Sexualidade feminina em quadrinhos
Entrevista com Lovelove6, autora de “Garota Siririca”, sobre sua nova HQ, “Sheiloca”
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Entrevista com Lovelove6, autora de “Garota Siririca”, sobre sua nova HQ, “Sheiloca”
Gabriela Masson, a Lovelove6, é uma das principais quadrinistas brasileiras de sua geração. Seu trabalho é independente e consistente, focado, principalmente, na sexualidade feminina. Ela é autora de Garota Siririca, HQ de 2015 que tratou com uma enorme naturalidade da masturbação feminina, coisa difícil (talvez impossível) de se ver nos quadrinhos feitos por homens, e foi finalista na categoria Melhor Publicação Erótica do Trófeu HQMIX 2016.
Em 2014, a artista já havia entrado para a lista da ONG Think Olga. Em 2017, foi premiada pela Convocatória Des.gráfica de quadrinhos experimentais e publicada pelo Museu da Imagem e do Som (MIS – SP) com a HQ Gastrite Nervosa. E em 2019 lançou Lombra, 19ª edição da coleção Ugrito, da Ugra Press, uma história sobre vulnerabilidade, coragem e esperança, e seu primeiro quadrinho sem texto. Artista de Brasília, Gabi é também uma das organizadoras da Dente Feira de Publicações Independentes.
Batemos um papo com a artista sobre Sheiloca, quadrinho que começou a produzir de forma despretenciosa há dois anos e que já é sua maior e mais elaborada HQ. Os primeiros capítulos vêm sendo divulgados em seu perfil no Instagram. Sheiloca é uma distopia feminista “onde as manas se organizam em comunas e mantém hábitos curiosos”. O livro esta em campanha de financiamento coletivo. Apoie! www.catarse.me/sheiloca
Dentro do universo da Sheiloca não existe esse conceito de mulheres, existem manas. Elas vivem um momento crítico de sua história, em que enfrentam a questão da continuidade de sua espécie e quatro delas, Sheiloca, Fedora, Belly e Amapô, mais ou menos desavisadas quanto à iminência de sua extinção, tomam decisões determinantes para o destino das manas. A ideia de uma sociedade formada só por fêmeas humanas ou mulheres é bem antiga. Na mitologia grega existem as amazonas, no séc. IXX o antropólogo Bachofen sugeriu a supremacia pré-histórica dos matriarcados, e também é um tema comum da literatura feminista, por exemplo abordada no clássico A terra das mulheres (1915), de Charlotte Perkins.
Gosto de nomes engraçados, que enfatizem características das personagens e que dialoguem e reforcem de alguma forma o universo da história. Fedora foi nomeada a partir do momento em que reclama dos odores da sua vulva. Sheiloca, para ter suas qualidades de uma mana imprevísivel e “desviada da norma” reforçadas. Belly remete à barriga e ao corpo gordo da personagem, valorizado entre as manas, e também ao ventre, que dialoga com a história das doulas reais que conhecemos. Amapô localiza a personagem dentro de um debate queer e transgênero.
Eu estava há um ano e meio produzindo a Sheiloca bem lentamente e agora decidi que é o momento de finalizar o projeto. O primeiro episódio (como chamo um conjunto de 8 páginas) que desenhei era apenas uma história curta para minhas apoiadoras. A partir da recepção positiva das leitoras, decidi desenvolver esse tema que me interessava, exercitando alguns aprendizados de roteiro mais conscientemente e focando em produzir um livro volumoso, que seria interessante publicar para minha carreira de autora.
A publicação digital e gratuita das minhas histórias é uma estratégia política de posicionamento em relação ao mercado editorial convencional e uma estratégia comercial de distribuição do meu trabalho. Enquanto eu puder captar recursos para publicar de forma independente o meu conteúdo, ele será socializado na internet. De certa forma eu espero que leitoras e leitores compreendam o seu papel importante na manutenção de um mercado alternativo e mais acessível de produções culturais. O gibi da Sheiloca terá cerca de 200 páginas coloridas e o preço de capa será R$35. Esse é um produto impossível dentro do esquema das editoras industriais e redes de livrarias.
Por meio de distopias podemos exercitar imaginativamente as consequências de uns cenários sociais extremos, sem precisar passar na prática pelas situações, mas gerando oportunidades reais de refletir, antecipar e transformar atitudes em relação às questões abordadas na ficção.
Fiz muitos quadrinhos entre a Garota Siririca e a Sheiloca. Em relação ao desenho, composição, cores e arte finalização, meu trabalho é mais coeso, seguro e profissional. Os conhecimentos de elaboração de roteiro são os que se desenvolvem mais devagar no meu caso, mas acredito que a Sheiloca dê um salto de qualidade narrativa e dramática em comparação à Garota Siririca. Sheiloca tem um conflito e uma conclusão melhor delineados, personagens mais carismáticas e mais ambíguas.
Acho que a hq Lombra (2019), publicada pela Ugra Press, é uma boa amostra do meu amadurecimento como quadrinista. Estou mais sobre controle das minhas habilidades e é mais prazeroso para mim desenhar e elaborar a Sheiloca do que foi entre 2013 e 2015 enquanto produzia a Garota Siririca.
Dentro das publicações independentes, o rolê dos quadrinhos é muito mais democrático hoje. As mulheres e pessoas LGBTQ estão muito mais integradas e os debates sobre raça e deficiência começam a ser esboçados. É mais fácil hoje construir uma carreira de autora de histórias em quadrinhos dentro do mercado editorial alternativo, esse em que autores publicam os próprios livros, os distribuem em vendas e lojas especializadas ou na internet, utilizam ferramentas de redes sociais e financiamentos coletivos. O mercado tradicional, que envolve as editoras médias e grandes de nível industrial, redes de livrarias, continua excludente.
Agora, em 2019, percebo algumas transformações importantes acontecendo, como algumas editoras finalmente publicando jovens autoras e alguns prêmios tradicionais estabilizando proporções razoáveis de homens e mulheres entre seus premiados. Infelizmente, os quadrinistas em geral não possuem noções de força de trabalho, direitos trabalhistas, direitos autorais, classe e carreira, todas essas noções importantíssimas pra que haja um movimento de legitimação dessa ocupação como uma profissão, um trabalho legítimo. Tenho observado instituições, empresas e iniciativas privadas se apropriando tanto das ferramentas de financiamento coletivo, das quais autores independentes dependem, quanto de pautas feministas e LGBTQ sem nenhuma preocupação real com a manutenção da carreira dessas pessoas. Editoras continuam se relacionando de forma abusiva e exploratória com seus autores e suas poucas autoras. Minha impressão geral é que as quadrinistas e os quadrinistas continuam se vendendo pelo lance mais barato em função de uma ambição totalmente individualista de fazer fama, desprezando a importância de gerar acordos e redes de apoio entre seus pares, desacreditando as possibilidades de melhorarmos as condições coletivas e contratos de trabalho dentro dessa área. O role dos quadrinhos, em termos trabalhistas, é na verdade bastante despolitizado.
Cada história tem seu objetivo mais específico, que se relaciona mais ou menos com questões de gênero, direitos reprodutivos, direitos indentitários e sexuais. Me interessa gerar discussões e debates internos ao movimento feminismo, tornando explícitas ou tentando amenizar nossas contradições ideológicas, teóricas, práticas. Porém tenho procurado manifestar essas intenções de formas que não sejam didáticas nas minhas narrativas.
Minhas histórias são explícitas, às vezes escrachadas, algumas ácidas e irônicas, tocam em temas sensíveis. Acho que é o suficiente pra ser considerada ousada.
O Segundo Sexo, de Beauvoir, Heterossexualidade compulsória e continuum lésbico, da Adrienne Rich, Dialética do Sexo, da Firestone, são textos importantes na minha formação feminista, cheios de questões interessantes para serem abordadas e que eu sempre volto a consultar. Atualmente procuro ler mais literatura de ficção e poesia, Octavia Butler, Margaret Atwood, Angélica Freitas, Jane Austen, Virginia Woolf, Mukasonga Skolastique. Sobre compor narrativas visuais, pesquiso bastante sobre a obra de Laura Mulvey e tenho descoberto agora Teresa de Lauretis.