Vivências sobre a transgeneridade e a lesbianidade
Ellie Irineu entrevista Diana Salu, autora de “Cartas Para Ninguém”, livro lançado pela Padê Editorial e que mescla poesia e desenho
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Ellie Irineu entrevista Diana Salu, autora de “Cartas Para Ninguém”, livro lançado pela Padê Editorial e que mescla poesia e desenho
Conversamos com Diana Salu, um importante nome da cena independente dos quadrinhos no Brasil. Não bastasse o trabalho incrível que transita entre mídias diversas e aborda temas pessoais de maneira honesta e visceral, foi co-fundadora da Editora MÊS e é uma das responsáveis pela criação da Feira Dente, um dos principais eventos deste mercado no país.
Seu trabalho mais recente é o livro Cartas Para Ninguém, lançado em 2019 pela Padê Editorial, que mescla poesia e desenho levando o leitor numa viagem através da vivência da autora com a transgeneridade e lesbianidade.
Sempre li muito quadrinho, muito mesmo, de vários tipos. É aquela coisa de quem gosta de uma coisa e tem vontade de fazer. Minha relação tem mudado bastante, mas foi bem isso.
O que me manteve até hoje não sei se é insistência ou se é só uma linguagem com a qual eu me entendo, ou entendo como funciona. Comecei a fazer quadrinhos em 2013. Junto com o Daniel Lopes comecei a MÊS, que era uma zine mensal descompromissada e acabou virando uma editora. Ela durou cinco anos, de 2013 a 2017, e nesse período nunca parei de produzir quadrinhos.
Cheguei em um ponto ficar bem cansada do mundo dos quadrinhos, de ter muito trabalho e pouco retorno. O Brasil ainda é um ambiente muito São Paulo-cêntrico, parece que se não estamos em São Paulo a gente não existe. Atualmente me considero uma pessoa que faz coisas híbridas, acho que essas limitações entre mídias e linguagens hoje em dia estão cada vez mais frágeis e invisíveis, e tenho pensado como meu trabalho pode dialogar com as pessoas de formas mais amplas.
As cartas começaram bem esporadicamente, fiz duas para a zine MÊS de dezembro de 2016, depois mais algumas. Aí um pessoal de Brasília me chamou pra um projeto de aplicativo chamado Trilhas Poéticas. Você criava trilhas em um ponto da cidade, e quando a pessoa chega naquele ponto ela recebia um conteúdo no celular. Então fiz a trilha de Cartas Para Ninguém em ruínas da cidade. Aquelas cartas sobre ruínas são todas de algum lugar aqui do DF.
Quando recebi o convite da Padê Editorial no início do ano passado, mostrei que já tinha essas cartas prontas. Ao juntar as cartas vi que não eram só cartas: tinha poemas, textos soltos, e aquilo tudo se amarrava de alguma forma e contava a história do que eu tinha vivido até ali.
É a primeira vez que faço um trabalho autobiográfico, mas tem sido tranquilo por ser justamente sobre entender os lugares que ocupo, os não-lugares que ocupo e me reconhecer nessas frestas e falhas. São temas muito pessoais, mas ao mesmo tempo são frutos de um processo bem lento e profundo de auto-conhecimento que vem me acompanhando. Não fiz pensando em mostrar para alguém e sim porque eu precisava fazer para mim.
Em algum momento percebi que queria colocar isso pra fora, e hoje cheguei num entendimento melhor e mais profundo sobre quem eu era e como essas coisas se relacionavam. Como ser mulher trans e lésbica, travesti e sapatão, circular no mundo e me relacionar, e a minha relação com a memória. A escolha de não ter pessoas nas cartas tem a ver com isso. Quando as pessoas olham aquelas paisagens, algumas reais e outras inventadas, isso é um canal para acessar uma sensação espacial temporal de alguma memória dela e criar uma conexão.
É também sobre como lidar com a memória, porque a memória é sempre uma invenção, uma narrativa. Como a gente narra isso? Como narro a minha história enquanto travesti, mulher, sapatão, se durante muito tempo eu nem sabia que era nada disso? Não deixo de ser naqueles momentos por não saber que eu sou. É um pouco sobre aprender a olhar pra trás e recriar um olhar pro passado.
Esse livro foi bem diferente de outras coisas que fiz, primeiro porque não havia a intenção de que fosse um livro enquanto eu estava fazendo. Essa questão do quadrinho tradicional eu não sei… Mesmo em O Aguardado, que é o meu quadrinho mais tradicional, não fiz o texto antes. Em cada capítulo eu tinha uma ideia geral do que ia acontecer, sentava e começava a desenhar, as thumbnails e o planejamento das páginas, mas em alguns capítulos eu cheguei a por o texto já na página final, no balão ali desenhado. Nunca tive a experiência ‘certinha’ de fazer quadrinho seguindo um roteiro, o passo a passo.
Acho que as Cartas foram onde eu mais escrevi antes de desenhar, mas é outro tipo de relação com a história em quadrinho, não é aquela coisa de escrever o que está acontecendo no ambiente, diálogo, etc. Eram mesmo escritas de carta, de poesia. Não sei dizer o quão diferente é de criar algo assim de um quadrinho tradicional, porque meu processo criativo nunca seguiu muito esses caminhos certinhos.
Sobre como pretendo trabalhar no futuro, isso é uma parte do meu processo poético e com certeza vai voltar de alguma forma no futuro, mas não sei dizer exatamente. Às vezes sinto que cada projeto que eu faço tem uma forma de fazer, uma técnica específica, o que eu sinto que o projeto pede ou que estou sentindo no momento.
Por exemplo, quando fiz o meu TCC eu não sabia o que era o meu tema, então comecei a andar pela cidade e desenhar. A partir de observar os desenhos que fiz eu comecei a perceber que tipos de imagens me atraiam, que eu costumava desenhar com mais frequência. Eram as ruínas, que são momentos onde a ordem da cidade quebra. No livro ocorre um paralelo entre o corpo ruína e o corpo trans, esses corpos que não estão mais ali para cumprir uma função. Enfim, é ir vendo, deixando espaço pro processo criativo acontecer sem ficar controlando demais. Gosto de fazer primeiro e depois analisar. Faço um pouco, olho, analiso e faço mais um pouco.
Nesse momento estou naquela coisa de trabalhar o livro, levar no máximo de lugares possíveis e tirar o máximo que tiver de tirar disso. É um aprendizado novo pra mim porque sempre fui uma pessoa de fazer uma coisa e já querer pular direto pra próxima, e às vezes ficar frustrada que as coisas não estão dando certo. Então, dessa vez estou mais com calma. Esse livro aconteceu com calma, então estou querendo viver ele bastante.
Já rolaram alguns convites pra participar em algumas antologias e projetos coletivos que eu topei, alguns deles vão me fazer trabalhar de formas diferentes do que estou acostumada. Um deles é o seu projeto, Histórias Quentinhas Sobre Sair do Armário, que já estou começando a trabalhar no roteiro.
Enfim, tenho algumas ideias na cabeça, várias na verdade. Não gosto muito de falar delas antes de fazer, acho que tira um pouco da energia da coisa. A gente fala, fica empolgada contando pros outros e não faz. Então tenho coisas planejadas, vontade de fazer alguns quadrinhos mais tradicionais, de seguir nesse caminho da escrita poética, mas também não estou deixando o futuro muito fechado. Vamos ver o que acontece!
Quem tiver interesse em adquirir o livro pode entrar em contato com a autora pelo seu perfil no Instagram (@diana.salu) ou no email [email protected]. Também vale a pena dar uma olhada no site da Padê Editorial e conferir outras publicações da editora!