Ensaio em HQs: Liv Stromqüist
Artigo sobre a obra e o processo criativo da autora sueca, criadora dos quadrinhos “A Rosa Mais Vermelha Desabrocha” e “A origem do mundo”
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Artigo sobre a obra e o processo criativo da autora sueca, criadora dos quadrinhos “A Rosa Mais Vermelha Desabrocha” e “A origem do mundo”
Após a leitura de A Rosa Mais Vermelha Desabrocha, da autora sueca Liv Stromqüist (Quadrinhos na Cia., 2021), fui acometida por uma grande curiosidade sobre o processo criativo da autora e a recepção das suas obras aqui no Brasil.
Em minha busca por saber mais sobre como as pessoas têm reagido aos seus quadrinhos, me deparei com dados interessantes e com o vídeo do meu colega Liber Paz que, refletindo sobre a obra da Liv, concluiu que o que ela faz ao longo desse quadrinho e de A Origem do Mundo (Quadrinhos na Cia, 2018), são ensaios em quadrinhos.
Socióloga de formação, seu processo criativo na construção de uma HQ, como ela mesma explicou em entrevista concedida à Mina de HQ, está mesmo muito relacionado à confecção de textos ensaísticos. Diferentemente do que ocorre em um artigo acadêmico, onde o autor busca se distanciar o máximo possível de seu objeto, em um ensaio é possível expressar opinião pessoal acerca das considerações dos autores teóricos elencados na produção. Ou seja, Liv Stomqüist dialoga com os autores que referencia o tempo todo e estabelece uma ponte entre esses autores e seus leitores.
A autora Liv Stomqüist
Nesse sentido, suas duas HQ lançadas aqui no Brasil não seguem uma tradição de publicação mainstream, onde a primazia da imagem é destacada por meio de artes de tirar o fôlego. O objetivo aqui é outro. Por isso, seu traço é mais cartunesco e sua disposição artística é empregada nos textos com técnicas que remetem ao lettering na publicidade. Esse não é um demérito, afinal, ela não é formada em artes e nem tem a intenção de ser uma desenhista/ilustradora de uma editora comercial de quadrinhos de super-heróis ou algo do gênero. No entanto, o traço que segue uma lógica já apresentada por Mc Cloud e extremamente elogiada quando feito por artistas do sexo masculino que seguem essa tradição (traço sujo do fulano contrasta com a clareza das ideias que ele entrega com maestria), é considerado “feio” em alguns vídeos que assisti.
O que leva ao ponto que eu queria levantar: Tanto A Origem do Mundo como A Rosa Mais Vermelha Desabrocha são quadrinhos, certo? Foram publicadas no Brasil por um selo de quadrinhos, tem imagens disponibilizadas em painéis e balões de fala (embora não só isso) e foram premiadas ou ao menos fortemente reconhecidas por críticos de quadrinhos renomados fora do Brasil. Se chamamos de ensaio de sociologia ou de livro (também), não muda o fato de serem quadrinhos.
Porém, foram pouquíssimos canais especializados em quadrinhos que se dedicaram a falar sobre elas e mesmo fora do Brasil, em espaços dedicados à crítica de quadrinhos, a maioria esmagadora de resenhas e críticas foi feita por mulheres. Já aqui, o fato de o selo Quadrinhos na Cia pertencer a uma editora de literatura (Companhia das Letras), parece ter guiado a política de envios das HQs para se focar em sites literários, muitos deles sem muita adesão nas redes sociais e com menos adesão ainda no meio dos quadrinhos.
Trecho de A rosa mais vermelha desabrocha
Esses sites, produzidos também por maioria feminina (diga-se de passagem, feminina, cis, branca), têm pouca afinidade com a leitura de quadrinhos e suas especificidades, o que acarretou, em praticamente todos os sites que li e assisti (algumas dezenas), resenhas extremamente superficiais e pautadas em senso comum, com alguns adjetivos e indicações de leitura, mas nada muito diferente do que podemos encontrar em sinopses nos sites de vendas de livros, com exceção de matérias na revista Trip e na Elle, ambas voltada a um público feminino com recorte bem específico. Esse fato me remete ao artigo “Informação, tecnologia e mediações culturais”, de Marco Antonio de Almeida, que diz o seguinte:
“A essa altura da discussão pode ser esclarecedor considerar a distinção que em inglês é expressa pelos termos critic e reviewer. No caso do critic, o diálogo privilegiado é com os realizadores, com as pessoas que de um modo geral estão ligadas à produção cinematográfica, buscando emitir assim opiniões e conselhos que contribuam para estimular a produção e evitar possíveis equívocos. Já o reviewer, especialmente para os americanos, é a pessoa que escreve textos de natureza crítica com o propósito de orientar seus leitores, relatando suas próprias reações e compartilhando critérios de julgamento pessoal em relação à obra; cumpre, portanto, a função de guia, comentador”.
No entanto, quando busquei resenhas produzidas por autores do sexo masculino, outro fenômeno me chamou a atenção: a falta de repertório de grande parte dos autores para avaliar as produções de Stromqüist ou de qualquer autora que se aprofunde “naquilo que convencionou-se chamar de assunto feminino”, como se o conhecimento acerca de como uma parte do corpo de metade da população funciona e foi retratada ao longo da história da humanidade (a saber, não é só composta de homens cis) não fosse de interesse de mais ninguém além das pessoas que possuem tal órgão (como uma vulva, em A Origem do Mundo). Esse fato é curioso por uma série de motivos que se relacionam diretamente com as denúncias apresentadas por Stromqüist.
Em A Origem do Mundo, Stromqüist faz um registro da trajetória percorrida pela vulva e suas adjacências em tratados de medicina, na filosofia, na literatura, na antropologia no intuito de apontar as raízes de uma série de problemas que afetam pessoas com vulva nos dias de hoje. A forma como tais registros foram feitos ou a forma como a vulva foi simplesmente apagada e desconsiderada na medicina e outras áreas, acarretou e segue acarretando equívocos que são reproduzidos inclusive em um dos vídeos que assisti em um dos canais de quadrinhos com maior número de seguidores no Brasil. O apresentador diz coisas como: “feministas radicais querem que as mulheres saiam sangrando por aí sem usar absorvente” (oi? Fontes: vozes da minha cabeça) ou “seria um absurdo que mulheres simplesmente menstruassem em qualquer lugar porque toda mulher sabe quando vai menstruar e não há desculpa para que vazamentos ocorram”. E não apenas nesse caso, mas é bem recorrente que especialmente homens se sintam tão autorizados a manifestar opinião sobre o corpo de algumas pessoas que eles claramente desconhecem o funcionamento, como quando insistem em opinar sobre aborto.
O interesse excessivo em destruir o clitóris, por exemplo, a ineficácia nos estudos e falta de interesse no órgão que é responsável por número significativo de orgasmos de metade da população mundial não gera apenas problemas e opressões discursivas. É por meio desses discursos e da falta de registros acurados sobre a vulva e a vagina que se justificou (e ainda se justifica) uma série de mutilações, além da ausência de políticas públicas e campanhas de informação em diversos países e que geram problemas não só para mulheres cis, como para homens trans. Sem conhecimento sobre o corpo das pessoas, não há tratamentos disponíveis para ninguém, mas entendendo que a transfobia ainda é um elemento estruturante da nossa sociedade, eu não consigo deixar de pensar na fala de João Nery em um documentário de 2016, quando ele lamenta às vezes que, doente, teve que ir ao hospital e ouvir coisas como: “não sei tratar um corpo trans”. Isso porque se pensarmos nas opressões sofridas por pessoas de determinados grupos, pessoas trans com órgãos sexuais femininos estão entre os ocupantes da base de uma pirâmide que sofre com falta de acesso a tudo.
A misoginia contra mulheres e outras pessoas que performam comportamentos entendidos como femininos tem suas raízes nas convicções de homens que acreditavam na inferioridade das mulheres por estas serem uma representação falha do homem, uma versão incompleta do que seria a representação de universalidade e perfeição e para ilustrar esse pensamento, Stromqüist não cansa de nos fornecer dados e citações de homens como Freud e Sartre, que mesmo sendo casado com Simone de Beauvoir, reproduzia um pensamento extremamente machista.
Trecho de A Origem do Mundo
Já em A flor mais vermelha desabrocha, pouco ali seria de interesse exclusivo feminino, pois a autora aborda o surgimento e a evolução do conceito de amor romântico e aponta para a deterioração das relações como resultado do capitalismo que, cada vez mais, promove uma noção de empoderamento por meio da autoexploração e do que é socialmente entendido hoje como sucesso. Ou seja, um tema explorado por filósofos atuais como Byung Chul-Han, citado recorrentemente na obra, e por sociólogos, antropólogos, poetas, artistas de gerações distintas. Por que então, um assunto que tem relação com áreas tão diversas do conhecimento e que afeta nossas relações de maneira tão profunda seria de interesse exclusivamente feminino?
Logicamente, em se tratando de obras tão densas, é esperado que críticos tentem demonstrar que conseguem alcançar esses conceitos e refletir criticamente sobre eles, porém, não é o que costuma acontecer com a maioria das análises, o que indica que, assim como ocorre com a vulva e com as mulheres, só pode ser analisada a partir de sua alteridade em relação à norma, ao que é universal, ou seja, em oposição ao homem, entregando que até mesmo a parcela de críticos que de fato se aprofundou na leitura, é incapaz de analisar a obra em si mesma, pelo que ela é ou a partir de referências de outras autoras, afinal, como bem sabemos, historicamente e estatisticamente, homens não leem mulheres, não consomem suas produções. Não à toa estamos aqui, em um site exclusivo, não é mesmo?
As duas HQ da Liv não tiveram críticas ou resenhas genéricas e elogiosas como as que são feitas de maneira contumaz a tantos autores do sexo masculino em canais mais populares de crítica de quadrinhos. Apesar da qualidade de informações trazida em ambas as produções, não há muitas análises com adjetivos como: espetacular, fascinante, ela expressou tal fala com maestria… As principais páginas não acharam importante falar sobre esses quadrinhos, nem que fosse algo como “gostei, recomendo, tem x páginas, é uma grata surpresa”, salvo algumas poucas exceções como o programa UHQ resenha com a participação da pesquisadora Flávia Gasi ou o texto do crítico Ciro Marcondes para o site Metrópoles.
Trecho de A rosa mais vermelha desabrocha
Embora saibamos o motivo da ausência dessas HQ nos principais canais de quadrinhos, não deixa de ser lamentável, principalmente no caso de A Origem do mundo, que grande parte da população siga tão falocentrada. Não é de se espantar que uma boa parte das mulheres cis e hétero tenham muito menos orgasmos em suas relações do que os homens cis e as mulheres lésbicas. Se mais pessoas lessem essa HQ, talvez pudessem aprender uma coisa ou duas sobre “aquilo que costuma chamar de genitália feminina”.
Se mais pessoas lessem A flor mais vermelha desabrocha, poderiam subverter a lógica capitalista que impregna especialmente os relacionamentos heteronormativos.
Por isso, deixo aqui minhas sugestões de leitura que pedem atenção e exercício de reflexão sobre muitos assuntos que dizem respeito a todo mundo. Todo mundo mesmo.
Daniela Marino é pesquisadora de quadrinhos e questões de gênero, graduada em letras, mestre em comunicação e doutoranda em ciência da informação.
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Dani Marino é especialista em histórias em quadrinhos e questões de gênero. Mestre em Comunicação e doutoranda em Ciência da Informação pela ECA/USP, também atua como professora de Literatura Inglesa. Ganhadora de 2 troféus HQMIX com o livro Mulheres e Quadrinhos, que organizou com Laluña Machado, já colaborou com diversos sites e canais especializados em cultura pop.