Balanço da CCXP 22 – Parte II
Apesar do clima de festa, não podemos esquecer que ainda falta muito a alcançar
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Apesar do clima de festa, não podemos esquecer que ainda falta muito a alcançar
Apesar do clima de celebração que ainda me envolve, alguns temas não tão festivos foram também levantados, afinal, como gosto de comentar, as categorias gênero, raça e classe não existem em um universo à parte da nossa realidade, elas estruturam todas as esferas das relações humanas e em um evento de cultura pop, isso também pode ser observado.
Então, uma das questões que já haviam me chamado a atenção no HQMIX, foi o baixo volume de inscrição de mulheres e pessoas trans, NB, em geral. Por isso, conversando com a quadrinista Cinthia Saty, pude confirmar algo que já sabíamos pelas mídias tradicionais: a pandemia do COVID-19 afetou muito mais significativamente as mulheres, especialmente as mães, do que qualquer outro grupo de pessoas, e você some a isso a classe social, orientação sexual e cor da pele dessas mulheres para perceber que o fardo só aumenta.
Historicamente, somos nós as responsáveis por grande parte das funções envolvendo cuidar, nutrir, amparar. Com as crianças em casa, as mulheres se viram ainda mais sobrecarregadas do que normalmente são. Agora, imagine você com dois filhos pequenos em casa e ainda precisando ser criativa. Como faz? Essa é exatamente a realidade da Cíntia que me contou não ter conseguido produzir quase nada durante a pandemia, consequentemente, esse ano não foi dos mais produtivos nem para ela e nem para grande parte das autoras que tiveram que se desdobrar para cuidar de pais, parentes idosos e ainda dar conta de demandas profissionais.
Ou seja, quando pensamos nos critérios pelos quais analisamos as histórias em quadrinhos e julgamos que determinados tipos de narrativas são produzidas com maestria, é um equívoco não considerar as condições que determinado autor enfrentou para que pudesse publicar seu trabalho. Ele tem que cuidar dos filhos da mesma forma que uma mulher? Ele tem a mesma demanda emocional que as mulheres têm ao cuidar de casa (nós gastamos em média 4 anos envolvidas com o processo de lavar roupas, por exemplo – de acordo com Maíra Liguori, do Think Olga, para o Mamilos Podcast)?
É nesse sentido que reforço que não é possível pensar nossa existência e produção sem considerar as questões de gênero que nos atravessam, como atravessaram a quadrinista holandesa Aimée de Jongh. Com seu quadrinho recém-lançado pela Conrad, A sala de Espera da Europa, Aimée era uma das convidadas da CCXP. Ela tem se firmado como um destaque internacional ao traduzir em quadrinhos momentos do cotidiano das pessoas em diversos contextos, mas com a Sala de Espera da Europa, ela teve que lidar com sentimentos delicados ao passar uma semana em um campo de refugiados na ilha de Lesbos, da Grécia, onde registrou o que vivenciou por lá (pretendo falar mais sobre a HQ em breve). Ainda assim, apesar dessa experiência marcante tão recente, a quadrinista estava muito feliz em estar no Brasil e se sentir tão acolhida e me contou que gosta de trabalhar com temas cotidianos porque as pessoas se identificam com eles e ficam felizes de se verem retratadas nas histórias Porém, esse sentimento de alegria durou até o momento que teve que lidar com o assédio de um “fã” que não soube entender o limite entre elogio e perseguição. Portanto, não existe um ambiente onde não sejamos constantemente lembradas sobre o nosso gênero.
O mesmo motivo pelo qual eu, depois de ter participado do epic cast durante o evento, passei por uma tentativa de intimidação ou porque possivelmente algumas pessoas possam ter estranhado a presença da Gabi Borges (fundadora da Mina de HQ), grávida de 7 meses na época, estar toda serelepe por lá ou porque um cara se julgou no direito de dizer à Ana Cardoso que Minguau era fofinho, mas que gostava mais do desenho do cara que fez o Bidu, ou porque um outro cara olhou as hqs da Verônica Berta e ficou espantado por ela ter feito os desenhos que estavam na sua mesa, quase soltando um “desenha bem para uma mulher”: não existe uma esfera da existência social que não seja atravessada, em maior ou menor grau, por preconceitos de gênero.
Flávia Gasi dispensa apresentações, mas caso você não a conheça, dá um google e depois volte aqui. Eu espero. Além de autora de diversas obras sobre imaginário e games, a editora do site Garotas Geeks, tem uma vasta produção sobre cultura pop e mais recentemente foi premiada com a coletânea de hqs de diversas autoras Não ligue, isso é coisa de mulher. A série, que já rendeu uma continuidade, traz justamente uma reflexão sobre como funcionaria o mundo se os papeis de gênero fossem invertidos, possibilitando que situações que nos são muitas vezes nocivas, sejam enxergadas de forma cômica a fim de aproximar o público leitor do absurdo que enfrentamos normalmente:
“É muito louco que a gente ainda tenha que falar sobre isso, mas eu acho que quanto mais você tem projetos assim, mais você tem quadrinhos, mais as pessoas leem, mais vai se tornando um assunto que possibilita que a gente aborde coisas mais profundas.”
Feliz com as premiações recentes, esse reconhecimento indica que realmente precisamos seguir falando sobre temas que até há um tempo não conseguíamos falar nos quadrinhos, como as violências às quais somos submetidas em função do machismo. Por isso, durante a CCXP, ela e as outras autoras da coletânea anterior, estavam lançando Não tema, isso é coisa de mulher, que traz as situações invertidas envolvendo super-heroínas. Flávia, que é especialista em mitos e narrativas, costuma divulgar a jornada da heroína em seus cursos e palestras:
“Estamos trazendo essas HQs para questionar o conceito de herói. O que é um herói? Muitas vezes ele está associado à jornada do herói do monomito do Campbell, que é super legal, mas ela é apenas uma das estruturas narrativas possíveis. Então a gente vem pra mostrar, com histórias diversas, como é possível criar heroínas, e até heróis, que não estão dentro dessa caixinha e que vão passar por coisas totalmente diferentes de uma narrativa de monomito.”
Uma outra grande referência para que a gente não esqueça do poder das mulheres nos quadrinhos é a Ana Luiza Koehler, que em 2021 levou 4 troféus HQMIX por Beco do Rosário, hq que faz um resgate histórico da arquitetura de Porto Alegre com uma riqueza de detalhes de tirar o fôlego até daqueles que não entendem absolutamente nada de desenho. Para ela, a premiação ajudou que seu trabalho alcançasse ainda mais pessoas, o que é muito significativo quando falamos de trabalhos autorais e independentes como o dela. Para a próxima edição da CCXP, Ana trará a continuação de Beco do Rosário que se chamará Viaduto e todo extenso trabalho de pesquisa e confecção da HQ pode ser acompanhado em suas redes sociais onde ela costuma postar vídeos e algumas explicações sobre o processo.
E por falar em referência, Ana Luiza reforçou a importância de ter a Ciça Pinto como homenageada:
“Geralmente, os que os que são lembrados da velha guarda dos quadrinhos são muitos homens, as mulheres acabam ficando meio esquecidas e é muito importante que um evento dessa dimensão tenha ela como homenageada, pois é uma justiça sendo feita”.
Quadrinhos de todo o Brasil
Por fim, também conversei com algumas artistas que têm conquistado o país com suas obras e rompido as barreiras impostas por nós aqui do Sul e Sudeste (mea culpa). Artistas do Norte e do Nordeste que avaliaram a importância de participar de um evento tão grande, ainda que ele ocorra em São Paulo.
A Ilustralu (Luiza de Souza), RN, por exemplo, já havia recebido todo amor e carinho presencialmente na Poc Con em julho, mas sobre estar na CCXP após ter recebido vários prêmios por Arlindo ao longo do ano, teve um gostinho especial:
“Foi uma das coisas mais doidas que já me aconteceram na vida. É um turbilhão de emoções muito grande ver esse carinho que as pessoas têm com Arlindo e comigo e ainda mais emocionante é conhecer as histórias de cada pessoa que chega para pegar um autógrafo, que cai no choro na mesa e faz todo mundo que tá na fila chorar também e a gente que tá atendendo chora também… É um sentimento de realização muito boa e uma felicidade que como diz Aureliano: meus pés não estão cabendo nos meus pés!”
Para Mandie Gil, do Pará, apesar da diversidade ser notável no Artists’s Valley, ainda é possível melhorar isso:
“Ainda há muitos homens brancos nos quadrinhos, mas eu percebo que nesse ano há uma cota maior de pessoas LGBT, de pessoas negras e também de pessoas indígenas, que acho que é o que mais falta aqui. Esse ano foi a primeira vez que uma delegação tão grande do Norte, com tantos artistas nortistas, faz parte da CCXP, incluindo também a maior quantidade de artistas indígenas que houve até hoje, mas se você parar para pensar, são apenas 7 de uma quantidade muito grande de artistas que estão aqui. Então, a gente precisa que essa quantidade de representatividade aumente, de mais pessoas diversas aqui no Artist’s Valley”
A quadrinista acredita que a importância dessa diversidade se dá porque as pessoas racializdas, por exemplo, podem falar a partir de sua própria vivência, com sua própria voz.
Já a artista indígena Tai Silva, também do Pará, lançou dois quadrinhos: Mizuras, com um coletivo de artistas de vários estados do Norte do país sobre lendas urbanas da Amazônia, e a HQ Causos de visagens para crianças maluvidas, sobre um menino levado cuja a vó conta histórias sobre espíritos visagentos (espíritos ruins) e encantados, que erroneamente chamamos de folclore:
“Encantados são seres que fazem parte da nossa espiritualidade, como o Mapinguari, o Saci, o Curupira…”
Para Tai é especialmente significativo participar da CCXP como quadrinista que trata de questões indígenas porque ela sempre viu muitas produções sobre entidades da sua religiosidade sendo retratadas por artistas sem qualquer conexão com esses seres. Então, poder falar sobre sua luta, sobre questões politicas em quadrinhos que abordam o fantástico, foi uma forma de celebrar a pluralidade de temas com os quais os artistas do Norte do país costumam trabalhar.
No ano que vem teremos a 10ª edição da CCXP e nossas expectativas são de que essa tendência do Artists’ Valley de se tornar um espaço de celebração da diversidade se torne uma tradição. Até 2023!
Daniela Marino é pesquisadora de quadrinhos e questões de gênero, graduada em letras, mestre em comunicação e doutoranda em ciência da informação.
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Dani Marino é especialista em histórias em quadrinhos e questões de gênero. Mestre em Comunicação e doutoranda em Ciência da Informação pela ECA/USP, também atua como professora de Literatura Inglesa. Ganhadora de 2 troféus HQMIX com o livro Mulheres e Quadrinhos, que organizou com Laluña Machado, já colaborou com diversos sites e canais especializados em cultura pop.