(fazer) quadrinhos (e ser) LGBT+
Vitorelo conversou com as quadrinistas Aline Zouvi e Diana Salu sobre a importância de que HQs LGBT+ sejam lidas e interpretadas como obras universais
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Vitorelo conversou com as quadrinistas Aline Zouvi e Diana Salu sobre a importância de que HQs LGBT+ sejam lidas e interpretadas como obras universais
Enquanto autora e pesquisadora de quadrinhos, e sendo eu mesma uma entusiasta da teoria queer e estudos transviados, relacionar as duas coisas em um único texto é a concretização de uma vontade acadêmica antiga. Conversei a respeito do tema com Aline Zouvi e Diana Salu começando com uma pergunta clássica, com a qual eu mesma tenho minhas questões: qual a importância de quadrinhos LGBT+?
Aline é autora de “Síncope” (2017) e “Pão Francês” (2019), e atualmente está trabalhando em sua mais longa história em quadrinhos, a ser lançada pela Companhia das Letras. No momento ministra o curso “Vivência LGBTQIA+ nos quadrinhos” no Sesc São Caetano.
Diana é autora de “Cartas Para Ninguém” (2019), cuja nova edição será lançada neste ano após um bem-sucedido financiamento coletivo. É também autora do “Então você quer escrever personagens trans?”, já citado nessa coluna, e no momento está ministrando a oficina de escrita criativa “Cartas para quem?” no Espaço CC.
Apesar de meu método jornalístico questionável de fazer uma pergunta que eu não gosto para minhas “entrevistadas”, divido com elas minha frustração com a pergunta: ao pesquisar quadrinhos dentro da universidade, me vi constantemente colocada em um lugar de justificação – fiz mestrado sobre resistência política em quadrinhos experimentais, usando principalmente obras de autoras mulheres e de sexualidades e expressões de gênero diversas.
Claro, faz parte do método científico justificar a relevância e escolha de seu objeto de pesquisa. Mas minhas motivações para se pensar em quadrinhos feitos por um tipo específico de autor nunca eram o bastante para alguns professores. Pela forma que eles se colocavam, eu começava a suspeitar que isso tinha mais a ver com o fato de se tratar não de autores, mas de autoras, ainda que muitas delas não falassem necessariamente em questões “de gênero”.
Arte de Aline Zouvi
Arte de Aline Zouvi
Não há dúvidas de que quadrinhos feitos por autores LGBT+ são importantes por uma variedade de fatores; da mesma forma, quadrinhos que abordem temas LGBT+ também têm relevância indiscutível. Mas conversando com Diana e Aline, fica claro que misturar tudo isso parece implicar numa correlação necessária entre ambos, como se autor LGBT+ só falasse de temas LGBT+.
Ao longo da conversa, alguns termos me chamaram a atenção: visibilidade e representatividade; legitimidade e possibilidade (de existir); explicar e brincar.
Diana, por um lado, afirmou que não fala em representatividade em nada que faz – e eu entendo. É um pouco o que sinto em relação a outros termos que foram esvaziados pelo neoliberalismo, como “empoderamento” e outros termos cunhados por filósofas que propuseram novas formas de pensar e agir em sua época.
Aline destacou o valor que as obras sobre vivências LGBT+ têm ao introduzir a mera possibilidade de um jeito de ser, de existir, e mencionou, com carinho, a obra de Alison Bechdel, à qual se dedicou no mestrado.
De fato, os quadrinhos são os queridinhos da educação porque, em geral, possuem linguagem mais acessível, são mais lúdicos, e acabam sendo a porta de entrada para incontáveis leitores não apenas para o hábito de ler em si, como para outros assuntos – entre eles, gênero e sexualidade.
Mas não é porque muitos quadrinhos têm essa cara acessível que eles tenham a intenção de ser didáticos; às vezes, é exatamente o oposto. E isso também vale para nós, autores LGBT+.
A artista Diana Salu
A artista Aline Zouvi
É esperado que nós nos expliquemos enquanto autores, assim como me foi esperada várias e várias justificativas para meu objeto de pesquisa no mestrado (oras, quem poderia estudar quadrinhos estranhos por gente esquisita?), e assim como sempre esperam uma explicação de porque me apresento com um nome que não é aquele que está no meu registro. É esperado que tudo aquilo que criamos seja um manual de instruções (cuidado, LGBT+: manusear com cautela), ou um tocante relato de nossas vidas dentro do lugar-comum da jornada de sair do armário, da transição…
Aline percebe que, no quadrinho autobiográfico, muitas vezes busca-se uma construção de identidade que é utópica, uma mistura de dívida social e busca… “Narrativas concentradas no eu” que podem ser libertadoras para quem está lendo. Mas após se consolidarem como parte do cânone, acabam também se tornando uma referência para as obras que estão por vir.
Diana é certeira ao notar que o tal “quadrinho LGBT+” acaba sendo uma armadilha: na tentativa de se libertar de uma caixa, de uma classificação, limita-se a outra. É por isso que gosta de quadrinho-poesia: que não se explica, mas brinca de ser. Sua proposta é explicar menos, e experimentar mais.
Arte de Diana Salu
Arte de Diana Salu
A questão não é de identidade nem de temática. O problema é ser limitado e controlado pelas expectativas de quem lê, quem critica, quem vende, quem faz. O problema é que, o que se espera de um autor LGBT+, é que ele escreva sobre ser LGBT+. E mesmo que ele não o faça, subentende-se por consequência que sua obra deve ser, de alguma forma, LGBT+. Pois se antes não era permitido expressar publicamente gênero e sexo, tampouco queremos ser definidos por essas expressões.
Obviamente, não há problema algum se um autor LGBT+ escrever sobre sua jornada de autodescoberta, afinal, foram essas vozes que pavimentaram o caminho para as novas gerações. Mas reivindicamos que este autor tenha também a liberdade de ser lido e interpretado como uma obra universal – mesmo e principalmente quando falar de sua vivência.
E é isso o que torna o trabalho de Aline Zouvi e Diana Salu interessantíssimos. Aline e Diana são autoras cujo processo criativo é, antes de tudo, também um trabalho reflexivo, de estudo que vai além do fazer artístico. A honestidade das obras de cada uma é o que as tornam universais: ambas narram através da impressão de emoções e expressões genuínas. E, nelas, o leitor se reconhece.
Aline Zouvi é autora de “Síncope” (2017) e “Pão Francês” (2019), e atualmente está trabalhando em sua mais longa história em quadrinhos, a ser lançada pela Companhia das Letras. No momento ministra o curso “Vivência LGBTQIA+ nos quadrinhos” no Sesc São Caetano. Siga: @alinezouvi
Diana Salu é autora de “Cartas Para Ninguém” (2019), cuja nova edição será lançada neste ano após um bem-sucedido financiamento coletivo. É também autora do “Então você quer escrever personagens trans?”, já citado nessa coluna, e no momento está ministrando a oficina de escrita criativa “Cartas para quem?” no Espaço CC. Siga: @diana.salu
Vitorelo é artista, autora de TILT (finalista Prêmios Dente e Grampo), sobre enxaqueca crônica e saúde mental, Tomboy (Mostra Diversa do Museu da Diversidade Sexual), sobre performance de gênero, e Lilibel, sobre demônios condenados ao inferno paulistano. Seu trabalho autoral faz uso de experimentações gráficas e narrativas. Semioticista, pesquisa quadrinhos experimentais, resistência política e gênero. Siga: @vitorelo.art
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Vitorelo é artista, autora de TILT (finalista Prêmios Dente e Grampo), sobre enxaqueca crônica e saúde mental, Tomboy (Mostra Diversa do Museu da Diversidade Sexual), sobre performance de gênero, e Lilibel, sobre demônios condenados ao inferno paulistano. Seu trabalho autoral faz uso de experimentações gráficas e narrativas. Semioticista, pesquisa quadrinhos experimentais, resistência política e gênero. Siga: @vitorelo.art