Uma potência irrefreável
À frente de importantes projetos e vencedora de dois troféus HQMix, Laluña Machado é uma das mais importantes pesquisadoras de quadrinhos do país
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À frente de importantes projetos e vencedora de dois troféus HQMix, Laluña Machado é uma das mais importantes pesquisadoras de quadrinhos do país
Não sei exatamente quando conheci o nome de Laluña Machado. Como disse a ela dia desses, a impressão que tenho é a de que ela sempre havia estado ali, um expoente dessa geração de críticos e pesquisadores de quadrinhos: a maior especialista em Batman do Brasil. E me lembro de achar absolutamente fantástico que, nesse meio tão permeado de misoginia que ainda é o fandom de super-heróis, eles tivessem que engolir que a pessoa que mais entendia desse personagem, muitas vezes tomado como personificação de um entendimento tóxico de masculinidade… fosse uma mulher. Preta. Do vale. E nordestina. Assim como eu.
Me via, portanto, representada por sua figura em um nível muito íntimo. Me deixava feliz ver esse espaço que ela ocupa. Um espaço que eu via crescer cada vez mais. E hoje o nome de Laluña já circula como referência da pesquisa e da crítica de todo o universo dos quadrinhos, de alguém imersa e atenta ao cenário nacional, dando palestras, escrevendo artigos, dando entrevistas, concebendo projetos…
Todas essas atividades são relacionadas àquilo que você pode encontrar em seu lattes e/ou em sua página na Wikipedia: Laluña Gusmão Machado é historiadora, formada pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), na cidade de Vitória da Conquista, onde foi uma das fundadoras do grupo de pesquisas “Hquê?” e apresentou um TCC sobre os discursos presentes no primeiro seriado do Batman, produzido em 1943 no contexto da Segunda Guerra Mundial. Pós-graduada em Docência e Prática no Ensino de História, Laluña atualmente é membro do Observatório de Histórias em Quadrinhos da ECA/USP, do Observatório Carioca de Quadrinhos e da Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial (ASPAS), além de coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Sonia Maria Bibe Luyten, da Gibiteca de Santos.
Nos últimos anos, Laluña figurou em várias publicações, como os livros comemorativos do universo do Homem-Morcego, editados pela editora Skript; mas os destaques ficam, sem dúvida, para o livro Mulheres & Quadrinhos (2019) parte pesquisa acadêmica, parte coletânea de quadrinhos (organizado junto com a também pesquisadora — e também referência — Dani Marino); e História dos Quadrinhos: EUA, um monumental volume de quase mil páginas, escrito com o também pesquisador e editor Diego Moreau. Ambos saíram também pela Skript; o primeiro foi vencedor do prêmio HQMix de 2020 em duas categorias (Melhor Livro Teórico e Melhor Publicação Mix), além de ter recebido uma indicação ao troféu Angelo Agostini; o segundo valeu a ela, agora em 2022, mais um HQMix de Melhor Livro Teórico.
Também não me lembro da primeira vez em que passamos, enquanto duas profissionais do cenário dos quadrinhos brasileiros, a nos comunicar e a trocar ideias pelas redes. O que sem dúvida não vou esquecer jamais é da primeira vez em que nos conhecemos pessoalmente, após todos esses anos: enquanto colegas de júri técnico da categoria Quadrinhos da primeira edição do CCXP Awards (prêmio criado pelo gigantesco evento de cultura pop que acontece já há oito anos no Brasil), enfim nos encontramos na cerimônia de premiação.
Laluña tem um sorriso fácil, uma presença calorosa e um entusiasmo arrebatador. Um interesse evidente e genuíno em estabelecer trocas com as pessoas, envoltas em estímulos e afetuosidade. Alguém que faz você se sentir em casa desde o primeiro momento, e tenho a felicidade de dizer que pudemos repetir esse encontro e essas trocas outras três vezes neste ano, em outros eventos de quadrinhos. Foi no último deles — a CCXP, enfim de volta ao formato presencial após dois anos suspensa devido à pandemia de Covid-19 — que tentei me sentar com Laluña para descobrir sobre ela o que talvez você não ache nas páginas de internet. A questão é que, para além de nossas funções ali (eu com uma mesa no Artists Valley, representando a revista Plaf; ela, como convidada para debates), havia também toda a euforia que permeia o evento — e não consegui fazer todas as perguntas que eu queria.
CCXP 22 – Montagem de Antônio Carlos Rodrigues da Silva
Porém, num breve momento de rara calmaria, sentadas por trás de nossa mesa (espaço que foi cedido à Plaf, aliás, por convite da Mina de HQ e de Gabi Borges, convidada da CCXP), lhe peguei “de surpresa” ao questionar qual havia sido o primeiro gibi que ela tinha lido na vida.
“Sempre me perguntam qual foi o primeiro quadrinho do Batman que eu li. Nunca o da vida.”
E Laluña contou que, diferente do que se poderia supor, os quadrinhos não entraram cedo em sua vida. Falou de sua vida na cidade de Itapetinga, no interior da Bahia, onde teve uma infância, em suas palavras, de moleque: jogando bola, andando de bicicleta, andando sem camisa “até me crescerem os peitos” e jogando Super Nintendo nas lojinhas da cidade, em que uma hora de jogatina no console custavam R$ 1 — foi lá que, com um dos jogos do personagem, Laluña teve despertado seu interesse pelo Batman, reforçado ao ver na TV os filmes do Homem-Morcego das eras Burton e Schumacher, junto com seu pai (que até fez pipas para ela com estampas do Batman). E que seu primeiro gibi, na verdade… foi da Marvel.
No programa Conversa com Bial sobe o Batman
Em 11 de setembro de 2001, Laluña era uma menina de 11 anos muito chateada com a súbita interrupção da transmissão de Dragon Ball, um de seus desenhos animados favoritos — e posteriormente em choque com a razão dessa interrupção. Cerca de um ano depois, voltando da escola, Laluña parou em uma banca de revistas “atrás de TodaTeen e esses bagulhos do tipo”, mas se deparou com a edição de Homem-Aranha que homenageia as vítimas do atentado do ano anterior, escrita por J. Michael Straczynski e desenhada por John Romita Jr. Laluña decidiu pegar a revista, movida pela lembrança de um evento tão marcante; e aquela história lhe causou um novo impacto. “Eu não sabia que aquilo poderia ser feito nos quadrinhos”, contou ela. E talvez não seja exagero dizer que sua vida começaria a tomar ali o rumo que a levou a ser a referência que é hoje.
Existe, contudo, uma outra dimensão ainda mais particular naquele momento, que envolve ainda um processo de redescoberta de si — em um período já formativo por definição.
“Por conta de um problema no quadril, passei quase um ano em uma cadeira de rodas”, conta Laluña. “Então, só o fato de poder sair da escola e voltar pra casa andando, passar numa banca pra comprar um gibi… eu estava voltando a ser criança.”
Não à toa, Laluña tem até hoje essa mesma edição — que ela planejava pedir a John Romita Jr. que autografasse, na CCXP de 2019. Mas Laluña não pôde comparecer ao evento: havia passado por uma cirurgia naquele mesmo período, que lhe garantiria nunca mais precisar de uma cadeira de rodas. O que era, é claro, uma ocasião feliz — e o que poderia ser motivo de frustração virou o que levou Laluña a reler a história, depois de vários anos, como uma espécie de reencontro com esse momento tão fundamental. “E é irônico que eu esteja te contando sobre isso aqui, no Artists Valley, onde ele estava naquele dia e eu não pude estar.”
Desenho de sua autoria na exposição de 80 anos do Batman no Festival Geek de Santos em 2019
Assim, Laluña nunca passou pela “fase Turma da Mônica” em sua educação como leitora de quadrinhos. Na verdade, os quadrinhos só se tornaram mesmo um hábito durante a faculdade de História — que é, na verdade, seu segundo curso universitário; Laluña antes iniciou os estudos de Direito, mas “quando seu professor de ética é detido por ter um bingo clandestino, você se questiona se escolheu a profissão certa”, contou Laluña às gargalhadas, a melhor aluna de História da sua classe e que havia optado pelo Direito pela necessidade em estudar tal disciplina, muito exigida no vestibular para o curso. “Então eu sempre quis História”, afirmou ela. “Foi lá que eu me tornei a agente social, a pessoa e a pesquisadora de quadrinhos que eu sou.”
Nossa conversa foi interrompida nesse ponto e, infelizmente, não conseguimos continuá-la pessoalmente. Nós a retomamos posteriormente, mais uma vez, trocando mensagens — e foi quando ela falou de André, amigo da faculdade e mais um elemento crucial na trajetória de Laluña. O que os uniu num primeiro momento foram as conversas sobre as histórias em quadrinhos de viés histórico — Laluña havia acabado de passar pela desagradável experiência de ler os Borgias, de Jodorowski e Manara. As conversas viraram coisa séria quando eles fundaram o HQuê? e mudaram seus objetos de pesquisa, que já estavam muito bem encaminhados, para poderem estudar histórias em quadrinhos. “O André foi uma das pessoas mais importantes da minha vida. A gente costumava brincar que éramos Frodo e Sam”, conta Laluña da referência aos amigos protagonistas da saga O Senhor dos Anéis. “Infelizmente ele faleceu muito novo. Mas nunca tirei dele o mérito das coisas que eu conquistei até aqui. Acabei chegando lá ‘sozinha’, mas eu sei que ele tá sempre por perto.”
A pesquisa que Laluña acabou por fim realizando, que foi seu trabalho de conclusão de curso e o início do aprofundamento de sua relação acadêmica com o Batman, não foi planejada: ela nunca se considerou uma “batmaníaca”. O tema surgiu em uma ida sozinha ao cinema, algo que fazia por hábito quando o tempo permitia. E em uma passada nas Lojas Americanas antes da sessão, Laluña se deparou com um box de DVDs da série do Batman de 1943 — o que lhe causou surpresa já que, até então, ela conhecia (como a maioria de nós) apenas a célebre série de 1966. “Quando eu assisti aos episódios, minha cabeça explodiu”, ela conta. “Aquela coisa em preto e branco, com o Batman fazendo propaganda armamentista e de patriotismo compulsório — totalmente diferente dos filmes do [Christopher] Nolan, que eram meus preferidos. E ali eu tinha achado meu objeto.”
Painel sobre pesquisa acadêmicade quadrinhos na CCXP
Fundar o grupo de pesquisa e coordená-lo por quatro anos fez com que Laluña fosse reconhecida como uma especialista da área em Vitória da Conquista, onde fica a UESB, e para onde ela se mudou aos 17 anos, para estudar: era convidada para palestrar em escolas, nos poucos eventos que aconteciam na cidade (a 3a maior da Bahia)… mas após se formar, Laluña começou a perceber que aquele cenário já vinha se saturando. E foi a partir da participação no podcast HQ Sem Roteiro — do pesquisador e professor PJ Brandão, o primeiro, segundo Laluña, a se interessar por sua pesquisa e convidá-la para falar sobre o tema — que ela foi estreitando relações com outros profissionais do meio. Uma das mais importantes, é claro, foi aquela que hoje é uma das principais parceiras de Laluña. “Nunca tinha falado com a Dani Marino, só a conhecia pelos textos; daí eu sofri um acidente de trabalho e fiquei uns três meses sem andar, enquanto a Dani travou a coluna — e só o que tínhamos pra fazer era conversar; a gente só falava de quadrinhos o dia inteiro.”
Depois de recuperada, Laluña foi convidada pela Gibiteca de Santos a apresentar seu trabalho. E a viagem, que deveria durar três dias, durou treze. Dois meses depois, Laluña se mudava definitivamente para Santos “Eu senti que precisava espalhar mais o que eu tinha aprendido, o que estava aprendendo”, ela conta. “‘Santos vai me dar o que eu preciso’, eu pensei — e continua dando. Já estou aqui há quatro anos e nunca vou dizer que foi fácil, mas foi a melhor decisão que eu tomei.”
O período anterior à mudança havia sido realmente difícil para Laluña: recém-formada, ela sofreu um acidente de trabalho na universidade em que lecionava — mas as filmagens das câmeras do local foram apagadas e ela não foi indenizada; André, o grande amigo e parceiro, descobriu uma leucemia e veio a falecer no curto período de apenas uma semana. Tudo isso a levou a um processo depressivo. E a mudança para Santos, ela afirma, foi um resgate de si mesma. “Foi literalmente a luz no fim do túnel — que você vê quando desce de São Paulo para cá. Os quadrinhos fizeram isso por mim. Ainda fazem.” E é por isso que Laluña afirma sempre:
“Os quadrinhos salvaram a minha vida.”
Desde então, seu trabalho foi se tornando cada vez mais conhecido, juntamente com uma ampliação de seu campo de pesquisa. Muito embora ela ainda seja conhecida como a maior especialista acadêmica em Batman do país, Laluña é hoje uma referência na pesquisa e na crítica em quadrinhos como um todo. “As pessoas acham que, por ser especialista em Batman, eu só devo ler Batman; claro que não!”, se ri Laluña. “Tenho que ler um monte de livros teóricos — só a pesquisa de HQs no Brasil são cinquenta anos —, livros sobre estrutura e narrativa, de temas específicos das representações. Foi muito estudo.”
Mas o procedimento de aquisição de conhecimento de Laluña não se resume aos processos formais. Para ela, a troca de ideias com pares e outros profissionais, o contato com o conhecimento empírico, é um dos elementos mais prezados de sua formação. E ela também tentar expandi-la para além de sua zona de conforto — como na aula de desenho que fez recentemente com o premiado quadrinista Jefferson Costa.
“Fiquei pensando, ‘eu sou pesquisadora, o que eu tô fazendo aqui?’. Mas a maneira como eu leio quadrinhos vai mudar a partir dessa aula. Os quadrinhos são uma linguagem e, se eu me limitasse aos super-heróis, eu seria uma pesquisadora medíocre. E ainda que a síndrome de impostora apareça de vez em quando, hoje tenho mais segurança pra bater o pé e dizer que essa mulherona da porra aqui não é uma pesquisadora medíocre. Nunca foi e nunca vai ser.”
Com Jefferson Costa na Gibiteca de Santos
O processo de se reconhecer como essa mulherona da porra não foi fácil — e isso é algo com o qual a maioria das mulheres, principalmente em campos profissionais dominados por homens, pode se identificar. Foi com o foco no trabalho e a relação de companheirismo e acolhimento encontrados junto a outros pares que Laluña foi quebrando todas as barreiras que eram erguidas diante dela. A primeira, ela conta, foi a academia: não só o desafio de estudar quadrinhos dentro desse ambiente, algo que, em muitos centros, ainda é visto com desconfiança; mas também poder fazer com que o conhecimento que construiu rompesse essa bolha e alcançasse um público maior — uma maneira, ela diz, de retribuir o fato de ter se formado em uma universidade pública, paga pelo povo.
Outras barreiras se mostraram justamente no momento em que saiu da Bahia. “Eu fui racializada depois que vim para o Sudeste, e aí entra o racismo estrutural”, observa. “E várias coisas que nos atravessam vão se refletindo no trabalho de pesquisa: o foco vai mudando. Antes, meu objetivo com a pesquisa era contar essa história, a partir de uma perspectiva de análise do discurso… mas depois de vir pro sudeste e perceber a quantidade de alvos que eu tenho nas costas, sendo nordestina, não branca, lésbica, meus filtros se tornaram outros e eu comecei a questionar coisas, como onde estavam os pretos em Gotham, onde estavam os LGBTQIA+. E isso é algo em que quero me aprofundar ainda mais no ano que vem.”
Homenageada pela Secretaria de Cultura de Santos por sua contribuição à cultura e à pesquisa na cidade durante o primeiro festival de arte preta de Santos
Um trabalho de dez anos que continua em plena ascensão, refletido nesses últimos anos em livros premiados, convites para eventos de renome e planos para obras futuras — uma delas em conjunto com a renomada pesquisadora de quadrinhos Sônia Luyten, autora, entre outras importantes obras, do livro “O que é Histórias em Quadrinhos” (parte da clássica coleção Primeiros Passos, da Editora Brasiliense). A obra contará com uma nova edição, que trará o texto original de Luyten e uma versão atualizada de Laluña. E em um ano em que foi até mesmo condecorada pela prefeitura de Santos, em reconhecimento ao seu trabalho, Laluña diz que a maior das felicidades foi ver o orgulho nos olhos de sua mãe. “Uma mãe preta, viúva, solo, poder olhar pra mim e dizer que valeu a pena todo o esforço que ela fez pra me dar a melhor educação possível, valeu mais do que qualquer coisa”, ela afirma. “Claro que a gente gosta de ganhar um prêmio, ser qualificada e legitimada: é um poder simbólico, e nós estamos dentro de um sistema no qual precisamos disso — ainda mais sendo a mulher que sou, com tantos atravessamentos. Mas isso foi o que me deixou mais feliz.”
Creio que não só Dona Noeme — todos os que acompanham de perto o trabalho de Laluña também podem se orgulhar em ter uma profissional de seu gabarito fortalecendo ainda mais a cena dos quadrinhos brasileiros. Eu, com certeza, sou uma delas: caso não tenham percebido até aqui, não existe uma única vírgula de suposta neutralidade neste perfil. Ele é uma homenagem declarada a um dos nomes que considero hoje mais fundamentais em nosso meio, pela extrema competência, pela combatividade e pela pessoa que é. Alguém por quem nutro profunda identificação e admiração, que só se intensificaram ao ver, daqui, suas contribuições ao meio e suas conquistas, e também em nossos recentes encontros — nos quais fui eu quem sentiu o acolhimento do qual ela falava alguns parágrafos atrás. Laluña Machado é o que mais precisamos (não só nos quadrinhos) nos contextos de silenciamento que vivenciamos — e hoje diz com todas as letras que o é: uma voz. “E os outros são eco.”
Dandara Palankof é jornalista, tradutora de quadrinhos e editora da revista Plaf
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