Histórias Quentinhas
A importância da coletânea ‘Histórias Quentinhas’ e os finais felizes para as personagens LGBT+ nos quadrinhos
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A importância da coletânea ‘Histórias Quentinhas’ e os finais felizes para as personagens LGBT+ nos quadrinhos
Recentemente, enquanto estudava uma bibliografia sobre conhecimento e informação, me deparei com um artigo de Bernd Frohmann onde ele dizia que se algo não estivesse registrado em algum meio/suporte que contivesse algum peso ou massa, ou seja, que fosse considerado um documento, não exista institucionalmente. Ele afirma que não pode haver informação sobre um tipo X, se o tipo X não existir: “E se o tipo não pode existir sem documentação, então a documentação é necessária para que haja informação sobre ele”.
Basicamente, um dos papéis das publicações e dos documentos é justamente o de garantir que certas coisas possam existir historicamente. Isso significa dizer que não é absurda a ideia de que a sociedade aceita a ausência ou inexistência de certos grupos de pessoas, acontecimentos ou objetos uma vez que não existem registros sobre eles. Por exemplo, no início do séc. XIX houve uma “avalanche de números” e registros e classificações na área de documentação no Ocidente. Nessa época surgiram classificações e categorias de pessoas que não existiam em registros até então, como a categoria suicida e a categoria homossexual. Não havia pessoas que se matavam ou que sentissem prazer em relações com pessoas do mesmo sexo até então? Na ficção 1984, Orwell usou a ideia do empobrecimento da língua por meio da criação de uma nova língua que excluía a existência de certos termos, afinal, aquilo que não pode ser nomeado, não pode ser debatido, contrariado ou registrado. Assim, assegurar que todos os grupos de pessoas existam em diversas formas de registros, é uma forma de garantir que eles existam também na história. Não só isso, é por meio da existência dessas pessoas em registros dos mais variados que é possível que haja políticas públicas que garantam acesso a direitos básicos a todos os cidadãos de um país.
Então, o prefácio da pesquisadora Anne Quingala em Histórias quentinhas sobre existir nos presenteia com essa ideia sobre a importância da publicação e circulação de coletâneas como essa organizada pela Ellie Irineu. Essa contextualização feita por Anne no prefácio é fundamental para que os leitores se lembrem que uma história em quadrinho cujo tema gira em torno de questões sociais tem como objetivo e função muito mais do que simplesmente entreter. Entreter é bom, é necessário, mas as narrativas encontradas nessa publicação são, acima de tudo, narrativas de autoaceitação, empatia e sobre o direito de existir sem precisar justificar essa existência o tempo todo.
Em Eu não sou Gay, Ellie nos apresenta um adolescente em meio a questionamentos sobre a sua sexualidade a partir do contexto escolar, onde a masculinidade tóxica justificaria a necessidade que os meninos têm de se afirmarem hétero constantemente. Dessa forma, qualquer um que não represente o modelo de virilidade e masculinidade vigente sem suas performances cotidianas, está sujeito a sofrer diversos tipos de violência. Felizmente, há aqueles amigos que nos aceitam como somos e nos fortalecem até que possamos estar seguros para nos apresentarmos como realmente somos.
Nunca fui beijada, de Camila Abdanur e Emily de Moura, é uma HQ com uma vibe bem levinha sobre como é bom ter amigos que te incentivam a conseguir o telefone do crush para que finalmente você consiga um date. Apesar de ser tão verossímil como a história da Ellie, o espaço de tempo em que ela ocorre é menor e as ações se dão de forma bem dinâmica e natural, como outras representações deveriam ser também, afinal, nem tudo sobre o universo LGBTQIAP+ precisa ser um drama.
Primeiro date, da Dani Franck, traz o mesmo traço que ela costuma usar nas tirinhas da Vida de Nina em seu Instagram, e aborda aquele frio na barriga que a gente sente quando tem o primeiro date com alguém. A personagem Gabi está claramente ansiosa (quem nunca?) para encontrar a crush e a história se desenrola durante esse encontro que deixa um gostinho de “quero mais”.
Lembranças, de Giovanna Gim, traz um traço mais delicado e remete a uma HQ poética. A disposição do texto e das imagens para narrar as lembranças de um relacionamento às vésperas de seu aniversário transmite uma doçura e uma calma que esperamos encontrar em relacionamentos tranquilos. Essa história é sobre isso: sobre aprender e amadurecer juntos, sobre encontrar o amor e nutri-lo mesmo diante de adversidades.
Ing Lee nos fornece uma experiência muito intimista em sua HQ Geum, pois a personagem principal, Sun-Mi, conversa diretamente com o leitor e o faz de confidente do que ela viveu em seu último relacionamento com um homem abusivo. Além do processo de autoconhecimento e de cura vividos por Sun-Mi, há também o questionamento sobre como a sexualidade das pessoas bissexuais costuma ser deslegitimada constantemente. A experiência de imersão trazida pela HQ faz com que ela gere identificação por parte de quem a lê mais facilmente, não só porque nós mesmos já fomos esse confidente, mas porque muitos de nós já fomos também a Sun-Mi em algum relacionamento.
032 Parque Paraíso, de Gustavo Nascimento, também aborda o autoconhecimento que se dá quando precisamos amadurecer cedo demais. O protagonista dessa história é um rapaz gay que mora em São Paulo. Apesar de muitos dizerem que não há amor em São Paulo, nosso personagem consegue aprender que ele pode ser sua própria fortaleza e que isso não o impede de amar e ser amado, principalmente quando sua fortaleza abriga uma rede de pessoas que entende que quando se é LGBTQIAP+, a coletividade não é uma questão de escolha, mas de sobrevivência.
Em Ártemis, de Diana Salu, é uma HQ poético-filosófica onde o leitor conhece trechos da vida da protagonista por meio de flashbacks que são mostrados a partir da perspectiva visual da própria autora que está sempre desenhando, como se sua vida pudesse ser contada por meio dos desenhos que fez desde criança. Os diálogos de pessoas sem rosto, sempre a partir de balões, raramente deixam claro quem é o interlocutor de cada cena, exceto quando ela conversa com sua mãe e por meio desses diálogos, podemos montar um quebra-cabeças de sentimentos, pensamentos e ações na tentativa de descobrir um pouco mais sobre Ártemis e sobre como a arte exerce um papel fundamental em sua vida, principalmente quando se trata de representar quem realmente é.
Cartas para minha mãe, de Aureliano, é exatamente o que seu título insinua, pequenas cartas em forma que quadrinhos onde o autor reflete sobre seus 30 anos, sobre a não aceitação de sua mãe em relação à sua sexualidade e sobre como ele tem lidado com isso. Cartas para minha mãe é aquele momento em que tiramos algo entalado na garganta e ponderamos sobre perdão e autoaceitação e sobre se é possível conviver com certas verdades. Todo mundo deveria fazer uma HQ parecida, mesmo que de fato não publicasse ou enviasse a alguém porque o simples exercício de nomear certos sentimentos pode ser suficiente para que possamos seguir em frente. Para nossa sorte, o Aureliano compartilhou essa HQ nessa coletânea, então, que sejamos capazes de reconhecer a beleza que há em sermos quem somos, independentemente da aceitação de pessoas que amamos.
Arte de Dika Araújo para a capa de Histórias Quentinhas Sobre Sair do Armário
Ellie também organizou anteriormente a coletânea Histórias Quentinhas sobre sair do armário. Com capa de Dika Araújo, a proposta foca no momento em que alguém descobre LGBTQIAP+ e em vez de conhecer apenas histórias tristes que te lembram sobre como o mundo pode ser cruel, pudesse ter acesso a narrativas quentinhas, que te abraçam e te mostram que você não está sozinho. Imagina se te contassem que existe sim possibilidade de felicidade em você ser quem você realmente é! Pois é exatamente isso que essa coletânea de quatro histórias curtinhas traz pra você.
As autoras, todas LGBT, garantem que cada HQ tenha um final feliz:
Annima de Mattos, com a história Lua Crescente
Aline Lemos, com a história E Daí?
Ellie Irineu, organizadora, com a história Melhores Amigas
Renata Nolasco, com a história Meia da Sorte
Sair do armário pode ser um dos momentos mais difíceis na vida de alguém: medo de como a família irá reagir, medo do futuro, medo de como os amigos irão lidar. Mas não precisa ser assim, né? Não precisa ser algo traumático se as pessoas, de maneira geral, perceberem que gênero e orientação sexual são questões naturais e que deveriam ser tratadas como tais.
As histórias são bem diferentes entre si e abordam situações recorrentes na vida de quem está saindo do armário, desde a compreensão de si mesmo às reuniões familiares: “Ah, mas os bissexuais são promíscuos, indecisos, estão passando por uma fase”, “Se ela é mulher trans, como é que pode gostar de mulher?”, “Se ele é bissexual, será que ficaria com um hétero como eu?”, “Será que meu visual interfere na percepção que as pessoas têm da minha sexualidade?”
Histórias Quentinhas é a coletânea que todo/a LGBTQIAP+ deveria ter em casa e que muitas pessoas gostariam de ter lido quando se viram sozinhas em situações semelhantes. Mas também é o tipo de leitura que todo hétero deveria fazer, não só para que desenvolva mais empatia pelas pessoas com quem convive, mas para entender que nem toda narrativa sobre diversidade de gênero e sexual precisa ser um drama. Há finais felizes para todos.
Dani Marino é Mestra em Comunicação pela ECA/USP e pesquisadora de Quadrinhos e cultura pop especializada em questões de gênero. Integrante da Associação de pesquisadores em Arte Sequencial, a ASPAS, publicou diversos artigos e capítulos de livros no Brasil e no exterior, e é também uma das organizadoras do livro Mulheres e Quadrinhos, vencedor em duas categorias no troféu HQMIX 2020.
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Dani Marino é especialista em histórias em quadrinhos e questões de gênero. Mestre em Comunicação e doutoranda em Ciência da Informação pela ECA/USP, também atua como professora de Literatura Inglesa. Ganhadora de 2 troféus HQMIX com o livro Mulheres e Quadrinhos, que organizou com Laluña Machado, já colaborou com diversos sites e canais especializados em cultura pop.