A Origem do Mundo no teatro
A pesquisadora Luisa Monteiro analisa a versão teatral da HQ A Origem do mundo, da sueca Liv Stromqüist, em exibição no Brasil.
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A pesquisadora Luisa Monteiro analisa a versão teatral da HQ A Origem do mundo, da sueca Liv Stromqüist, em exibição no Brasil.
Por Luísa Monteiro
É curioso o sentimento de expectativa para assistir à adaptação de uma obra que nos move. Ao contrário de alguém que não conhece o texto original, cria-se toda uma expectativa, uma vez que já existe uma leitura prévia; às vezes crítica, às vezes apaixonada, mas sempre anterior àquela que se está prestes a assistir, transposta para outra linguagem. Foi o caso de minha ida, rodeada de expectativas, para a peça A origem do mundo, baseada na HQ da sueca Liv Strömquist, de mesmo nome, mas, que na publicação em livro, carrega o subtítulo Uma história cultural da vagina ou a vulva vs. o patriarcado. A peça estreiou dia 14 de abril, no Sesc Ipiranga, em São Paulo, e passa pelo teatro Glaucio Gil, no Rio de Janeiro, de 7 a 29 de setembro, depois de ter sido bem recebida pelo público e pela crítica na temporada paulista.
Para mim, como espectadora carioca, a sensação de expectativa foi bem anterior à estreia em São Paulo. Há 3 anos, em setembro de 2020, auge da pandemia, assisti a uma conversa entre Luisa Micheletti, atriz e roteirista da peça, com Liv Strömquist, autora do quadrinho no qual ela se baseou. A partir daí, comecei a acompanhar pelo instagram o desenvolvimento do projeto encabeçado por Luisa e Julia Tavares, roteiristas e atrizes, de criar um texto teatral a partir da HQ sueca. Trata-se de um desafio e tanto transpor a linguagem dos quadrinhos para uma tão outra, que é a do teatro. Por isso, é preciso que a peça não se coloque como uma adaptação: é uma experiência diferente da leitura do quadrinho. Dessa forma, não precisou se prender às páginas de Liv Strömquist e conseguiu, na mão das roteiristas, conquistar uma força própria.
Assim como na HQ, a peça se estrutura em 3 atos, referentes a 3 tabus ligados à construção da feminilidade: a vulva, o orgasmo feminino e a menstruação. Acaba que funciona como uma peça manifesto, situada dentro do recorte do ponto de vista das autoras (brancas, sudestinas, cis, latinoamericanas e outros recortes), sem uma intenção de falar por, ao passo que conseguem não apenas falar de si. A linha vermelha (um dos elementos cênicos da peça) situa o discurso, sem que crie um processo individualista, egocêntrico. Não fala por todas, mas fala sobre o que não é falado, o que desaparece da linguagem, mas não desaparece da experiência de certos corpos – sangue, carne, gozo. Há um discurso manifesto, politizado e sem didatismos, que não tem medo de se colocar como feminista e trazer fatos históricos que são considerados menores dentro da cronologia instituída.
Nessa nova cronologia, eventos históricos considerados revolucionários para a medicina, para a filosofia, para a história do ocidente são colocados sobre uma perspectiva de crítica feminista, muito cara à linguagem de Liv Strömquist. Assim, são iluminados aspectos por vezes esquecidos de grandes figuras históricas, tais como o discurso de Freud sobre o orgasmo feminino, a colocação de Sarte sobre o sexo da mulher, a atitude da Nasa quanto ao apagamento (literalmente) da vulva de uma imagem enviada para o espaço, além de ressaltar discursos de médicos e filósofos de diferentes momentos históricos que contribuíram para o apagamento da vulva, da sexualidade feminino, da menstruação, e de outros aspectos relacionados a corpos que passem por essas experiências.
Se há por um lado uma comunicação difícil entre as duas linguagens que pede a compreensão de que se trata de uma experiência nova, há, por outro, um ponto-chave que mostra o compromisso das roteiristas da peça com o projeto feminista imbuído no quadrinho sueco. Estou me referindo ao senso de humor como elemento fundamental para a construção de todo o texto da peça. Na Bienal de Quadrinhos de Curitiba, que aconteceu em setembro de 2023, o pesquisador sueco Fredrik Strömberg, especialista em quadrinhos, falou sobre as dificuldades de transpor as particularidades do humor sueco para outras culturas. Na verdade, ele vê uma dificuldade em traduzir o humor no geral, pois não é incomum que, para arrancar os risos, as referências sejam contextualizadas demais, situadas demais.
Um dos brilhos da peça está em ter driblado essa dificuldade. Entre um Freud maloqueiro, um karaokê cheio de luzes, trocadilhos e um Aristóteles de TPM, muitos risos são arrancados da plateia. O tom do humor, tão presente no quadrinho de Liv, é vivo no palco, em um português carregado de sotaques, e com referências que só fazem sentido no contexto brasileiro. O uso do humor como estratégia discursiva funciona para evidenciar o absurdo dos fatos mostrados pelo texto da peça com alguma leveza. Porque, na prática, os fatos históricos apontados são uma tremenda violência epistêmica – quando não uma violência concreta. O humor equilibra a revolta, sem que esta seja apagada. Há a dureza, há o riso; a revolta, o canto; dois modos de resistência se equilibrando, para que a atitude do espectador que sai seja tanto de agir quanto de se reanimar.
Além do par indignação e comédia, há um outro que merece um comentário à parte: a dupla de atrizes Julia Tavares e Luisa Micheletti, também roteiristas do projeto. Sob a direção de Maria Helena Chira, a dupla divide o palco e alternam agilmente entre os muitos personagens históricos, míticos, e muitas vezes fictícios, num jogo de cena todo audível, vocalizado, muito diferente da experiência da leitura de um livro. A sintonia na alternância entre as vozes contribui para o que o fio da peça seja ao mesmo tempo dinâmico e uníssono. Isso porque, mesmo que esteja muito marcada uma diferença entre as falas, não são poucos os momentos em que as atrizes dialogam como apenas um corpo – talvez um corpo atravessado pelos mesmo problemas, que reivindica uma escuta no mundo.
Permeada por todas as diferenças entre a linguagem dos quadrinhos e a do teatro, entre o contexto brasileiro e o contexto sueco, o que A origem do mundo conquista é um discurso artístico que se constrói sobre a fidelidade a um projeto feminista que não é universal, mas é traduzível. E é por terem se debruçado sobre essa compreensão profunda do que estava sendo defendido como projeto na HQ, e terem construído uma leitura própria e original a partir disso, que a peça chega ao público como uma proposta única, que incita uma mobilização para rever a história como é contada e exibir, na linguagem, o orgasmo feminino, a menstrução e a vulva.
Viva a vulva! É o coro que fica depois da peça. E que vale repetir muitas vezes por aí, na linguagem que for.
Luísa Monteiro é pesquisadora de quadrinhos e questões de gênero e integrante do GPOQT – Grupo de pesquisa Oficinas de escrita, histórias em quadrinhos e tradução, da Universidade Federal de Santa Maria, RS.
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