Para não esquecer dos afetos
Vitorelo conversa com Gim, autore do quadrinho “Lembranças”
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Vitorelo conversa com Gim, autore do quadrinho “Lembranças”
Gim é ilustradore e animadore, e o momento em que a conheci já está embaralhado demais em todas as minhas memórias intensas de todas as feiras de quadrinhos e zines das quais já participei.
São esses os registros que tenho de Gim: memórias boas das feiras de quadrinhos, zines e adesivos na minha coleção e, agora, sua história chamada Lembranças.
Lembranças é a contribuição de Gim para a coletânea Histórias Quentinhas sobre Existir, que figura entre os trabalhos de outros autores de peso como Ing Lee e Aureliano Medeiros. O livro foi organizado e editado por Ellie Irineu e trata-se do segundo livro da série pautada por vivências e olhares LGBT+, precedido por Histórias Quentinhas sobre Sair do Armário.
Acho que é assim que a arte vai se transformando em algo importante, quase pessoal: através dos afetos. Cria-se uma conexão quando se tem um aprendizado, uma troca, ou mesmo quando absorvemos determinada obra. Foi assim que tantos de nós fomos nos apaixonando por histórias, por livros, por canções, e aos poucos nos vimos flertando com a possibilidade de tomar para si o desafio de criar. Essa tem sido a trajetória de Gim, que sempre teve um fascínio pela criação e cuja formação de artista foi versátil e misturada, estudando através de cursos livres que lhe deram acesso ao teatro, à dança, à história da arte, depois ao desenho…
Quando cursava design gráfico, por volta de 2015, teve o primeiro contato com o trabalho de Cecil Silveira através do folhetim que publicava mensalmente em formato digital. Lia o quadrinho na pequeníssima tela do celular nos trajetos de ida e volta da faculdade. “Isso aqui é um zine!”, foi o momento de eureca que a marcou enquanto devorava todos os capítulos, intrigade com essa encarnação de quadrinho digital.
Foram as histórias autobiográficas que serviram de pontapé para que começasse de fato sua produção. Em 2017, fez uma oficina de zines voltada para a comunidade lésbica e bissexual, e sob a orientação de Uarê Erremays, publicou Minguante, sobre mulheridade, sexualidade e afetos. Gim atuou como editora e publicadora na Móri Zines, selo idealizado por Uarê, entre 2017 e 2019. “A Móri Zines é um selo de publicação e distribuição independente, focado em viés de identidade, corpo gordo, negritude, periferia e gênero. O selo surgiu em 2016 e segue em trânsito, atualmente articulando o Ateliê de Futuridades Trans, em parceria com o Slam Marginália, com incentivo do Programa VAI”.
Eu tenho duas zines da Móri Zines: a Economia Anarkista para Consumidores de Arte em Situação de Capitalismo, uma publicação a várias mãos com belas colagens e ótimos conselhos (vale conferir no site da Móri); e Ruído, uma pequena zine preta costurada em linha vermelha, de autoria de Gim: “voltado para o terror, suspense e saúde mental – minha própria relação com saúde mental”.
Gim conta que começou a desenhar pela necessidade de contar o incontável. No hábito de manter diários, tinha o desafio de escrever sobre si e, ao mesmo tempo, preservar sua privacidade caso fosse lide. Os desenhos se tornaram uma linguagem simbólica daquilo que não podia ou queria escrever em palavras. Além disso, esse ato de “escrever em quadrinhos” lhe permitiu exercitar uma outra relação com a escrita, já que Gim não gostava de seus diários em forma de lista, “assim como a Alisson Bechdel escrevia”.
Essa relação entre o hábito de (se auto)registrar e o fascínio e descoberta que existe nos trabalhos autorais e autobiográficos não é coincidência. Acho particularmente intrigante essa capacidade de se revisitar através de diários guardados, tal como Bechdel fez ao longo da vida, mal sabendo que ela se tornaria uma espécie de especialista na arte de se registrar, nessas tantas tentativas de se tornar especialista de si. No meu caso, embora eu tenha tido em alguns momentos da infância o hábito de manter diários, me livrei deles tão logo deixava de me identificar com o que escrevia, meio que numa pressa inconsequente de crescer. Quando perguntei para Gim se elu tinha imagens do processo de criação de Lembranças, elu prontamente puxou uma pasta organizada de um local estratégico, humilhando-me em meio às pilhas de papeis e arquivos que chamo de lar.
Todo o nascimento de Lembrança ficou guardado em “uma pasta bastante recheada para uma HQ de 16 páginas”, relata Gim. A história fala de uma temática muito cara e sagrada à juventude LGBT+, mais do que a outras populações. Os papéis da pasta, na verdade, registram só parte do processo: apesar de ter sido um trabalho todo desenhado à mão, a obra conta com interferências digitais e processos mistos, em uma maneira de operar com a qual me identifiquei não por acaso – Gim disse que me teve como uma de suas referências nesse sentido, para minha surpresa. Muita coisa digitalizada, impressa e reimpressa, desenhada por cima, colada e recolada.
Era importante que a história se passasse em locais de relevância para a comunidade LGBT+, o que se provou um desafio extra em tempos de isolamento social. Gim recorreu às ferramentas que tinha para criar uma São Paulo que, por um momento, não existiu de verdade, deslocada do nosso tempo e espaço. Um dos exemplos é o Espeto Bambu, bar simbólico para o público lésbico e bissexual, do qual Gim já tinha fotografias próprias.
Foram muitos os aprendizados de afetos contados por Gim, dentre eles o seu professor do Centro Audiovisual de São Bernardo que lhe ajudou com alguns dos desenhos da HQ, e a própria Ellie Irineu, organizadora e idealizadora da coletânea, que já havia conhecido em um dos eventos do Lady’s Comics.
“Ellie me deu muita confiança ao me convidar. (…) Ellie me ensinou muito. Também aprendi muito com as pessoas que fui observando… Era muita expectativa falar sobre existência, sobre o que é ser LGBT+. Não queria trazer uma história totalmente feliz; queria de alguma forma me afundar. Terminar de escrever roteiro… Não foi um processo muito organizado, mas tinha roteiro, tinha storyboard. Quando terminei de escrever, chorei muito. Era pra ser algo que me tocasse muito para tentar seguir em frente.”
“Ser LGBT é isso também: é sofrer, e se apaixonar, e se apaixonar de novo, e terminar algumas relações para construir outras… É errar mais do que se acerta, mas acertar ao continuar tentando, de alguma forma.”
Tenho um fraco por histórias agridoce porque acho que a vida é assim, saborosa, e frequentemente amarga; mas não somente. E não sei se há muitas formas de se falar de existência, das grandes coisas e das grandes questões, sem o caos dos muitos sabores que vamos conhecendo conforme crescemos. Tenho a impressão que a única forma viável de se falar genuinamente de viver seja sofrendo e rindo, às vezes até ao mesmo tempo. E ser LGBT é isso também: é sofrer, e se apaixonar, e se apaixonar de novo, e terminar algumas relações para construir outras… É errar mais do que se acerta, mas acertar ao continuar tentando, de alguma forma. E é isso o que me comoveu profundamente em Lembranças, na simplicidade e despretensão da narrativa, e dos vazios que dizem tanto, ainda mais em uma história cujo fio condutor é uma carta.
Atualmente, Gim coordena o núcleo de ilustração ao Lacrei (portallacrei.com.br): um portal completamente construído por pessoas voluntárias, divididas em times de linguagem, comunicação, marketing, pesquisa, desenvolvimento, dedicado a conectar a comunidade LGBT+ a profissionais de saúde, advogades, além de oportunidades de trabalho. Para Gim, o voluntariado é a concretização de uma vontade antiga para a qual tinha imposto uma condição: só seria voluntária quando estivesse ela mesma em uma situação mais estável. Mas a vontade de fazer algo para um bem comum foi maior, principalmente diante da situação social e política cada vez mais crítica.
Tanto em seu traço como em seu papo, percebo a mesma generosidade na forma com que Gim fala de seus aprendizados e inspirações: sempre associados a um nome, a um rosto, a uma voz. Ume autore que reconhece e celebra os tantos outros que formaram quem elu é, e que ainda consegue ser, à sua maneira, maior que a soma de todas as partes.
Conheça o trabalho de Gim em @gimsri ou www.behance.net/gimsri.
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Vitorelo é artista, autora de TILT (finalista Prêmios Dente e Grampo), sobre enxaqueca crônica e saúde mental, Tomboy (Mostra Diversa do Museu da Diversidade Sexual), sobre performance de gênero, e Lilibel, sobre demônios condenados ao inferno paulistano. Seu trabalho autoral faz uso de experimentações gráficas e narrativas. Semioticista, pesquisa quadrinhos experimentais, resistência política e gênero. Siga: @vitorelo.art