Todas as cores de Fabi Marques
Fabi Marques analisa o mercado de coloristas. Profissional reflete sobre as condições de trabalho, processo criativo e dá dicas para quem busca se destacar
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Fabi Marques analisa o mercado de coloristas. Profissional reflete sobre as condições de trabalho, processo criativo e dá dicas para quem busca se destacar
Há alguns meses convidamos a premiada colorista Fabi Marques (@porrafabi_) a compartilhar detalhes de seu trabalho e fomos surpreendidas pela generosidade com a qual ela dividiu alguns processos, mas principalmente pela franqueza que ela usa para escancarar a desigualdade de gênero nesse setor do mercado de quadrinhos. Ela fala com orgulho de experiências marcantes – entre elas as participações em “Batman – O Mundo” e “The Death Ranger” – e, tendo alcançado reconhecimento internacional, analisa com propriedade os gargalos que enfrentam as coloristas no Brasil. Confira a seguir trechos dessa conversa.
Anne of Green Gables com cores de Fabi Marques
1 – Você pode explicar brevemente, para o público leigo, o que faz uma colorista?
Bom, a maneira mais simples de colocar é dizer que colorista é a pessoa que pinta o gibi! Muita gente acha que o desenhista manda tudo já coloridinho pro editor mas não é bem assim. Inclusive efeitos especiais, tipo poderzinhos, luzinhas ou quando tem alguma cena de flashback que tem uma finalização diferente é muito comum que o colorista tenha sido o responsável. Além da parte técnica de botar a mão na massa e de fato pintar outra das responsabilidades do colorista é tornar a narrativa concisa. Se grande propósito das HQs é contar histórias, saber criar uma narrativa com as cores é – na minha opinião – muito mais importante do que o tipo de finalização que aquela pintura vai ter. Não adianta uma finalização linda e cheia de detalhes se não estiver contando uma história por
trás. Cores ruins que não contam uma história podem estragar um bom desenho enquanto cores bonitas e que trazem narrativa podem dar uma nova vida e melhorar um desenho que seja mais amador.
Eu costumo dizer que as cores são pro quadrinho o que a trilha sonora é pra um filme.
Power Ranger Death Pru
2 – Como se dá o seu processo de trabalho? Existe nele alguma peculiaridade?
Eu sempre estudei muito, sempre fui muito curiosa, e tenho a sorte de estar rodeada por uma comunidade de coloristas muito talentosos e profissionais. Fui bebendo água de todas as fontes. Tudo isso pra dizer que depois de quase 10 anos nesse caminho eu criei um processo que funciona pra mim, mas que vive mudando e se aperfeiçoando cada vez mais. Agora sendo técnica o meu processo é bem simples:
Planejamento:
Onde decido qual estilo de cores vai funcionar naquele desenho. Converso com os outros
envolvidos, peço referências, leio o roteiro pra entender o clima da HQ, as viradas de página,
os momentos de tensão. Enfim, é a hora onde eu pergunto pra mim mesma e para os outros
tudo que é relevante pra construção daquele projeto.
Execução:
Eu sigo uma sequência que basicamente é assim:
⁃ Ajustar a cor base.
⁃ Construir sombra luz e contra-luz
⁃ Separação de planos
⁃ Efeitos especiais
⁃ Color Grading
Essa lista aí em cima é o arroz com feijão das cores – ao meu ver – e é claro que cada item precisa ser estudado e desenvolvido. Uma dica muito valiosa é sempre analisar seu próprio trabalho e encontrar principalmente seus pontos fracos, porque é ali onde vc vai precisar ralar mais.
No meu caso era a etapa de color grading, que é essencialmente a ambientação da página. Eu sabia que tinha dificuldade com isso e comecei a estudar o assunto especificamente, meu trabalho deu um salto. Foi o mesmo caso com separação de planos anteriormente.
Uma coisa que talvez seja uma peculiaridade é que atualmente eu uso muito o iPad pra pintar e depois eu finalizo no photoshop, pode ser um passo a mais pra alguns mas pra mim tem funcionado muito bem e hoje em dia eu não vivo mais sem o Ipad.
Cada colorista tem um processo. O tempo trás experiencia e essa experiência vai te ajudar a encontrar o que funciona mais pra você, o que otimiza seu tempo, o que você faz de melhor ou onde te falta domínio. E naturalmente você também vai acabar criando o seu próprio processo.
3 – De quais trabalhos você mais se orgulha?
Eu vou falar o clichê, eu me orgulho de todos os meus trabalhos, de verdade mesmo. É muito interessante como cada trabalho marca um momento da minha carreira e do aprendizado. Mas posso citar a minha participação em Batman – O Mundo, que acredito dispensar comentários e mais recentemente colori uma edição especial de Power Rangers chamada “The Death Ranger” que apresenta o primeiro Power Ranger não binárie, além de ser a primeira revista da franquia a aderir a linguagem neutra. Mas eu realmente tenho orgulho de todos os meus trabalhos, principalmente os que eu faço com criadores independentes latinos, que me trouxe um sentimento de pertencer a uma comunidade já que muitas vezes aqui no Brasil a gente se excluí um pouco.
4 – Como você avalia o mercado brasileiro para coloristas de HQs? E como avalia a participação feminina nele?
O mercado brasileiro ainda não sustenta coloristas, eu nunca consegui viver de quadrinhos fazendo apenas trabalhos nacionais, o que é uma pena. Já recebi proposta de colorir página por 20 reais mas infelizmente colorista ainda precisa comer. Já com relação a participação feminina eu acho que o Brasil tem muitos talentos, desde nomes mais consolidados como por exemplo Cris Peter, Natália Marques e Mari Gusmão até outras artistas menos conhecidas por exemplo a Pri Alanis e Tai Silva. Mas eu acho que faltam mais, e eu vejo sim isso mudando, devagar mas ainda sim mudando, e fica aqui menção honrosa a minha amiga Sâmela Hidalgo que tem feito um trabalho incrível com o Norte em Quadrinhos e também pela Social Comics, a Sâmela realmente está fazendo a diferença em trazer mulheres e principalmente mulheres de fora do Sudeste pro mercado. Fora isso eu aproveito pra dizer que tenho planos de fazer workshops de cores gratuito em 2023 e também estou sempre disponível pra ajudar meninas que tenham interesse em colorir, é só me mandar um email que a gente conversa.
5 – Quais lições valiosas aprendeu na carreira? Quais dicas você dá para profissionais com interesse em se firmar nesse mercado?
Como artista aprendi que antes de qualquer coisa a gente tem que saber pintar. Eu falava muito e pintava pouco e só vi as coisas mudarem quando eu comecei a pintar mais, aprimorar minhas habilidades e falar menos. Então a primeira dica é desenvolver suas habilidades. A partir daí tem a segunda parte que é estar em um mercado difícil de entrar e que é dominado por homens e, embora haja muitos artistas generosos e que eu considero muito, algumas barreiras demoram mais para serem superadas. Ainda assim, tem três caras que eu sempre faço questão de citar:
Joe Prado, que é arte-finalista, agente de quadrinhos e professor na Kubert School, me conhece desde que eu inventei que queria pintar gibi e que eu testemunhei muitas vezes realmente se mexendo pra trazer mais mulheres pro cenário. Alex Guimarães que foi meu professor e primeiro contato com o cenário profissional, ele não só me ajudou como artista sendo um crítico sincero do meu trabalho mas também puxou minha orelha todas as vezes que eu precisei e o Chris Sotomayor que também foi meu professor de cores e sempre disponível a ajudar e dar uma palavra quando a gente precisa.
Aqui eu deixo a segunda dica:
– Não tenha medo de mostrar seu trabalho. Vejo muitas artistas incríveis com síndrome do impostor.
– Divulgue seu trabalho no twitter. Tá todo mundo lá, editores, artistas e outros coloristas, assim você vai criando uma comunidade.
– Não tenha medo de perguntar mas não seja inconveniente. Eu acho importante ser curiosa, e é essa curiosidade que vai aumentar o seu repertório artístico. Quando você ver algo que você gostou vai lá e pergunta pra pessoa como ela faz aquilo. Mas não seja uma pessoa folgada, não ache que as pessoas tem que estar a sua disposição, tenha educação e tente ser o mais objetiva possível.
No mercado de quadrinhos não basta você ser bom, você tem que ser confiável. Por exemplo, quando as editoras da Boom Studios me encontraram elas gostaram muito do meu trabalho e queriam que eu fizesse Power Rangers. Mesmo adorando minhas pinturas,
primeiro elas me chamaram pra participar em uma edição colorindo umas 10 páginas, depois me passaram uma edição especial e só depois disso me convidaram pra pintar a revista principal. Eu estava sendo testada, fui testada várias vezes antes de entregarem o título principal na minha mão.
Uma pergunta que sempre me fazem é se precisa saber desenhar pra ser colorista. A resposta é não, mas é sempre bom. Mesmo que você não seja ilustradora saber desenhar e conhecer os fundamentos de desenho vai te ajudar a entender melhor as formas e com isso você vai ter facilidade na hora de criar luzes e sombras.
Entender o processo de produção de quadrinhos é essencial, monte uma pasta de referências onde você salva tudo que você gosta, tudo que você gostaria de aprender como fazer, estude teoria das cores e fotografia em outra mídias, principalmente filmes.
“Pensa que o colorista é a última pessoa na linha de produção artística, depois de você o quadrinho já vai pro letrista e pro designer que vai montar o gibi. Agora imagina se você atrasar? O quadrinho não vai sair e vai dar dor de cabeça pra todo mundo. Então os editores precisam saber que você tem não só a habilidade artística, mas também responsabilidade de entregar no prazo e a capacidade de encarar um trabalho que exige um ritmo acelerado. Não é só o seu nome ali na reta, mas também dos editores e artistas”.
Fabi indica
Alguns materiais que me ajudaram e que eu gosto de consultar:
Francis Manapul:
https://www.youtube.com/watch?v=-imP-nEm198&t=508s
K Michael Russel:
https://www.youtube.com/watch?v=8haj-UMfyxw&t=833s
Laura Martin:
https://www.youtube.com/watch?v=MgncgjMunBA
Tamra Bonvillain:
https://www.youtube.com/watch?v=4wyhz_CF4Bo
Anne Ribeiro é jornalista, de Belém (PA). No perfil @pralerhq ela escreve sobre quadrinhos para debater política, questões de gênero e universo LGBT.
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