Entrevista: Triscila Oliveira
A pesquisadora de quadrinhos Laluña Machado entrevista a roteirista Triscila Oliveira em uma conversa franca e bastante sensível.
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A pesquisadora de quadrinhos Laluña Machado entrevista a roteirista Triscila Oliveira em uma conversa franca e bastante sensível.
A pesquisadora de quadrinhos Laluña Machado entrevista a roteirista Triscila Oliveira em uma conversa franca e bastante sensível.
Tenho [quase] certeza de que a maioria das pessoas que fazem parte direta e indiretamente do cenário de quadrinhos no Brasil estava ansiosa para a CCXP22. Claro que fica aquela expectativa de ver seus quadrinistas e roteiristas favoritos no maior Artist’s Valley do mundo. Mas, necessariamente nesta que passou recentemente, eu queria abraços.
Foram meses de pandemia de Covid, aquele medo gritante de morrer ou de perder alguém enquanto os números de óbitos só cresciam entre as mãos sangrentas de um “governo”. Então eu queria abraçar as pessoas, abraçar meus amigos, as personalidades que eu admiro e principalmente olhar para todos naqueles corredores coloridos e pensar: nossos corpos sobreviveram. E por desejar tanto essa troca, porém sem externar isso abertamente, eis que eu ganhei um dos melhores abraços da vida. O de Triscila.
Para mim aquilo foi uma troca imensa de coisas que só nós duas sentimos naquele momento. Era tanta informação ao redor, mas ali estavam duas mulheres permanentemente racializadas. O que era uma gigantesca admiração profissional, tornou-se para mim um afeto gentil (com muito pleonasmo mesmo).
A conversa gerou vários debates grandiosos, mas eu não tive tempo de dizer para a Triscila que a escrita também me salvou de alguma forma da depressão, assim como foi pra ela… e é nesse gancho que eu gostaria de iniciar essa entrevista.
– Você contou em alguns depoimentos que começou a escrever em 2015 para expressar ideias e angústias, além de manter pautas extremamente necessárias como Raça, Gênero e Classe (necessariamente nessa ordem). Você poderia falar como foi esse processo de “cura” pela escrita e pelo desenvolvimento intelectual e social com base em assuntos tão fundamentais?
R: Nessa época, eu estava afogada em dúvidas existenciais e provavelmente numa “crise dos trinta”, reavaliando minha juventude, expectativas e frustrações. Eu escrevia em cadernos, que acabavam se tornando diários. Era a minha maneira de lidar com uma solidão e dores que eu não sabia muito bem de onde vinham. Colocar pra fora, aliviava o fardo emocional de não saber como lidar com o que eu sentia. Por fim, tornou-se algo terapêutico.
– Ainda há um julgamento sobre a real utilidade do ciberativismo, principalmente o ciberativismo antirracista. Considerando as evoluções da “máquina” internet, você acha que esse tipo de resistência ainda persiste da mesma forma que você encontrou em 2015 com seu blog?
R: Absolutamente não. Em 2018 todos testemunhamos como essa “máquina internet” pode ser eficaz quando usada com estratégia. Jamais teríamos tido os quatro anos de um dos piores governo na história do Brasil se não fosse pelo poder de organização e disseminação de fake News na internet. Vimos que no segundo semestre de 2020 campanhas antirracistas por todo planeta reverberaram “Vidas Negras Importam” em todas as línguas, denunciando o racismo em todas as suas facetas. O que ainda acontece hoje, é que muita gente diminui o ciberativismo como se este fosse o único formato de enfrentamento ao sistema, chamando de “ativismo de sofá” quando na verdade ele amplifica as vozes dos movimentos sociais com um alcance quase infinito. As pessoas por detrás das páginas nas redes são alvos do sistema e fazem o que podem dentro de suas duplas ou triplas jornadas no dia-a-dia para contribuir para um futuro melhor.
Triscila no FIQ 2022
– No decorrer da história inúmeras pessoas que se dedicaram à literatura, poesia e/ou quadrinhos estabeleceram grandes parcerias e essas foram feitas com várias possibilidades de comunicação, mas até o advento da internet isso nunca tinha sido feito de maneira tão “instantânea”, ainda mais com as redes sociais. Contudo, todo o seu processo criativo com o Leandro Assis se deu através dessas redes que se iniciou com um comentário seu em uma das tirinhas dele da série Os Bolsominios que depois se tornou Os Santos. Você poderia nos contar um pouco como foi esse seu processo de contato com os quadrinhos naquele momento e logo em seguida com o seu estabelecimento como roteirista?
R: O Leandro viralizou com a tirinha número três, Manteiga da série Os Santos quando a Mídia Ninja repostou. Do nada, eu vi aquele desenho passando várias vezes no feed, até que parei pra ler e pensei: “Quem é esse cara? E como ele conhece a minha realidade?” Comecei a acompanhá-lo, porque afinal, é um homem branco contando uma história com pessoas negras. Até que eu comentei com perfil da minha página numa das tirinhas. Um comentário de total identificação com a realidade daquelas funcionárias da limpeza da família branca. Ele já procurava alguém para estruturar a realidade e subjetividade daquelas mulheres negras, e depois de conhecer a minha página, o meu trabalho de vários anos ali, ele me convidou para a coautoria das tiras.
– Um dos maiores problemas de quem trabalha com redes socias são algoritmos que determinam comandos que prejudicam e muito os trabalhos de ciberativismo e consumo de conteúdo de eles “julgam” padrão. Mas como os algoritmos juntaram um quadrinista da Zona Sul do Rio e que mora em Portugal com uma intelectual e escritora de Niterói?
R: Todos acabamos nos nichando nas redes sociais de acordo com nossos interesses. Nesse caso, quando o Leandro viralizou – através do repost da Midia Ninja -, várias pessoas que eu seguia também repostaram a tira, já outras me enviaram pelo direct pois acompanhavam na minha página os relatos da realidade de mulheres negras como funcionárias da limpeza.
– A webcomic Confinada foi um dos maiores fenômenos da internet. Tanto por ser no formato de quadrinho, o que qualifica uma mídia que é tão segregada dentro as áreas de conhecimento. Quanto ao que se diz: um material que furou bolhas. Você atribui isso à quais fatores?
R: Laluña, você melhor do que ninguém sabe que o quadrinho brasileiro que habita o imaginário popular é a Turma da Mônica, cujo público alvo é o infantil, até mesmo pela temática abordada. Confinada furou bolhas por isso. Acredito que qualquer pessoa que tenha a turma da Monica como parâmetro, não esperava ver assuntos sérios, as hipocrisias, críticas sociais e os acontecimentos do momento sendo abordados num quadrinho. Se tornou um documento histórico do período da pandemia do Brasil, e eu tenho muito orgulho de ter feito parte dele.
– Durante seus anos de blog você apresentou trabalhos que tratavam de Raça, Gênero e Classe (mais uma vez nessa ordem). Você acha que você conseguiu contemplar esse modo de desenvolvimento desse debate (nessa ordem) em Confinada?
R: Com certeza. Raça é o maior marcador social. Quando se fala de pautas identitárias, automaticamente se pensa em negritude. Só que branquitude é uma identidade, porém pessoas brancas não se racializam. Várias vezes vemos como criminosos brancos são tratados com dignidade, cuidado e proteção a sua humanidade, mesmo confessando ou em flagrante, mas uma pessoa negra é suspeita apenas por negra. Confinada é sobre essa dinâmica, de raça, gênero e classe (nessa ordem) que vivem Ju e Fran.
– Lembro que durante a nossa conversa na CCXP eu comentei que os quadrinhos me deram praticamente tudo que eu tenho e você concordou comigo. Em algum momento da sua vida te passou que você seria uma das maiores roteiristas de HQ do país? E você já aceitou que você É SIM uma das maiores roteiristas de HQ do país?
R: Não. E ainda não (e mais uma vez você me fez chorar). Eu sempre sonhei em contar histórias, sempre rascunhei roteiros, continuações dos meus filmes favoritos, baixava o pdf de filmes e tentava entender a formatação, porque nunca sobrou grana para correr atrás de um curso na área. Já escutei da minha mãe que isso – trabalhar escrita e audiovisual – não era coisa pra gente como a gente. O motivo nós sabemos bem, e me fez engavetar esse sonho por mais de um década. Jamais imaginei que essa oportunidade viria através dos quadrinhos.
– Você tem quadrinista mulheres favoritas?
R: Laerte, Helô D’Angelo e Cecilia Ramos.
– Você tem recomendações de quadrinhos fundamentais que podem fazer paralelos com as suas histórias?
R: Acredito que o mais próximo seja a obra Sem palavras, do Ademar Vieira.
– Confinada é uma história que tem muitas coisas das suas experiências pessoais e contextualizada em uma pandemia, contudo, não é uma obra temporal. Você pretende permanecer nesse gênero de escrita dentro dos quadrinhos ou podemos esperar outros projetos que fogem da curva para você?
R: Bom, para continuar nos quadrinhos eu preciso aprender a desenhar primeiro, rs. No momento estou trabalhando em dois projetos que não fogem da curva. As vezes pode parecer que pessoas negras só sabem falar sobre as dores de suas vivências, só que, nossas histórias precisam ser contadas por nós. Hoje estamos vivendo um momento ímpar na produção nacional de literatura negra.
E por falar em literatura negra, quando eu fiz uma postagem sobre esse meu encontro com a Triscila eu usei uma poema da entidade Conceição Evaristo e é com ele que desejo terminar essa minha tentativa de representar a grandeza que a Triscila é…
Do fogo que em mim arde
[…]
Sim, eu trago o fogo,
o outro,
aquele que me faz,
e que molda a dura pena
de minha escrita.
é este o fogo,
o meu, o que me arde
e cunha a minha face
na letra desenho
do auto-retrato meu.
Laluña Machado é pesquisadora de quadrinhos e maior especialista acadêmica em Batman do país, graduada em História pela UESB e Ganhadora de 3 troféus HQMIX.
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