental no surgimento de um novo tipo de história em quadrinhos na França a partir da década de 1970. A autora trabalhou com temáticas adultas, envolvendo ficção científica, erotismo e mundos distópicos. As três histórias compiladas em Social Fiction – Wonder City, Shelter e 1996 – foram originalmente publicadas nas páginas da revista Métal Hurlant, entre 1976 e 1983. Sua entrada no mundo das HQs ocorreu num dos períodos mais conturbados da França, sob a égide do Movimento de Liberação Feminina (MLF). As mulheres exigiam não apenas mais direitos, mas, acima de tudo, respeito à condição feminina. O movimento nasceu oficialmente em 26 de agosto de 1970, quando um grupo de doze mulheres depositou, sob o Arco do Triunfo, em Paris, uma coroa de flores para a esposa do Soldado Desconhecido. Era um movimento de apoio à greve das mulheres norte-americanas, que comemoravam naquele dia o 50º aniversário do seu direito de voto. O grupo foi preso, dando origem ao MLF8. O direito ao aborto e à contracepção sem restrições foi uma das principais bandeiras do MLF. Em 1971, teve início uma campanha pelo direito ao aborto que conseguiu reunir cerca de 4 mil mulheres em Paris. Em abril daquele ano, Le Nouvel Observateur publicou o Manifesto das 343, documento assinado por um grupo de mulheres famosas que admitiam ter feito aborto. Além dessas mulheres, 331 médicos declararam que praticaram aborto na França e foram legalmente processados, dividindo a opinião pública9. Toda essa comoção possibilitou a aprovação da Lei Veil, em 1974, que descriminalizava o aborto. O projeto de lei foi proposto por Simone Veil, então ministra da Saúde. A Lei Veil foi apenas o primeiro passo. A aceitação do aborto como um direito das mulheres teve ainda que enfrentar o preconceito da sociedade e dos próprios profissionais de saúde. Outra demanda do movimento era a luta contra a violência, que afetava as mulheres tanto no domínio público quanto no privado. Chantal Montellier vai evocar esses dois temas em seus quadrinhos. Em 1975, produziu uma reportagem em quadrinhos denunciando a recusa de alguns hospitais franceses a atenderem pacientes que desejavam fazer o aborto assistido, de acordo com a nova lei. Em Wonder City (1983), uma distopia futurista, a questão da maternidade e do direito das mulheres de decidirem sobre seu próprio corpo é evocada, junto com outros temas. Em Shelter (1979), temos mulheres transformadas em objetos de prazer para os homens e em Odile et les crocodiles (1983), Montellier aborda o tema do estupro e a forma como a justiça francesa tratava a vítima como culpada.
Social Fiction
Chantal é uma militante feminista de longa data e sua atuação neste campo pode ser representada pela Associação Artemisia. Pouco conhecido no Brasil, o Prêmio Artémisia, criado em 2008, tem como objetivo promover a produção feminina nos quadrinhos. O prêmio é anunciado anualmente no dia 9 de janeiro, dia do nascimento de Simone de Beauvoir, e seu nome é uma homenagem à pintora renascentista italiana Artemisia Gentileschi. Artemisia Lomi Gentileschi nasceu em Roma no dia 8 de julho de 1593. Era a filha mais velha do pintor Orazio Gentileschi (1563-1639). Aos 19 anos, foi violentada pelo pintor Agostino Tassi (1580-1644), amigo de seu pai e contratado para ser seu tutor. Humilhada em um julgamento que acabou deixando livre seu agressor e lidando com o preconceito da sociedade da época, Artemisia deu a volta por cima. Tornou-se uma das mais renomadas artistas do período, tendo tido seu talento reconhecido por seus pares ainda em vida14. A motivação por trás da criação do prêmio veio do que Chantal e seus pares consideram um descaso por parte do Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême, que, em quase 50 anos de existência, concedeu o Grande Prêmio a apenas três mulheres: Claire Bretécher, em 1983, Florence Cestac, em 2009, e Rumiko Takahashi, em 2019. Não se trata apenas de premiar mulheres, mas mulheres com talento e cuja obra possa trazer alguma contribuição literária e social. Esta preocupação se deve principalmente pelo crescimento e massificação das chamadas “BD girly”. São HQs direcionadas para o público feminino jovem, criadas a partir de fórmulas pré-estabelecidas. Segundo Chantal Montellier, elas se caracterizam por um discurso narcisista cuja narrativa é construída em torno de relacionamentos cotidianos, envolvendo pais, amigos e namorados. Exaltam os valores da sociedade consumista e não possuem um conteúdo politizado ou polêmico. Normalmente, estas HQs giram em torno de códigos e práticas de consumo sociais e reproduzem estereótipos femininos ultrapassados
Se você quer saber mais sobre o trabalho de Chantal Montellier, além da HQ Social Fiction, que reúne uma série de histórias curtas e distópicas produzidas no final dos anos 70 e início dos anos 80, você terá ao menos duas chances de conhecê-la pessoalmente no mês de Setembro aqui no Brasil e entender porque sua produção segue mais atual que nunca: a artista estará na Bienal de Curitiba, entre os dias 7 e 10, e no CPF do Sesc, em São Paulo, no dia 11, para um bate-papo mediado pela própria Natania.
Saiba mais:
A sétima edição da Bienal de Quadrinhos de Curitiba está confirmada e acontece entre os dias 7 e 10 de setembro de 2023, no MuMA – Museu Municipal de Arte, no Portão Cultural. O tema da vez é “Resistências, existências: quadrinhos e corpos plurais”. A representatividade é o ponto de partida da curadoria 100% feminina, formada por Mitie Taketani, proprietária da Itiban Comic Shop; Maria Clara Carneiro, pesquisadora, tradutora de quadrinhos e professora do departamento de Letras Estrangeiras Modernas da UFSM; e Dandara Palankof, tradutora, editora no estúdio de produção editorial de super-heróis da Mythos Editora e coeditora da Revista Plaf, especializada em quadrinhos. Esta edição terá tudo aquilo que é a cara da Bienal: palestras, debates, exposições, oficinas, sessões de autógrafos com artistas convidados e convidadas, feira, festas e duelos de HQS.
A quadrinista francesa apresenta seu mais recente trabalho publicado no Brasil, e conversa sobre seus processos de pesquisa e criação, bem como sobre os atravessamentos de temas como feminismo, política ao longo de sua obra gráfica.
Após a mesa, haverá um momento para autógrafos.
Mediação de Natania Nogueira. Haverá tradução simultânea do francês.
Ação em parceria com a Embaixada da França no Brasil e Editora Veneta.
Recomendamos o uso de máscara cobrindo nariz e boca.
As inscrições podem ser feitas a partir das 14h do dia 28/8 no site do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc ou presencialmente em qualquer unidade do Sesc São Paulo. Após o início da atividade não é possível realizar inscrição. O cadastro é pessoal e intransferível.
Ao término do curso, você poderá solicitar sua declaração de participação pelo e-mail [email protected]
Inscrições aqui: https://centrodepesquisaeformacao.sescsp.org.br/atividade/autografias-bruxas-minhas-irmas
Natania Nogueira é formada em História pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Cataguases, com especialização em História do Brasil pela UFJF e Mestrado em História pela Universidade Salgado de Oliveira. É membro fundadora da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial (ASPAS) e foi a primeira presidente da entidade, de 2012 a 2019, voltando ao cargo em 2023. Entre outros, publicou os livros As histórias em quadrinhos e a escola: práticas que ultrapassam fronteiras (2017), Uma breve história das histórias em quadrinhos (2019) e Histórias em quadrinhos e educação: princípios gerais e práticas educativas (2020).
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