Feminicídio e abuso em quadrinhos
Quadrinhos que podem ajudar a conectar histórias e vivências diversas sobre violência de gênero e abuso infantil
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Quadrinhos que podem ajudar a conectar histórias e vivências diversas sobre violência de gênero e abuso infantil
ALERTA DE GATILHO: Violência de gênero, abuso infantil, feminicídio
“A CADA HORA, MAIS DE 500 MULHERES SÃO VÍTIMAS DE AGRESSÃO FÍSICA NO BRASIL. O PAÍS TEM O QUINTO MAIOR ÍNDICE DO MUNDO DE ASSASSINATOS DE MULHERES”
A frase acima abre a HQ A filha da mãe, de Tinda Costa e Alexandre Magalhães. Com ampla divulgação em diversos veículos nacionais, a narrativa se propõe a abordar um tema atual e delicado por meio de uma história em tom de thriller com pitadas de superação por parte da protagonista Cleonice. Cleonice é uma enfermeira que trabalha na emergência de um hospital e busca ajudar mulheres vítimas de agressão doméstica na medida do possível, já que ela encontra resistência dos colegas médicos para denunciar os agressores. Tendo sido ela mesma vítima de violência, conta com a ajuda da mãe para prestar assistência e conscientizar as mulheres que consegue, porém, em um país onde as autoridades são omissas, Cleonice acaba apelando para meios um tanto ortodoxos proteger as vítimas.
Já na HQ A Cabana, de Caru Moutosopoulos, Caroline Fravret e Gustavo Novaes, o feminicídio é tratado de forma mais subjetiva por meio de uma excelente exploração dos recursos gráficos que os quadrinhos permitem, conferindo suspense na medida certa, algo muito difícil de se imprimir nesse tipo de material, uma vez que o que possibilita a tensão é justamente o uso adequado da virada de página, requadros, closes e diagramação específicos para que o leitor se sinta instigado a continuar. Nessa trama, temos um filho cuidando de um pai debilitado, que se recusa a comer a comida que lhe é oferecida e um stress crescente entre os dois que vai se justificando na medida que alguns segredos vão sendo revelados. Com pouquíssimos diálogos, o traço lembra o de um mangá e a história tem o ritmo de um conto bem curto, ou seja, precisa ser apreciada em uma lida, de uma só vez, do contrário, o suspense se perde. Vamos sabendo mais a respeito do protagonista e de sua história por meio de seus flashbacks, que indicam uma infância traumatizada pelos abusos e violências sofridos por sua mãe e conforme a tensão entre ele e seu pai aumenta, somos levados a refletir sobre o impacto desses traumas na vida de uma criança. Será que um trauma justificaria ações violentas que alguém possa cometer? Será que uma violência vivida poderia ser um gatilho para alguém que já tem algum problema?
Emboras as duas HQ tragam a questão do feminicídio em seu cerne, A filha da mãe se parece mais com uma cartilha, dessas que poderiam ser utilizadas em grupos de apoio às vítimas de violência doméstica, pois as personagens são verossímeis e possibilitam a identificação imediata por parte de várias mulheres que já passaram por situações parecidas. “Vendida” como um thriller, a história não chega a oferecer nenhum suspense uma vez que os casos relatados são previsíveis por estarem nos noticiários diariamente. Mas há uma saída interessante que prevê a punicação dos agressores, algo que raramente vemos nas histórias de ficção que usam o estupro e o feminicídio apenas como recurso narrativo para justificar a ascensão do protagonista masculino.
A Filha da mãe
A Cabana, por outro lado, tem seu foco no protagonista masculino e o feminicídio é usado como uma justificativa para as suas ações, mas sem a romantização da violência. A principal mensagem da HQ é que nem tudo é o que parece e que muitas vezes nossas primeiras impressões são equivocadas. Principalmente, é um trabalho que indica profundo conhecimento de quadrinhos por parte de seus autores, pois o que mais chama atenção no material é justamente sua qualidade gráfica que nem de longe denunciaria que esse é o primeiro quadrinho produzido pelo trio.
Ou seja, enquanto A filha da mãe se aproxima mais de um registro de fatos que busca alertar as pessoas sobre o problema da violência contra a mulher no Brasil, A Cabana explora a narrativa gráfica em uma ficção onde o suspense e a surpresa são os grandes protagonistas.
Porém, ambas as narrativas, contadas a partir da perspectiva de suas autoras, trazem um tema que não é tratado de forma banal e nos lembram que precisamos tratar o termo pelo que ele realmente é: feminicídio – assassinato de mulheres em função de seu gênero.
Isso porque até recentemente, muitas pessoas se questionavam sobre a necessidade de se usar um termo específico para assassinato quando na verdade, matar é errado independentemente do gênero. Hoje, ainda que existam pessoas que questionem o uso da palavra feminicídio, grande parte da população já entende o que ela significa e entende que cada tipo de crime precisa ter um registro diferente para que as campanhas de prevenção a eles sejam específicas. Sem a tipologia, é impossível criar campanhas de conscientização e no caso específico do feminicídio, o machismo estrutural ainda é o principal motivo pelo qual homens seguem matando mulheres.
Na mesma esfera da violência contra as mulheres, estão inseridas as crianças, maiores vítimas da violência sexual perpetrada, na grande maioria dos casos, por parentes, cuidadores, pessoas próximas a elas.
À época da campanha #meuprimeiroassédio, promovida por feministas no Facebook há alguns anos, a conclusão que uma das pesquisadoras envolvidas na coleta de dados chegou foi a de que o primeiro assédio ocorre por volta dos 6 anos de idade e o primeiro estupro, por volta dos 9.
É um assunto espinhoso e frequentemente abafado dentro da própria família. Isso porque a ausência de campanhas e de educação de gênero nas escolas impossibilita que crianças pequenas consigam identificar o abuso, por isso, a HQ Comida de Fada, de Val Armanelli, traz um posfácio de um psicólogo alertando justamente para que prestemos mais atenção às nossas crianças.
A narrativa não é explícita e utiliza colagens e poucos balões de fala para demonstrar a interação da protagonista com fadas que ela encontra ao sair sozinha. As fadas, aparentemente inofensivas, deixam a menina desconfortável, mas ela não sabe muito bem o motivo, afinal, ela aprendeu que fadas são seres bons. O subtexto só é apreendido integralmente se o leitor tem algum repertório prévio sobre o assunto, do contrário, não entrega muita coisa além do que é mostrado: uma criança aprendendo que as fadas não são necessariamente boazinhas.
A inspiração da autora partiu de leitura dos contos dos irmãos Grimm, que, para quem não está muito familiarizado, apresentam versões mais sombrias das histórias que se popularizaram via Disney. Esses contos, colhidos em diversas cidades, eram transmitidos oralmente e tinham como principal objetivo alertar as crianças sobre perigos diversos ou agir como uma história moralizante. A Bela e a Fera era uma alegoria para acalmar meninas prometidas em casamento a homens idosos e abastados; Chapeuzinho Vermelho alertava sobre os perigos de jovens sedutores e passeios solitários pela floresta ou cidades…
Assim, Comida de Fada possibilitaria tanto uma reflexão sobre contos de fada de maneira geral, como poderia funcionar como um meio de uma criança que tenha passado por algum abuso se conectar com uma história a ponto de falar a respeito com alguém.
Por fim, ainda que certos temas sejam delicados, é importante que sigamos falando bastante a respeito, afinal, aquilo que não é falado, é esquecido. Violência contra mulheres e crianças é assunto sério e se você presenciar alguma situação dessas, denuncie: disque 100 ou 180
Ouça a entrevista com Tinda Costa: https://www.radiogazetaonline.com.br/a-filha-da-mae/
A FILHA DA MÃE
De Tinda Costa
Ilustrações de Alexandre Magalhães
Editora Itmix
106 páginas
R$ 38
Onde comprar: Loja do Universo
A CABANA
De Caroline Favret, Caru Moutsopoulos e Gustavo Novaes
Editora Outside.co
86 páginas
R$ 45
Onde comprar: nas lojas físicas da Monstra e na Ugra Press ou direto com os autores pelo instagram:
@carumoutsopoulos / @cafavret_ / @gustavo.s.novaes
80 páginas
à venda em kindle na Amazon ou na loja da Val: https://www.valarmanelli.com/product-page/comida-de-fada-um-conto-macabro-1
R$65,00
@Valarmanelli
Daniela Marino é pesquisadora de quadrinhos e questões de gênero, graduada em letras, mestre em comunicação e doutoranda em ciência da informação.
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Dani Marino é especialista em histórias em quadrinhos e questões de gênero. Mestre em Comunicação e doutoranda em Ciência da Informação pela ECA/USP, também atua como professora de Literatura Inglesa. Ganhadora de 2 troféus HQMIX com o livro Mulheres e Quadrinhos, que organizou com Laluña Machado, já colaborou com diversos sites e canais especializados em cultura pop.