Do terror à distopia
Quadrinistas de vários estados brasileiros mantêm produção variada e dinâmica, derrubando a noção de que certos gêneros são exclusividade de artistas homens
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Quadrinistas de vários estados brasileiros mantêm produção variada e dinâmica, derrubando a noção de que certos gêneros são exclusividade de artistas homens
No começo de abril perguntamos às pessoas que seguem a Mina de HQ no Instagram quais são as maiores bobagens que elas ouvem quando dizem que leem e/ou fazem quadrinhos. As respostas indicaram que muita gente – especialmente homens – ainda fazem uma conexão limitadora entre o trabalho de mulheres e a produção de HQs: “Ah, seu traço é mais delicado, né?”, “Você deve fazer boas histórias autobiográficas”.
Germana Viana, organizadora do Gibi de Menininha (GdM), avalia a noção de que certos gêneros, como terror e suspense, são exclusividade de quadrinistas do sexo masculino: “Acho que tem inúmeros fatores que fazem com que essa crença equivocada exista, e não apenas com quadrinhos, mas na sociedade como um todo. Só para citar alguns desses fatores: o trabalho que há anos é feito e reforçado pela mídia para passar a ideia de que mulheres são frágeis e delicadas; o apagamento histórico de mulheres que atuaram em carreiras que (não de maneira espontânea) foram atribuídas a homens; a associação errônea de que características como força, coragem, crescimento espiritual e jornada são masculinas – o buraco é bem mais embaixo e o terror/suspense é só mais um reflexo disso. O resultado é uma sociedade onde rola um desequilíbrio emocional e uma falta de aceitação pessoal algumas vezes, até em quem questiona esses modelos!”, afirma.
O premiado GdM surgiu do desejo de fazer terror e erotismo a partir de uma abordagem honesta. “Gosto muito dos dois gêneros, inclusive quando estão mesclados, mas bora admitir que nenhum dos dois foi sempre generoso com mulheres. Na maioria das vezes fomos e ainda somos usadas como cenário ou ferramenta de roteiro e até quando fala-se de um protagonismo feminino, ele caminha no olhar masculino de que a mulher foi violada e agora precisa se vingar ou que toda a sua jornada está ligada a algum homem importante na sua vida: pai, irmão, amante, marido. Daí a vontade de contar histórias de terror/suspense onde mulheres fossem escritas como pessoas”, diz Germana.
Capa da edição “Antonio” de Gibi de Menininha
Capa da edição “Carla” de Gibi de Menininha
A quadrinista Lalo destaca o que mais gosta na possibilidade de explorar o horror: “No meu quadrinho Queda eu já explorei sentimento de horror e gore de alguma forma. E tanto em Saimento quanto em Queda eu uso estas situações de medo e violência explícita para investigar algo banal e cotidiano que acompanha o estar vivo… É como se o gênero terror servisse de lente para falar do mundo. Para mim tudo é muito nonsense. Eu me assusto com construções do que é ‘normal’, e acho que nesses quadrinhos procuro mostrar essa sensação que tenho… De que a organização do mundo é violenta, e que não faz sentido”.
Assim como Lalo, Jéssica Groke assina uma história na antologia de horror 11:11. Todos os quadrinhos lidam com temas universais, como a morte, o desejo e a vida, e ela escolheu o universo dos pichadores para escrever e desenhar “Concreto”. “Eu sou muito fã da pichação de São Paulo, especialmente a modalidade de escalada. Foi daí que tirei a ideia de fazer um quadrinho de suspense. Imaginei a tensão, a emoção de um pichador que sai à noite pra escalar. Pensei em todos os pichadores que deram a própria vida por aquilo que acreditam, por aquilo que amam. Acho isso muito forte”, explica.
Arte de Lalo
Arte de Jéssica Groke
Já Amanda Miranda lança em 13 de maio a HQ Aparição, que integra a coleção Ugrito, publicada pela Ugra Press. “Entre o desaparecimento de uma mulher e a aparição de uma santa em uma janela, conto uma história terrivelmente comum sobre devoção e carne”, diz. A artista, que participou da coleção Tabu com o quadrinho Juízo, conta como surgiu o interesse por explorar o gênero de horror corpóreo e psicológico: “Desde criança assisto filmes de horror, e o body horror e terror psicológico são dois dos meus subgêneros preferidos, pela origem particular do terror que eles apresentam: o medo vem de você mesmo, de uma questão corpórea que você não controla ou de pensamentos seus que você não entende. Isso gera uma conexão muito forte e íntima com o leitor e a obra fictícia se torna um espaço seguro para o público lidar com seus medos”.
Arte de Amanda Miranda
Capa de “Juízo”, parte da coletânea “Tabu” publicada pela editora Mino
Júlia Lustosa, do coletivo Açaí Pesado, é outra artista que mostra que a produção de mulheres quadrinistas é variada e dinâmica em vários estados brasileiros. Ela é responsável pela arte da HQ Cyber Mosh, que tem roteiro de Lívia Guimarães e integra a revista Açaí Pesado III: Distopia Neocabana. É a primeira vez que Júlia desenha uma distopia, “um gênero que abre milhões de possibilidades para criação”.
“Quando começamos a pensar na história já tínhamos a certeza de que queríamos envolver elementos da nossa cidade (Belém), como uma forma de identificação da cultura local. A cidade onde a história se passa é como se fosse uma Belém paralela, então há cenários em lugares que realmente existem em nossa cidade, como a escola que Madu estuda, que foi inspirada em uma antiga farmácia da região. A banda Rabas Raivosas também é inspirada em uma banda de Belém, chamada Klitores Kaos. Acredito que é superimportante passar esse sentimento de reconhecimento e representatividade dentro do quadrinho”, afirma a artista de 18 anos.
Mandy Barros, editora da Açaí Pesado, destaca que a terceira edição da revista conta com 10 histórias, cinco delas com participações femininas. Ela afirma que muitas mulheres só não se aventuram na arte sequencial porque não se sentem aptas, por isso os laboratórios de quadrinhos são fundamentais para encontrar artistas interessadas em produzir narrativas de distopia, por exemplo. “O número atual de mulheres (na revista) ainda não me agrada, mas já é um avanço. No futuro espero que os números se igualem e que possamos ver uma quantidade significativa de mulheres sublimes invadindo esse universo”.
Arte de Júlia Lustosa
Arte de Júlia Lustosa
Gibi de Menininha Apresenta está com campanha de financiamento ativa no Catarse
Antologia 11:11 está com campanha de financiamento ativa no Catarse
Aparição, disponível a partir de 13/05 em www.ugrapress.com.br
Açaí Pesado III está com campanha de financiamento ativa no Catarse
Anne Ribeiro é jornalista, de Belém (PA). No perfil @pralerhq ela escreve sobre quadrinhos para debater política, questões de gênero e universo LGBT.
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