PIGMENTO
Novo quadrinho de Aline Zouvi é um convite à reflexão sobre nossa relação com a arte
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Novo quadrinho de Aline Zouvi é um convite à reflexão sobre nossa relação com a arte
Eu já havia comentado sobre meu amor por quadrinhos biográficos escritos por mulheres, e, embora Pigmento (Cia dos Quadrinhos) seja uma ficção que lida com questões bem abstratas, a Aline Zouvi está inteira em cada página. Por isso, eu não conseguiria fazer uma leitura com qualquer distanciamento e nem desejaria isso. Pigmento fala muito da relação da Aline com tudo que faz dela a artista (na melhor acepção da palavra) que ela é, mas fala demais comigo por tudo que também faz de mim quem eu sou. Logo, essa só poderia ser uma análise bem pessoal.
A sinopse entrega que iremos conhecer Clarice, cujo nome eu imagino não ter sido uma escolha aleatória, uma tatuadora que é muito atenta e sensível aos pedidos de seus clientes, mas que por algum motivo, não consegue fazer com que as tatuagens em seu próprio corpo se fixem. Porém, a história se desenvolve a partir da relação que Clarice tem com as pessoas que conhece, especialmente com Lívia, uma restauradora de livros cuja avó foi tatuada pela protagonista e com quem acaba tendo um relacionamento.
Assim, o impacto que Pigmento causará em cada leitor, depende muito de seu repertório prévio, da sua relação com a arte e abstrações em geral e da sua aproximação com alguns temas retratados ali. Isso não significa que alguém precisaria conhecer qualquer referência que a Aline apresenta, já que se trata de uma história deliciosa, mas que por conter tantas camadas, possibilita um universo bem diverso de interpretações.
Ou seja, seja pela narrativa ou pela arte extremamente sensível da Aline, eu já recomendaria fortemente a HQ para todo mundo. Mas eu gostaria de contar os motivos pelos quais me senti tão abraçada quando a li, ainda que talvez isso não interesse tanta gente, apenas porque julgo justo honrar minhas referências e trajetória tanto quanto gostaria de honrar a trajetória da Aline, que é alguém por quem sempre nutri profunda admiração.
Isso tudo me remete ao dia que ouvi a voz da Aline pela primeira vez, em um evento na Ugra (citada na HQ). Uma voz baixinha, de alguém que parecia muito tímida, me falando sobre projetos futuros (e que acabou virando a página Políticas, posteriormente, que fundamos com a Carol Ito e Line Lemos). Hoje, lembrando desse dia, é inevitável eu não pensar em como ela me faz lembrar a protagonista do filme Little Voice (1998), que como Aline, tinha uma voz discreta, mas ao subir no palco, a potência de sua voz impressionava a todos. Definitivamente, Aline tem uma das vozes mais potentes dos quadrinhos brasileiros.
Essa sua potência não advém apenas de um talento nato que gostamos de acreditar que todos os grandes artistas desfrutam, mas de um vasto repertório artístico e cultural que ela retoma constantemente ao longo das páginas de Pigmento, entregando uma pesquisa cuidadosa para tratar de temas como a nossa relação com os símbolos e o inconsciente a partir da leitura de Jung.
E esse é um ponto que me encantou bastante, porque Jung tem uma proposta de interpretação dos símbolos como uma forma de trazer à tona temas que estão em nosso inconsciente e que não conseguimos acessar facilmente. Nesse sentido, as tatuagens que escolhemos seriam uma forma de expressarmos o que sentimos, mas que nem sempre somos capazes de colocar em palavras. Essa perspectiva é mesma utilizada por algumas pessoas que se interessam por Tarot, por exemplo, e enxergam nas cartas a possibilidade de abordar assuntos latentes que mereceriam atenção (eu estudei Tarot sob essa perspectiva).
Desde a escolha do nome do estúdio, uma referência à Maud Wagner, conhecida como uma das primeiras tatuadoras do mundo, a outras dezenas de referências artísticas e literárias expostas em cada quadrinho, a sensação que tive era de estar passeando com amigas queridas. Isso porque sei o motivo de cada uma dessas referências estar ali, ao menos a maioria delas. Orlando e um Teto todo Seu, ambos de Virgínia Woolf, são apenas dois dos livros mencionados entre pinturas extremamente significativas como A Traição das imagens, de Magritte. Obras que não estão ali à toa e que eu recomendaria a quem não as conhece, procurasse saber do que se tratam, pois cada uma delas confere uma nova camada de interpretação e de sensações à narrativa.
Por considerar Um teto todo seu um dos livros mais importantes para quem tem interesse em praticar uma crítica cultural mais inclusiva, perguntei à Aline sobre a importância dessa obra para ela, tanto como artista como mulher e ela me respondeu que sua relevância se deve ao fato de que Virginia Woolf, é uma referência não só como uma pessoa queer cuja sexualidade não estava em conformidade com o que a sociedade esperava de uma mulher, como também uma referência política por possuir um discurso que Aline entende como precursor do que viria a ser o discurso feminista posteriormente. Assim, de acordo com a quadrinista, Um teto todo seu é importante para escritoras e outras quadrinistas por reivindicar um espaço para que as mulheres pudessem produzir sua arte, seja ele físico, como de fato uma sala onde as mulheres pudessem se dedicar à escrita e serem remuneradas por isso, seja ele simbólico como um lugar dentro de uma editora, por exemplo.
Torto Arado, de Itamar Vieira e os livros da Conceição Evaristo nos convidam à reflexão sobre o poder das histórias contadas a partir da vivência de pessoas cujas existências não costumam ser registradas na literatura e, quando o são, são retratadas majoritariamente de forma pejorativa. Para mim, as referências que a Aline traz funcionam como uma grande validação do meu próprio trabalho: ontem mesmo eu usei Evaristo e Woolf na escrita da minha tese de doutorado. Então, minha forte conexão com Pigmento vem da sensação de cumplicidade que estabeleço com tantas quadrinistas que, assim como a Aline, me acenam em um gesto para me lembrar que eu não estou sozinha em uma luta constante pelo maior reconhecimento das mulheres não só no meio dos quadrinhos, mas na sociedade.
Sobre a importância da escrevivência, Aline reforça que as vivências pessoais dos autores na hora de produzir histórias ficcionais são uma forma de possibilitar o registro e a memória de saberes e existências normalmente apagados. De acordo com ela, sua vivência é o filtro pelo qual ela enxerga o mundo e é esse filtro que ela utiliza para criar suas narrativas.
Eu só posso dizer muito obrigada por fazer com que me sentisse tão abraçada e acolhida por uma história em quadrinhos. Elas de fato têm um poder imensurável de nos transportar a lugares que nem imaginamos.
Daniela Marino é pesquisadora de quadrinhos e questões de gênero, graduada em letras, mestre em comunicação e doutoranda em ciência da informação.
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Dani Marino é especialista em histórias em quadrinhos e questões de gênero. Mestre em Comunicação e doutoranda em Ciência da Informação pela ECA/USP, também atua como professora de Literatura Inglesa. Ganhadora de 2 troféus HQMIX com o livro Mulheres e Quadrinhos, que organizou com Laluña Machado, já colaborou com diversos sites e canais especializados em cultura pop.