O manual da minotaura
Vitorelo conversa com Laerte sobre o lançamento do livro “Manual do Minotauro”, que reúne tiras da artista publicadas entre 2004 e 2015
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Vitorelo conversa com Laerte sobre o lançamento do livro “Manual do Minotauro”, que reúne tiras da artista publicadas entre 2004 e 2015
A figura do minotauro é curiosa: sendo duas coisas ao mesmo tempo, também está condenada a jamais ser nem uma coisa, nem outra. Tenho na memória, de forma muito cinematográfica, as sombras que Laerte ilustrou no seu quadrinho “Minotauro”, publicado em 1989 na revista Geraldão. Elas foram depois expostas na Ocupação Laerte em 2014, no Itaú Cultural. De forma muito apropriada, a Ocupação configurava-se como um labirinto de desenhos, memórias, histórias, pistas do que seria, afinal, Laerte.
Conversei com Laerte sobre seu livro, a ser lançado pelo selo de quadrinhos da Companhia das Letras, o “Manual do Minotauro” – o título, de certa forma, já sugere uma contradição: enquanto que “minotauro” é lembrado por estar eternamente perdido em um labirinto sob medida para conter a própria selvageria, “manual” opera na lógica oposta como ferramenta de direções certeiras e descritivas, domesticadas.
O livro é uma coletânea de mais de 1500 tiras produzidas desde 2004, que possui mesmo nome do blog em que as tiras vinham sendo reunidas e que, por sua vez, possui o mesmo nome que a primeira série de tiras postada, protagonizada pela familiar figura do Minotauro. Foi a partir daí que Laerte se aventurou a repensar sua forma de criar e, por que não, até repensar sua forma de pensar. “A intenção dessa coletânea é apresentar o material que vem sendo publicado em jornal”, ela explicou. “É específico de uma produção que nunca tinha sido publicada em livro antes, que são tiras de uma fase do meu trabalho onde eu já não uso mais personagens e nem uso os tradicionais roteiros para piadas”.
Sobre a escolha das tantas tiras que entrariam no livro, me identifiquei com a dificuldade de Laerte em gostar de trabalhos antigos, algo que ela reconhece como uma dificuldade pessoal. “Alguns em especial eu acho que não estão bons mesmo e aí eu limei, tirei fora; alguns deles eram experimentais demais e eu limei também (…) O que tá ali são tiras que eu acho legais para, assim… Publique-se, imprima-se… Como chama aquilo que a prefeitura faz? Habite-se!”.
O parto de um livro é laborioso e, naturalmente, o desenvolvimento do projeto e seu lançamento foram afetados algumas vezes pelas crises: econômica, sanitária, social… “Estamos vivendo uma puta crise, um momento horroroso e absolutamente dramático (…) No meio dos círculos do inferno o livro bate as asinhas”. Asinhas que certamente trazem conforto para muita gente.
E quando perguntada sobre projetos futuros, Laerte riu e completou: ah, nem me fala…
“Até já falei desse projeto várias vezes, acho que vou até parar de falar porque tem uma coisa que a gente faz, que a gente não se aguenta e sai falando do que está fazendo”, Laerte diz sobre o trabalho ambicioso e suas discretas aparições no Twitter. “É um mega projeto, já me consumiu uma boa quantidade de neurônios. Ao longo de 10 anos eu venho me debruçando sobre esse projeto a toda hora, eu volto lá e redesenho, refaço, emendo, costuro – chegou num ponto que estava com 300 e tantas páginas e falei: não, pera aí, tenho que tomar cuidado senão eu nunca vou fazer isso”. Atualmente, Laerte chegou à conclusão de que a história, que já está toda desenhada em rascunho, não para em pé e corre o risco de se transformar em 10, 15 páginas. “Eu tenho que ver o que justifica essa história toda, sabe. Eu estou nessa fase em que dei uma parada na história, não estou conseguindo tocar ela na pandemia. E é isso, era um projetão grande, e agora nem sei mais definir qual é a meta ali”.
A capa do livro O Manual do Minotauro
Laerte (Foto: Divulgação)
Me identificando com esses momentos de contemplação, criação e muita frustração ao longo do processo criativo, comentei que me parecia natural ter esses diferentes fluxos. “É diferente você ter um projeto desses chegando aos 70 anos e com 50 de carreira. Existe uma… Não sei, o que eu vou falar agora é meio besteira… Ouça assim mesmo (risos)”.
“Existe uma certa tendência a pegar e fazer a obra da sua vida. É meio instintivo, você sabe que já viveu 70 anos e trabalhou durante 50, então dá aquele tesão de ‘vou fazer o grande resumo de minha obra’ (risos), e isso pode ser uma grande ilusão, porque pode muito bem ser que você não seja do tipo que faz grandes resumos – pode ser que você seja do tipo de artista que GOSTARIA de fazer grandes resumos, um fecho de ouro, mas não é assim que você é, então você precisa em algum momento reconhecer as suas tropas e olhar as suas forças, suas possibilidades, e fazer um levantamento: ‘o que eu tenho? QUEM sou eu?’. Eu não sei, ainda estou fazendo análise e tentando chegar nessa conta. Quem sou eu?”.
Foi assim que chegamos no papo das relações entre processo criativo, terapia, e a (falta de) liberdade criativa que às vezes temos. “Quando te pedem determinado trabalho e existe ali determinada expectativa, a sua tendência é concordar e trabalhar dentro de uma determinada linha”. Não por acaso, foram essas amarras que levaram Laerte a procurar outras formas de criar, levando-a ao que se tornou o Manual do Minotauro, com um conteúdo mais experimental, filosófico e por vezes até surrealista. Conhecida até então principalmente pelo seu trabalho de tiras de humor mais convencionais, Laerte começou a se perguntar sobre outras possibilidades e potências do seu fazer artístico. “Na mecânica de se dirigir um automóvel, chama-se ponto morto. O que eu queria descobrir é onde você não está engatada em nada, sabe? Você não está nem na primeira, nem na ré. Qual é o seu ponto livre?”, conclui.
Comentei sobre como tinha a impressão de que, enquanto pessoa trans, as expectativas que as pessoas têm com nosso trabalho é parecida com as expectativas de gênero – afinal, a forma como a gente se monta e se mostra é muito deliberada e também não é. “Está coberta de razão. Tem uma expressão também: você está prenha de razão (risos). É um comentário de gênero”.
“Essa coisa toda de gênero repousa em modelos, expectativas de modelos, de modelos prontos… Sei lá, por que eu fico depilando a perna, por exemplo? Não tem nada que explique ou exija isso, eu posso sair com a perna do jeito que eu quiser. Mas por que eu fico depilando, então? Porque existe uma série de modelos que me interessam e acabam formatando meu modo de ser trans”.
Para encerrar a conversa, pedi um conselho, aberto, “para uma jovem artista”. Laerte não sabia bem o que acrescentar – e eu achei isso o máximo. Apesar de Laerte achar que não havia nada que ela pudesse oferecer por ter iniciado sua carreira em um tempo tão diferente desse mundo digital de agora, é impossível não se enxergar na sua forma genuína de dar um não-conselho. E isso é reconfortante.
“Minha experiência não vale quase nada (risos). Minha experiência pode ser frutífera é numa conversa. Numa conversa parelha, sobre arte, sobre humor, sobre a natureza do nosso trabalho. Mas nesse ponto, sei lá, o que minha experiência significa? Ah, eu estou falando merda”. Nós rimos e ela explicou: “O que eu quero dizer é que minha experiência em princípio não é um conhecimento que me habilita. Não me coloca em uma situação superior a qualquer pessoa que está começando agora. Bom, esse é um dos problemas que eu tenho também. Manja, né? A famosa síndrome do impostor”.
Um clássico. Ela concordou: “um clássico instantâneo”.
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Vitorelo é artista, autora de TILT (finalista Prêmios Dente e Grampo), sobre enxaqueca crônica e saúde mental, Tomboy (Mostra Diversa do Museu da Diversidade Sexual), sobre performance de gênero, e Lilibel, sobre demônios condenados ao inferno paulistano. Seu trabalho autoral faz uso de experimentações gráficas e narrativas. Semioticista, pesquisa quadrinhos experimentais, resistência política e gênero. Siga: @vitorelo.art