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Quadrinhos de ficção-científica “Made in Korea” e “Olhos de Quimera” trazem abordagens interessantes sobre questões humanas
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Quadrinhos de ficção-científica “Made in Korea” e “Olhos de Quimera” trazem abordagens interessantes sobre questões humanas
Quadrinhos de ficção-científica podem partir das mesmas premissas, mas sua execução difere de acordo com a intenção dos artistas envolvidos. Made in Korea e Olhos de Quimera trazem abordagens interessantes sobre questões humanas.
Sempre fui fã de distopias e histórias sci-fi que levantam reflexões sobre nossa humanidade e nossas relações interpessoais. Histórias como Eu, robô, clássico de Isaac Asimov, trazem o existencialismo e a ética no cerne de suas tramas a ponto de fixarem em nossa cultura a ideia de que algumas regras invioláveis deveriam ser registradas na programação dos robôs e outras máquinas operadas via inteligência artificial. Por isso, as 3 leis da robótica de Asimov se tornaram referências imprescindíveis em muitas das narrativas que tenham entre seus protagonistas robôs, androides ou outras máquinas que desempenham autonomia.
Made in Korea e as 3 leis da robótica de Asimov
Muito antes de Isac Asimov, Ursula Le Guin, Octavia Butler, William Gibson e da existência de séries como Black Mirror, obras como Frankstein (Mary Shelley, 1818) e Pinóquio (Collodi, 1883) já levantavam reflexões sobre o que nos faria de fato humanos e em 1967, o conto de Arthur Koestler, O fantasma na máquina (Ghost in the shell), discutia a possibilidade de que corpos mecânicos operados por inteligência artificial gerariam uma consciência autônoma capaz de conferir a esses seres uma espécie de alma ou sentimentos e razão próprios. No filme o 13º andar (1999), não são os robôs que possuem consciência, mas um sistema inteiro criado dentro de um programa de computador.
Frequentemente, essas histórias que se passam em algum momento no futuro, possuem forte relação com os contextos em que foram produzidas, possibilitando paralelos com a realidade que são explorados por meio de metáforas gráficas, diálogos e analogias. Ou seja, histórias de revolta das máquinas (Exterminador do futuro, Matrix etc) não são exatamente uma novidade. Mas o que será que faz com que sigam sempre atuais e gerando interesse em um público que não para de crescer?
HQ de Matrix
Talvez seja justamente o fato de que elas, mais do que outros gêneros, nos ajudam a lidar com questões reais, nos oferecem ferramentas para interpretar situações que precisamos lidar cotidianamente.
Pensando nisso, gostaria de indicar 2 quadrinhos que, embora possuam premissas bem conhecidas do gênero de ficção distópica, cada uma oferece nuances e perspectivas muito particulares que só mesmo seus autores poderiam conferir.
Em Made In Korea, de Jeremy Holt e Gege Shaw (Conrad, 2022), conhecemos Jesse, uma proxy (protótipo robótico operado por I.A.) fabricada na Coreia do Sul que é enviada para os Estados Unidos como filha de um casal. Jesse é muito cativante e embora fisicamente se pareça demais com uma pré-adolescente, seu carisma e sua capacidade de articular todo conhecimento que acumula causam espanto a seus pais. No entanto, Jesse, foi concebida para desenvolver habilidades humanas relacionadas à interação social, ou seja, ela busca essa socialização mais do que tudo. Até aqui, não há nada de muito diferente de outras narrativas similares, não fosse o fato de que o processo de autoconhecimento e questionamento que Jesse atravessa ter relação direta com os processos que os autores experimentaram: enquanto Jeremy se entendeu como uma pessoa não-binária, além de também ser coreane adotade por pais estadunidenses, Gegê (que é brasileira) passou por uma transição de gênero.
Essas experiências foram fundamentais para estabelecer o ritmo e o rumo que a história toma ao longo das páginas. Para além da arte muito agradável e dos diálogos bem verossímeis, é interessantíssimo observar a forma como Jesse se dá conta que talvez o corpo que ela habita não reflita exatamente como ela se sente. Uma de suas inquietações remete à personagem Cláudia, personagem de A entrevista com o vampiro (Anne Rice, 1976), que é condenada a viver eternamente em um corpo de menina por séculos após ter sido transformada em vampiro. O incomodo da proxy é retratado de forma bem sensível e natural, mas essa não é a única situação em que ela não sente concordância entre quem é e o que esperam dela.
Por estar inserida em um meio que não lhe é natural e de forma tão abrupta, como quando é matriculada na escola, Jesse não teve tempo de aprender sobre a natureza humana e essa natureza não é necessariamente boa. Seu corpo é diferente dos demais, ele possui capacidades sobre-humanas, mas sua percepção do que é bom ou mal não é consolidada, sua noção de livre-arbítrio também não. Isso a torna presa fácil para pessoas mal-intencionadas como alguns incels que conhece por lá. Ou seja, a probabilidade dessas relações se tornarem explosivas é bem alta. Assim, todos os eventos que Jesse experimenta aumentam seu repertório sobre si e geram questionamentos sobre quem ela gostaria de ser. A jornada envolvendo sua evolução nos prende do começo ao fim e possibilita várias discussões sobre pertencimento, ética, relações humanas.
Minha segunda indicação é a HQ Olhos de Quimera (Outside.co), de Carol Favret e Haru Moony. Um jogo de realidade virtual de uma empresa misteriosa e sua interação com o mundo real são panos de fundo para um debate sobre relacionamento abusivo e os mecanismos que criamos para lidar com eles.
As referências são familiares, como Alice através do espelho (Carroll, 1871), Matrix, Black Mirror, Periféricos, e o estilo mangá segue a tradição do Clamp e Sakura Card Captors, por exemplo.
Alice é a típica mulher que, após o casamento com o homem dos sonhos, se vê cada vez mais isolada do mundo como consequência da manipulação (gaslight) imposta pelo marido, que age de forma narcisista. Assim, ela se refugia em seus jogos e em plataformas de streaming de games onde possui uma comunidade com quem consegue se relacionar. Porém, conforme os problemas em seu casamento vão escalando, as situações dentro do jogo de realidade virtual também se complicam, fazendo com que a protagonista vá, pouco a pouco, se tornando incapaz de discernir fantasia da realidade, o que a coloca em risco.
A tensão que é construída a cada virada de página nos dá a certeza de que algo de ruim irá acontecer, sensação muito parecida com a que lidamos ao observar uma amiga envolvida em um relacionamento tóxico e que não consegue sair dele. Alice é essa amiga, ela parece frágil e precisa de ajuda. Então, as autoras foram muito felizes na ambientação da história, porque as sensações que experimentamos ao lê-la não permitem que fiquemos indiferentes.
Made in Korea pode ser encontrada em lojas especializadas e livrarias, já Olhos de Quimera foi financiada via Proac, edital de fomento à cultura do estado de São Paulo e poderá ser adquirida na CCXP 2022 e posteriormente na loja da editora.
Daniela Marino é pesquisadora de quadrinhos e questões de gênero, graduada em letras, mestre em comunicação e doutoranda em ciência da informação.
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Dani Marino é especialista em histórias em quadrinhos e questões de gênero. Mestre em Comunicação e doutoranda em Ciência da Informação pela ECA/USP, também atua como professora de Literatura Inglesa. Ganhadora de 2 troféus HQMIX com o livro Mulheres e Quadrinhos, que organizou com Laluña Machado, já colaborou com diversos sites e canais especializados em cultura pop.