A vida pelo traço de Power Paola
Roteirista e quadrinista equatoriana fala sobre o processo criativo de suas obras
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Roteirista e quadrinista equatoriana fala sobre o processo criativo de suas obras
A América Latina é bastante conhecida pela produção de histórias em quadrinhos e há alguns anos as mulheres vêm sendo responsáveis por importantes HQs. Entre as quadrinistas mais influentes, destaca-se a equatoriana Power Paola, autora de Vírus Tropical e QP.
Nascida em junho de 1977, na cidade de Quito, capital do Equador, Paola passou boa parte da infância na Colômbia e, quando adulta, morou em países como França e Austrália. Hoje, reside em Buenos Aires, capital da Argentina, acompanhada de sua fiel companheira: a bicicleta.
Paola esteve em São Paulo no último mês de setembro para dar um curso sobre autoficção no Sesc Pompéia. A convite da Mina de HQ, Luiza Vilela, repórter e criadora do projeto Phantom Ladies, conversou com a quadrinista sobre seu processo criativo.
Gosto muito de experimentar com materiais diferentes. Penso que o material fala pelo projeto. Em Tudo vai ficar bem, o próximo quadrinho que vou lançar aqui no Brasil, fiz tudo com lapiseira. Então, em cada quadro, demorei muito tempo, o que faz toda a história ser devagar, muito mais lenta que Vírus Tropical, por exemplo. E para fazer meus roteiros, o que geralmente faço é perceber o que está insistindo em mim naquele momento e passar para a tela o que converse com algo mais global ou social ao redor. Se estamos falando sobre ecologia ou feminismo, por exemplo, tento lembrar de alguma história que tenha se passado comigo, e aí trabalho no roteiro.
Intuitivamente, o que mais me chama chama a atenção é a literatura, sobretudo a de mulheres. Acredito que essa seja uma forma de misturar a sua biografia, a ficção e o contexto social. Em minha adolescência, comecei a ler Andrés Caicedo, que é um escritor colombiano da cidade de Cali. Ele contava algo que me tocou: era um garoto privilegiado que observava o mundo por meio da música mais popular, andava pelos bairros da periferia de Cali, e também usava drogas. E quando voltei a morar por lá, essa cidade que ele retratou já não existia. Então, foi linda a recordação que eu tinha dela. Isso me marcou, acho, e a partir daí percebi que me interesso por contar como são as coisas agora, porque sei que daqui uns anos não será mais assim. Gosto de prestar atenção nos lugares, nas comidas, como as pessoas andam. Que alguém leia e me diga “ah, eu conheço esse lugar de Lima” ou essa comida ou, sei lá, causar interesse em uma pessoa para que vá à Bolívia.
Em cada lugar, sinto como se eu mesma tivesse sido diferente. É como se eu tivesse tido uma reencarnação em minha própria vida. Porque, por exemplo, quando morei na Austrália, trabalhava numa cozinha desde às 6h da manhã cortando legumes, não falava bem o idioma. Não era um trabalho difícil, mas para mim, que queria ser artista e viver da arte, parecia que ser impossível. Sempre foi assim, tive que trabalhar em outras áreas para sobreviver, entende? Foi nesse momento que comecei a fazer quadrinhos para rir um pouco da minha situação, porque mesmo com esse problema, era privilegiada, estava morando em uma cidade incrível, recebia um salário muito bom, tinha um tempo também, durante o dia, para desenhar. Não era tão terrível. Mas a única coisa que eu queria fazer era me dedicar 100% do tempo aos desenhos. Então, fiquei deprimida porque nunca pensei que poderia ter sucesso. Na Colômbia, foi completamente diferente. Tinha um um companheiro, estava casada, outra vida. Agora, em Buenos Aires, estou solteira. Em cada experiência também experimentei a vida de uma maneira diferente. E isso aconteceu, também, com os meus quadrinhos.
Tinha a ideia de fazer esse livro desde sempre, mas não sabia como. Pratiquei muito fazendo quadrinhos mais curtos, uma página, no máximo cinco. Depois de alguns anos, decidi fazer a graphic novel que tanto queria. A técnica foi fazer micro-histórias e juntá-las todas em uma só. Eu sabia que ia contar a história do meu nascimento até os 18 anos. Então, queria que cada capítulo se focasse em um dos personagens da família e com algum arquétipo, podia ser “família”, “dinheiro”, “amor”, contando a história de como vão crescendo e vivendo essas personagens através dessas anedotas.
Passei por algo similar, não igual e nem tão pesado, claro. Alguns professores de escolas e colégios que tinham pedido meu livro, porque queriam tê-lo na biblioteca — justamente porque os jovens e as crianças costumam ler mais quando vem leitura em quadrinhos. Depois, disseram que a escola não deixou que estivessem na biblioteca, porque o livro contém cenas de sexo, violência e drogas. Mas conto tudo isso como se fosse algo normal, como as pessoas costumam viver na realidade. Mesmo assim, não sei muito bem o que posso fazer para que isso não aconteça. Estamos vivendo um momento muito estranho e muito autoritário. Sempre me disseram que meu trabalho não é tão político. E agora, por causa dessa situação toda, me parece ser super político. Para mim, é muito importante que alguém possa contar sua história sem medo. Eu não as conto porque quero ser provocativa, sabe? Quero contar o que as pessoas vivem, porque isso é o que, de fato, é real.
Quando estava desenhando, não pensei nisso. Tivemos uma relação muito bonita, nos tratamos muito bem. O amor sempre sobreviveu. Claro, o amor romântico morreu em algum ponto dessa história, mas o amor real, de espírito e alma, persiste até os dias de hoje. Temos muita admiração um pelo outro, um carinho enorme, e acho que ele é uma das pessoas que mais me conhecem na vida, a pessoa que mais me empurrou para fazer quadrinhos. Ao escrever, nunca pensei que esse ponto seria tão chamativo, de saber que a relação tinha muito respeito, porque de fato, sempre fomos assim. Não foi de outra forma, não sei se isso é certo ou errado, se as outras relações foram mais saudáveis que a minha, mas meu traço é honesto. Para mim, o encontro com outro ser humano nunca vai ser banal. E não quero que o seja.
Estou participando menos agora. Nesses últimos anos, tenho trabalhado muito, principalmente depois do filme [Vírus Tropical, de 2017]. Não estava nem mesmo fazendo zines. Depois que terminei a animação, fiquei muito cansada, precisava de um tempo para tomar distância e aí fiquei um pouco mais focada na pintura. Mas há um grupo de garotas em Buenos Aires que se chama ¡Vamos las pibas!, que faz alguns festivais. Neles, fechamos três andares de mulheres vendendo zines, quadrinhos, stickers, prints etc. E todos têm conteúdos LGBT, sobre as mulheres, conteúdos muito políticos. Quando começamos o coletivo Chicks on Comics, era uma novidade para a sociedade. Agora, é muito mais fácil e nos interessa estar sempre entre mulheres porque é muito importante, porque juntas temos mais força. Tem toda a questão da visibilidade e do apoio. Mas, ao mesmo tempo, também é bom ampliar isso. O que mudou é que agora não somos só um grupinho de mulheres, somos muitas, várias pessoas que se juntam para ajudar na nossa visibilidade. Nós ampliamos um pouco mais nosso panorama também, não são só mulheres agora, temos pessoas LGBT, uma variedade de gêneros.
Estou trabalhando em uma outra graphic novel agora. A ideia é contar a história de todas as bicicletas que tive na vida. Eu amo bicicletas, ando por toda a cidade com elas, são minhas grandes companheiras. A ideia é fazer uma autoficção. Entrei no desafio de fazer com tinta, algo que nunca fiz. Então, levo muito tempo fazendo cada quadro. Cada história tem seu próprio universo. É um processo difícil, mas estou fazendo com muita tranquilidade.