A Boca do Luxo entrou em campo
Inspiradas em futebol feminino, história e em muita pesquisa, Lu Castro e Lalo Souza assinam “E a Boca do Luxo entra em campo”. Você não vai querer ficar de fora.
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Inspiradas em futebol feminino, história e em muita pesquisa, Lu Castro e Lalo Souza assinam “E a Boca do Luxo entra em campo”. Você não vai querer ficar de fora.
Inspiradas em futebol feminino, história e em muita pesquisa, Lu Castro e Lalo Souza assinam “E a Boca do Luxo entra em campo”, quadrinho nacional lançado em 20 de agosto desse ano, no Museu do Futebol do Pacaembu, em São Paulo. A escolha da data e do local de lançamento foi totalmente proposital e necessária, como contam as autoras.
“Há um público muito interessado no tema […] e há, em comparação com a produção de literatura sobre o futebol dos homens, uma carência imensa em outras linguagens sobre […] futebol de mulheres. De 2015 para cá, o número de publicações (seja livro, seja artigo acadêmico) aumentou consideravelmente. Também há, […] uma profusão de exposições que buscam jogar luz na história das mulheres do futebol, que é secular. […] Entretanto, há muito o que ser feito em termos de biografias e outras maneiras de contar histórias. A HQ em mangá de esporte é uma delas, e houve um pequeno alvoroço em torno da produção do Boca”, explica Lu Castro.
Na trama, que mistura uma São Paulo de 1979 a um estilo Mangá de esporte, vemos duas mulheres: Isabel e Dolores das Almas, que enfrentarem diversos obstáculos e muita emoção dentro e fora de campo para mostrar que podem sim ocupar aquele espaço.
A narrativa é ficcional, mas retrata o momento histórico em que o futebol praticado por mulheres foi finalmente liberado, após quase 40 anos sendo proibido a elas por lei. A história é situada na região da Luz, em São Paulo, que na época era conhecida como Boca do Luxo devido ao estrondoso crescimento da prostituição na região. Vem daí a inspiração para o título da obra.
Luciene Castro, que é jornalista e pesquisadora de futebol feminino, desenvolveu uma pesquisa sobre jogos entre as mulheres que trabalhavam nas badaladas boates que compunham a região da Boca do Luxo, trabalho que foi o norte para o desenvolvimento da HQ, que conta com a arte de Lalo Souza, ilustradora e quadrinista brasileira que desenha a história com maestria. Seus traços fortes carregam o estilo dos mangás japoneses de esportes ao mostrar o movimento e o poder das jogadoras quando a bola está rolando, mas sem esquecer a riqueza dos detalhes.
A artista explica que, como ama fazer cenários, desenhar São Paulo foi a verdadeira diversão do projeto. “Foi o processo clássico: olhar fotos de época, ler artigos (sobre as marcas de ônibus, carros mais vendidos, moda), e misturar os locais que escolhemos para história com essa pesquisa…então eu não tinha uma foto exata da Rua Aurora da vila Buarque em 1979, mas tinha dos arredores, e entendo os elementos do contexto pude construir as cenas… Muitos fuscas, eu tentava variar um pouco, mas as fotos são claras, São Paulo era tomada por fuscas!”, conta Lalo.
Quando o assunto é texto, Lu castro confessa que não encontrou grandes dificuldades na adaptação da pesquisa para um roteiro ficcional de HQ. “Foi um retorno à escrita criativa, mas agora com mais elementos e vivências para criar a final de um campeonato que não ficou registrado integralmente nos jornais. Pude brincar e me divertir imaginando e escrevendo, coisa que o rigor da pesquisa e seus dados e fatos, não me permitiram por muito tempo”.
Lalo, por sua vez, analisa o processo criativo em torno da história, explicando que ela tem um recorte narrativo claro: “[…] ignoramos quase completamente as figuras masculinas das histórias, que temos certeza de que de fato eram pessoas que para o bem ou mal estavam lá como clientes, chefes, organizadores…, Mas não nos interessava falar de assédio que já considero uma narrativa gasta, nosso foco foi o contrário, a potência das mulheres que se aproveitavam de uma oportunidade para se divertir entre elas”.
Se você ainda tem dúvidas sobre ler ou não a obra, afirmo com a propriedade de quem cresceu com a bola no pé e as HQs nas mãos: é um casamento perfeito e traz muita representatividade! Em terra que quadrinhos, pesquisa, história e futebol se encontram, temos garantia de uma ótima leitura e entretenimento. E quando isso é recheado pela história do futebol feminino no Brasil, me atrevo dizer que o sucesso é garantido!
O quadrinho, impresso com o apoio financeiro da PROAC – Literatura, História em Quadrinhos de São Paulo, vem se mostrando um marco para as HQs do país. Boca do Luxo certamente será inspiração para uma geração de mulheres e meninas que amam futebol e quadrinhos. E se você ficou com o gostinho de quero mais, as artistas afirmaram que é só aguardar! Ainda que não se trate de um “Boca do Luxo 2”, “[…] estamos eu e Luciane escrevendo algo juntas […] essa (nova) história está ficando linda demais!”.
Entrevista:
Como surgiu a ideia de fazer um mangá de futebol feminino?
Lalo Souza: Eu gosto muito de contar histórias de amor (e ódio rs) entre mulheres, de corpos fugindo do que lhes é imposto e indo para outro lado. Quem convive com futebol feminino sabe que é um meio lotado de sapatão e não é à toa… pensei que era um cenário perfeito para uma história com caldo de rivalidade, corpos dissidentes e paixões intensas.
Como a parceria para construir o quadrinho se estabeleceu?
Lalo Souza: Eu sou uma sedentária t.m, e não sou uma torcedora assídua de futebol… então fui atrás da Nayara, uma amiga minha que joga futebol amador há anos. Ela me passou o telefone da sua xará Nayara Perone @corinthiana, que é uma das envolvidas no Joga Miga e em vários projetos relacionados ao futebol feminino… “Nayaras” foram muito solícitas e o número da Lu Castro caiu na minha mão. Fiquei doida, a pesquisa da Luciane sobre o contexto da Boca do Luxo explodia de possibilidades narrativas. A Luciane ainda estava no meio do processo de pesquisa do contexto, e daí que surgiu a ideia da HQ de ficção baseada no tema, para ocupar as lacunas que a pesquisa rigorosa ainda não preencheu […]. Luciane é uma escritora de mão cheia, apesar de ainda não ter lançado nenhuma obra de ficção em seu nome até então, e desse encontro o desejo encontrou a oportunidade e fomos juntas.
Lu Castro: A ideia da parceria partiu da Lalo e fui indicada por uma amiga em comum. O convite foi aceito imediatamente já que escrever para quadrinhos era algo que estava no meu horizonte há muitos anos. Acho que o período entre a confirmação da parceria e a impressão do quadrinho foi de quase 1 ano. Nos antecipamos na construção do roteiro e da concepção física e de personalidade das personagens, então quando o projeto foi aprovado pelo Proac, tínhamos praticamente toda a estória pronta. Foi só uma questão de ajustes nas falas pós consultoria de roteiro (pelos excelentes Lui Castanho e Lino Arruda) e uma ou outra referência boleira que achei interessante inserir.
O quadrinho foi lançado próximo a Copa do Mundo feminina. Essa escolha foi proposital? Como tem sido a recepção e reverberação da obra até o momento?
Lalo Souza: Foi proposital e necessária, a verba do PROAC infelizmente não nos manteria por mais tempo trabalhando no projeto. Se tivéssemos fôlego financeiro para demorar realmente 12 meses produzindo a HQ o teríamos feito, mas já que só tínhamos seis meses, decidimos aproveitar que era ano de Copa do Mundo para lançar durante a copa. O lançamento acabou sendo dia 20 de agosto, dia do jogo final da copa rs, mas o evento do lançamento foi depois da transmissão da final no Museu do Futebol, foi bem divertido.
Quais foram as referências históricas de suas buscas que fizeram a diferença na hora de narrar Boca do Luxo?
Lu Castro: Com toda certeza as que vivi, li e escutei sobre futebol nas duas últimas décadas. Como membro de grupos de estudos sobre futebol (geral), pude inserir momentos e objetos na narrativa. E sempre de maneira a narrar um jogo entre mulheres com muita potência, força, técnica e habilidade, bem como um certo deboche, como dar a Taça das Bolinhas para o My Love. Para quem não conhece a história da Taça, ela é motivo de batalha entre grandes clubes do futebol dos homens. Achei justo acabar com essa briga e dá-la às mulheres da Boca.
Quais foram as inspirações para construir as personagens da trama?
Lalo Souza: As personagens foram surgindo a partir da história que criamos, queríamos uma jogadora empolgada com os jogos e Hyper-focada em futebol (Isabel), também pensamos nessa relação importante do futebol feminino de apoio mútuo e incentivo descarado e para isso precisávamos de um jogadora insegura (Dolores), e claro essa dupla precisava de rivais, se as duas são atacantes ficariam sempre de frente com uma dupla de zaga, onde queríamos abordar também rivalidades extracampo e aí surgiu a ex de Isabel (Sara) e sua atual (Vânia).
Na sua opinião, qual a importância de um quadrinho como esse para mulheres e meninas no Brasil?
Lalo Souza: “[…] a referência da HQ são claramente os mangás de esporte… Que tratam de amizade, rivalidades e autossuperação. Infelizmente ainda hoje é muito difícil encontrar produções que coloquem corpos de mulheres nessa ótica sem que o foco seja a calcinha delas. Existe um abismo horroroso ainda no que consta em pessoas LGBT e mulheres nesse lugar, infelizmente. Acho que meu desejo era esse, fazer um quadrinho divertido onde mulheres possam ler sobre outras mulheres em um lugar de força, não relacionado a superar violências, e sim apenas a competição entre as potências umas das outras”.
Lu Castro: Acredito que, ao contar uma entre tantas histórias do futebol de mulheres no Brasil, empregamos e distribuímos um pouco do quanto o corpo feminino foi -e ainda é- marginalizado. No momento do campeonato (algumas fontes me disseram que este campeonato “não existiu” de fato e que tudo não passou de ação de marketing das boates da Boca) o futebol de mulheres havia recém deixado de ser ilegal. De todo modo, o fim da ilegalidade não significou o fim da marginalização dessas mulheres. Quando você vê, dentro de um campo de várzea, mulheres que são marginalizadas em razão da sua atuação profissional, você tem o que eu tenho chamado de “suprassumo do futebol marginal” e isso é uma senhora provocação sobre como as mulheres vivem com seus corpos sendo cerceados de todas as maneiras. Mais do que tentar explicar este fato em textos engomados e enfadonhos que partem da academia, os quadrinhos servem a imagem, a tensão, o sentimento, a atmosfera. Isso leva efetivamente as pessoas pra dentro do contexto que estamos abordando.
Boca do Luxo está à venda no site da Lalo, no qual a artista também disponibilizou o primeiro capítulo da HQ de forma gratuita.
Nara Bretas é pesquisadora de quadrinhos no digital desde 2012 e Doutora em Estudos de Linguagem (PosLing) pelo Centro Federal de Educação Tenológica de Minas Gerais (CEFET/MG), onde trabalhou com as temáticas: Mulheres e Quadrinhos no Brasil, Narrativas de Vida, Análise do Discurso e Feminismos. Jornalista, Licenciada em Letras e admiradora das HQs desde muito nova, Nara ama quadrinhos cotidianos e surtadas ocasionais.
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