A sensibilidade das HQs de Lee Lai
Vitorelo conversou com a quadrinista não binária Lee Lai, da Australia, sobre sua HQ “Nectarina”, publicada no Brasil pela Editora Veneta
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Vitorelo conversou com a quadrinista não binária Lee Lai, da Australia, sobre sua HQ “Nectarina”, publicada no Brasil pela Editora Veneta
Nectarina é uma fruta meio mística cujo nome rítmico raramente se faz nas bocas dos brasileiros. Aí, de repente, ela surge em casa como num passo de mágica m/paternal. Nunca tive a coragem de comer uma nectarina em público porque eu me dedico ao ritual privado de comê-la sobre a pia da cozinha, já esperando pelo seu suco a me escapar. Perceber por que a HQ de estreia de Lee Lai chama-se Nectarina me rendeu um sorriso triste, ainda que se tratasse de outros ritos, outras memórias de uma vida privada que transborda as dores que mal cabem em uma mordida.
Lee Lai é natural de Melbourne, Austrália, e vive em Tio’tia:ke (também conhecido como Montreal), no Canadá. Nectarina, a ser lançada no Brasil pela Editora Veneta, é ganhadora de dois Ignatz do ALA Stonewall Award Honor e do Cartoonist Studio Prize, rendendo a Lai uma homenagem do National Book Foundation.
Acompanho o trabalho de Lee Lai pela internet já faz vários anos: é o tipo de artista que me fazia sentir menos sozinha enquanto autora não binária, principalmente num tempo em que não havia [o evento] Poc Con, tampouco se discutia pronomes neutros e neolinguagem nos quadrinhos (e, ainda bem, como pudemos acompanhar na última semana, quem faz trabalho de qualidade e de respeito, defende quem a utiliza). Foi uma feliz oportunidade conversar com Lai em uma coincidência em que ambas havíamos acabado de voltar de viagem e estávamos meio viradas – como muita conversa boa é. Falamos de design, desenho, o quadrinho como meio, a questão de se desenhar pessoas racializadas, e as esperanças pro futuro.
Fonte: Lee Lai (@_leelai)
Entre os muitos aspectos do quadrinho que me encantam está, em especial, o design da faceta animalesca das personagens, que se revela nos momentos em que Ray e Bron brincam com a sobrinha Nessie. Lai conta que “o desenho dos monstros foi bastante desafiador, embora tenham sido cenas muito prazerosas de se escrever. O processo de escrita foi muito intuitivo, essas cenas são a essência do livro. Quando comecei, havia muitas partes da história em que eu não sabia o que ia acontecer, ou eu não sabia o que eu queria que os personagens fossem”.
“Mas foi com aquelas cenas de brincadeira que eu comecei, porque eu sabia que era isso o que eu queria retratar: pessoas queer e seu cuidado com crianças, como são relacionamentos complexos ou relacionamentos que vão de encontro a diferentes tensões familiares. Eu também queria observar as diferenças entre laços biológicos e laços não-biológicos nas dinâmicas familiares. E, de alguma forma, ter isso sintetizado na ideia de ter criaturas selvagens brincando juntas era importante. O conceito de brincar como um tipo de liberdade foi sempre fascinante para mim”.
Fonte: Editora Veneta
Os leitores mais atentos notarão um ritmo visual em (quase) toda página: a história se desenvolve em quatro quadros com um guache que vai e vem. A composição dos quadros é a mesma, mas a relação entre eles se renova: ora funcionam de forma tradicional, indicando uma sequência de ações; ora funcionam como uma janela para dentro de outro mundo, indicando meramente a ordem de leitura dos balões.
“Eu gosto de um pouco de restrição em meu trabalho. Gosto de me prender a uma mesma coisa para que outras possam se expandir e serem exploradas, como a segurança de dizer para mim mesma que vou usar por todo o livro apenas dois tubos de guache, ou um layout de quatro quadros. Isso me dá espaço para experimentar e me dedicar a outras. Eu também gosto que tudo seja o mais legível e fluído possível. Muitos dos feedbacks que recebi do livro é que as pessoas o leem muito rapidamente, em uma única sentada – o que eu adoro. Eu quero que ele seja fácil de ser consumido nesse sentido, mesmo que ele seja mais desafiador em outros. Acho que um dos primeiros quadrinhos que eu li na vida foi Retalhos, de Craig Thompson, e em entrevistas ele também fala da importância de ser espaçoso no design de seus quadrinhos. Já li muitos quadrinhos que não são assim: são densos, cheios de detalhes. E eu também os adoro. Mas não é essa experiência narrativa que quero criar”.
Há outra questão que, embora importante para mim enquanto artista, leitora e indivíduo, é raramente discutida na mídia tradicional e especializada: a representação visual de pessoas asiáticas. E que Lee Lai tira de letra em Nectarina, me fazendo indagá-la sobre o assunto. Num primeiro momento, Lai fica na dúvida se estou me referindo ao fato de ela incluir pessoas de diferentes etnias em sua história (o que em si já dá pano pra manga), ou se estou me referindo ao jeito de desenhá-las. Para ilustrar melhor a pergunta, dei um exemplo que você, leitor, provavelmente vai também identificar: os momentos em que o desenhista opta por representar os olhos de asiáticos com “dois risquinhos”. É o que chamei em nossa conversa de “a semiótica de se desenhar raça”. Afinal, a própria Lai tem ascendência honconguesa e eu, japonesa, e eu acredito que autores asiáticos costumam ter uma preocupação maior com isso.
Fonte: Lee Lai (@_leelai)
“Minha família é de Hong Kong e da Austrália, então sou uma pessoa miscigenada que cresceu na Austrália, que é um país que tem um histórico muito particular em relação ao tratamento de seus imigrantes e pessoas racializadas em geral. Enquanto quadrinista e enquanto alguém que escreve ficção, essa questão de como desenhar traços raciais e como eles vão ser interpretados por outras pessoas tem estado muito na minha cabeça. Ainda que nesse momento haja muitos artistas não-brancos maravilhosos em destaque, os quadrinhos sempre foram um espaço dominado por pessoas brancas, então eu tenho consciência de que há um público branco considerável que vai ler meu trabalho e interpretá-lo de determinadas formas. Como resultado disso, eu não quero cair em clichês que reforçam uma tradição com a qual eu gostaria de romper”.
“Trata-se de simplificar os traços o máximo possível, transformar isso em um aceno da realidade ao invés de uma representação. Se você for examinar como as pessoas racializadas têm sido desenhadas historicamente, é muito pesado. Não se trata só de uma simplificação, há uma intenção maliciosa por trás. Na Austrália, por exemplo, houve a chegada de muitos imigrantes chineses entre o fim do século 19 e o começo do século 20, seja para abrir comércio ou para trabalhar nas minas de ouro. E os australianos brancos se sentiram muito ameaçados. Nessa época, houve muitos cartuns editoriais espalhando a ideia de Perigo Amarelo para desencorajar a população branca de comprar de chineses, ou para impedir que chineses conseguissem imigrar. E todos esses cartuns retratavam a população chinesa de uma forma muito específica”.
“E apesar de que hoje em dia nenhum jornal australiano publicaria uma charge assim, parte desses clichês permaneceram até hoje, como os olhos pequenos que apontam diagonalmente para baixo, ou o cabelo que é desenhado de uma forma bastante particular.”
Fonte: Lee Lai (@_leelai)
“Então acho que com esse intuito de não querer dar continuidade a esses estereótipos ofensivos, esse foi um tópico que eu pesquisei. Mas vai também para além disso, em termos do que eu desejo fazer no meu trabalho. Existem outras coisas que fazem com que uma pessoa asiática se pareça asiática. Além do mais, asiáticos de lugares diferentes têm aparências diferentes. Eu não quero homogeneizar a Ásia nesse sentido, eu desejo criar personagens que sejam mais únicos. Eu não tenho a expectativa que toda pessoa de descendência asiática vai reconhecer a si, ou a sua família, ou o quem quer que for em meus personagens. Mas tudo bem também. Acho que isso se desdobra em uma questão sobre representação mais rica; é um diálogo que está se tornando cada vez mais interessante.
Fonte: Lee Lai (@_leelai)
Deixei para o final a pior pergunta do mundo.
Veja bem, eu também sou autora de histórias. Muitas vezes na vida me vi autora e frequentemente me perguntei por que isso voltava a acontecer comigo. E eu costumo me convencer que isso tem algo a ver com ter algum tipo de esperança. Inventa-se porque você acredita em mudança, em algo que pode ser diferente e que muitas vezes é. E porque você acredita na potência de se expressar.
Nectarina é um livro sobre dores e términos, mas que, na minha interpretação, é também um livro cheio de esperança, do tipo mais sincero porque ela é agridoce – principalmente quando as alegrias das personagens são tão depositadas de forma tão direta na figura de uma criança. Então perguntei para Lai como ela se sente sobre nosso presente e nosso futuro, e onde ela deposita suas esperanças.
“Acho que depende do dia se eu acho que o futuro é um lugar esperançoso ou não. Há sempre muitas coisas que me deixam chocada, assustada ou preocupada. Há sempre notícias ruins, mas também há sempre coisas muito boas. Eu diria que, politicamente, sou de uma esquerda radical. E, como resultado, estou rabugenta e desconfiada de tudo – mas sou também uma grande otimista. E me sinto muito inspirada e animada pela multitude de esforços e ativismos que estão acontecendo para equilibrar todos esses acontecimentos terríveis. Então é isso o que me deixa esperançosa”.
“Me sinto muito esperançosa pela quantidade de crianças incríveis que existem. Cada vez que eu conheço os filhos de alguém, ou que fico ciente das crianças à minha volta, eu fico ‘uau, a próxima geração é foda. Eles vão ser muito mais legais do que nós, e com certeza muito mais legais do que nossos pais’. Com certeza me dá a sensação de progresso quando me deparo com a visão de mundo de pessoas mais jovens. Mas sim, ao mesmo tempo o capitalismo está mais sofisticado do que nunca, a globalização é aterrorizante e o planeta está ficando cada vez mais quente. Todas essas coisas acontecem ao mesmo tempo. Estou constantemente tentando entender como e onde a minha contribuição entra nisso tudo, e na verdade não acho que ela esteja necessariamente no meu trabalho, em relação às coisas que mais me preocupam. Também procuro sempre encontrar formas de contrabalancear isso com outros esforços. Quero escrever histórias que reflitam tanto preocupação como esperança ao mesmo tempo? …Talvez eu só saiba isso em retrospecto. E você?”
Nectarina está em pré-venda no site da Editora Veneta, e você pode acompanhar o trabalho de Lee Lai no Instagram (@_leelai).
Vitorelo é artista, autora de TILT (finalista Prêmios Dente e Grampo), sobre enxaqueca crônica e saúde mental, Tomboy (Mostra Diversa do Museu da Diversidade Sexual), sobre performance de gênero, e Lilibel, sobre demônios condenados ao inferno paulistano, e Kit Gay (Veneta), um manual que te prepara para o futuro, quando a alegria de viver e o respeito pela vida vencerão o preconceito, os ódios de gente recalcada, a alienação, as superstições e a estupidez. Seu trabalho autoral faz uso de experimentações gráficas e narrativas. Semioticista, pesquisa quadrinhos experimentais, resistência política e gênero. Siga: @vitorelo.art
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Vitorelo é artista, autora de TILT (finalista Prêmios Dente e Grampo), sobre enxaqueca crônica e saúde mental, Tomboy (Mostra Diversa do Museu da Diversidade Sexual), sobre performance de gênero, e Lilibel, sobre demônios condenados ao inferno paulistano. Seu trabalho autoral faz uso de experimentações gráficas e narrativas. Semioticista, pesquisa quadrinhos experimentais, resistência política e gênero. Siga: @vitorelo.art