Hiperprodutividade nos quadrinhos
Conversamos com Aline Zouvi e Verônica Berta sobre a cobrança por produtividade no mercado de HQs
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Conversamos com Aline Zouvi e Verônica Berta sobre a cobrança por produtividade no mercado de HQs
Vivemos em uma sociedade em que a ideia de sucesso está atrelada com a ideia de produtividade, em que sentimos culpa por descansar, nos cobramos pra fazer sempre mais e muitas vezes não temos tempo de respiro de uma atividade para outra. Não sei você, mas já me senti assim muitas vezes, e é um exercício diário repensar meu tempo e buscar formas de lidar com essas questões de maneira cada vez mais saudável e com qualidade. E essa cobrança por produtividade existe na área da produção de histórias em quadrinhos? Como as artistas lidam com isso? Conversei com Verônica Berta, ilustradora e quadrinista, autora de Ânsia Eterna (SESI-SP, 2018) e Aline Zouvi, quadrinista, autora de Óleo sobre Tela (UgraPress, 2018) e Pão Francês (Incompleta, 2019).
Arte de Lila Cruz @colorlilas
Aline Zouvi: Sinto esta cobrança de forma frequente. Acredito que, em algum ponto no desenvolver de sua carreira, todo quadrinista já passou por esse momento e, talvez, continue vivendo essa cobrança de forma diária, como algo internalizado em sua própria vivência da profissão. Não sei quando foi a primeira vez em que ouvi, mas eu mesma comecei a reproduzir esta ideia de que o “ideal” é lançar uma HQ por ano, visto que as feiras de quadrinhos parecem ditar o ritmo de produção dos autores. Tem-se a ideia de que a novidade do lançamento irá atrair o público à sua mesa nos eventos, já que, todos os anos, portais de mídia especializada divulgam as listas com tais lançamentos – como se a necessidade de algo novo seja condição única para a visibilidade e a presença do artista no evento. Vejo esta questão como algo bastante delicado, pois este ritmo pode servir como incentivo ao artista que está com dificuldade de terminar um zine, por exemplo. A data do evento como deadline pode, muitas vezes, ser uma ajudinha, neste sentido. Por outro lado, esta pressão para se ter sempre algo novo pode prejudicar a qualidade da produção e o tempo de maturação que ela precisa. Já publiquei alguns quadrinhos que eu gostaria de ter esperado um pouco mais para publicar devido a esta questão relacionada aos eventos de hq.
Verônica Berta: Acredito que o mercado de quadrinhos autorais funciona numa periodicidade dos eventos, em especial a CCXP. Além dos curadores darem bastante atenção a artistas que pretendem lançar trabalhos novos nos eventos, todas as formas de divulgação (páginas, prêmios etc) também focam nas publicações do ano. O público que gosta do trabalho também fica ansioso por querer ler mais, e isso é um ótimo incentivo, dá energia para continuar, mas não deixa de ser um fator importante de auto-cobrança. Eu acredito que quem precisa pagar as contas com vendas de quadrinhos sinta a necessidade de publicar com mais frequência. O problema surge quando fazemos quadrinhos em paralelo com o trabalho principal, e mantemos (ou queremos manter) um ritmo super acelerado de produção — e essas são a maioria das pessoas que fazem quadrinhos autorais no Brasil. Vejo isso como um problema porque eu não enxergo beleza na exaustão pelo trabalho, no sofrimento para obter sucesso, em horas de sono perdidas, dor nas costas e tendinite. Muitas vezes acabamos sendo levados sem perceber pelo discurso do “no pain no gain”, da falácia da meritocracia e nos tornamos nossas próprias maquininhas de produção. Aí é um pulo para perdemos qualidade de vida e girarmos nossa vida em torno do que fazemos e não de quem somos.
Arte de Aline Zouvi @alinezouvi
Aline Zouvi: Acredito totalmente que as redes sociais têm grande influência nesta cobrança. As redes sociais não influenciam apenas a relação que o quadrinista tem com sua produtividade, mas podem qualquer usuário em direção a qualquer insegurança que seja mais latente em seu contexto pessoal ou profissional. (Desculpa, estou um pouco amarga em relação à tecnologia no momento, rs!) Na pandemia, pelo menos no início, senti um pouco de falta de referência. Imagino que foi assim para muitos, já que as datas dos eventos presenciais eram a maior referência de agenda da maioria de nossas produções. Como a minha forma de trabalhar se baseia em um direcionamento maior de energia a produções um pouco mais longas neste momento, que ainda não podem ser divulgadas ao público, preciso sempre fazer um esforço maior para produzir um conteúdo totalmente voltado à presença nas redes sociais. Isso já era cansativo pra mim antes da pandemia, e depois ficou mais desgastante. Por isso, procuro seguir o meu ritmo, mesmo que isso signifique menos engajamento nas redes.
Verônica Berta: Com certeza ampliam e ainda mexem muito com a nossa auto estima. A gente fica vendo o Instagram todos os dias, várias vezes por dia, e lá estão os trabalhos das outras pessoas; é praticamente impossível não pensar “e EU, o que EU estou fazendo?”. A comparação é automática. Mas a gente nunca pensa no que está por trás daquelas publicações, afinal, isso não é mostrado. Na pandemia está claramente todo mundo ruim da cabeça em algum nível e não sabemos pelo que os outros passam para conseguir fazer uma publicação nas redes sociais. É muito nocivo lidar com uma rotina de trabalho + tarefas diárias + cuidar da saúde + criar filhos + lidar com sentimentos intensos (solidão, luto, ansiedade e afins) + etc. Estou fazendo terapia e sempre tenho que me lembrar de que esse é o momento de desacelerar e ser generosa com a gente mesma; os projetos pessoais podem esperar.
Arte de Verônica Berta @veronica.berta
Aline Zouvi: Acredito que este é um exercício diário que devemos fazer: devemos nos lembrar de que cada artista está inserido em um contexto socioeconômico específico, além de ter, também, um projeto individual que irá moldar a maneira como irá atuar profissionalmente nas redes ou no meio editorial. Procuro, por isso, evitar ao máximo esta comparação de produtividade, por mais que ela possa ser sempre absorvida por nós em nossas vivências, mesmo que de forma inconsciente. Não me lembro de ter presenciado alguma comparação desigual sendo apontada, mas não duvido de que isso ocorra, infelizmente, já que esta pressão por uma produtividade excessiva e destrutiva também está inserida em um discurso que desconsidera muitos fatores que influenciam o contexto de cada artista.
Verônica Berta: Com certeza a gente se compara sem pensar racionalmente, é sempre um impulso, a gente vê o outro fazendo e já se coloca para baixo (e pela minha experiência isso acontece principalmente com mulheres). A gente ignora então todas as oportunidades e privilégios da outra pessoa (de novo, sendo levadas pela falácia da meritocracia), ignora o tempo de estrada da pessoa, e também não entramos em contato com as falhas que a outra pessoa resolveu omitir nas redes sociais. Não é razoável, por exemplo, uma mulher de periferia que está começando a estudar desenho em paralelo com o trabalho, sem tempo ou energia para estudar e sem grana para fazer uma faculdade de arte, se comparar ou ser comparada com uma pessoa que foi estudar na Europa e já está trabalhando com quadrinhos há 20 anos. Falando assim parece exagero, mas esse tipo de comparação é muito comum, e digo por experiência como professora de desenho. É claro que quem estuda mais evolui mais rápido, mas, se essas forem as únicas ideias que passam na nossa cabeça, entenderemos que o problema é com a gente, e não que o problema é super complexo e que existem fatores que estão fora do nosso controle. E não quero desanimar ninguém: minha intenção é apenas que a gente reconheça essas coisas e produza na medida das nossas possibilidades e não das possibilidades alheias.
Natália Sierpinski é paulistana, educomunicadora e pesquisadora de histórias em quadrinhos, gênero, sexualidades e educação É coordenadora da programação do evento Butantã Gibicon.
Siga: @n.sierpinski
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Mestre em Ciências da Comunicação (PPGCOM-USP) com pesquisa sobre autoria de mulheres nas HQs no Brasil e Licenciada em Educomunicação (ECA-USP) com trabalho final sobre o uso das HQs para falar sobre gênero nas escolas. Pesquisa sobre gênero e histórias em quadrinhos desde 2014, já escreveu nos sites Garotas Nerds e Minas Nerds. É coordenadora da programação do premiado evento Butantã Gibi Con.