Kamala Khan, heroína multicultural
Sâmela Hidalgo escreve sobre as definições étnicas-culturais da personagem de Ms Marvel, assim como orientalismo, complexo de white savior, etnias e culturas
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Sâmela Hidalgo escreve sobre as definições étnicas-culturais da personagem de Ms Marvel, assim como orientalismo, complexo de white savior, etnias e culturas
A série da Ms Marvel está quase chegando e temos muita coisa para discutir envolvendo a personagem, principalmente se tratando de sua origem marrom asiática e sua religião islâmica.
Estava aqui vendo as notícias do que está acontecendo no Afeganistão, por exemplo, e percebi que podemos fazer muitos paralelos. Mas, antes disso, vamos aos fatos: estamos cientes que o Ocidente se enxerga como white savior [branco salvador] dos povos do Sul Asiático (e de todos os povos não-brancos), certo? Esse é um problema que escancara o racismo e o enorme ego que nós, ocidentais, carregamos.
Primeiro, vamos entender as definições étnicas-culturais de Kamala Khan: ela é americana-paquistanesa, portanto, marrom-asiática (que é como os povos do Sul Asiático são denominados no Brasil). E, para saber sobre a origem da personagem, precisamos conhecer um pouco mais sobre seu país de origem.
O Paquistão é um país teocrático onde o Urdu é a língua oficial e tem uma ligação muito forte com a Índia, país que faz fronteira, assim como o Afeganistão. Podemos perceber que os 3 países fazem parte da mesma influência e colonização britânica. A diferença é que o Paquistão teve sua independência em 1947 e o país foi criado para servir de refúgio aos islâmicos do leste e oeste da Índia. Em 1971, depois de uma guerra civil no país, o Paquistão se divide em dois e a parte oriental passa a se tornar um novo país: Bangladesh!
“Essa forte ligação com a Índia pode ser melhor entendido quando paramos para entender o processo histórico de formação do Paquistão. Antes de conquistar sua independência, o país era uma região pertencente ao território indiano, o que gerava diversos conflitos, uma vez que se tratava de uma região minoritária islâmica dentro de uma país de maioria hindu. Com a tão almejada independência, os paquistaneses construíram um Estado para muçulmanos, a fim de fugir da opressão e da intolerância. No entanto, o sonho durou pouco tempo, pois a ascensão do Talibã na região transformou as relações sociais e políticas do país, e durante anos, o país permaneceu sob o domínio do regime.
Algo bem curioso que vem dessa ligação é o fato de muitas mulheres paquistanesas usaram a Shayla, um véu tradicionalmente hindu, que deixa amostra parte dos cabelos, e que não é comumente usado por muçulmanas. Ou seja, a opção por esse tipo de véu nasce de uma construção tipicamente cultural, partilhada entre os dois povos.”
Clarice Lima, muçulmana, Mestra em Estudos da Linguagem, Professora, pesquisadora sobre Identidades Femininas Muçulmanas e criadora da página Feminismo Islâmico
Um pouquinho de história aqui e acolá, podemos perceber que o Paquistão é um país multicultural que tem influência persa, turca, mongol, árabe, britânica e claro, indiana. O povo paquistanês descende do povo indiano, mas historicamente o Paquistão é um país que teve muitas guerras travadas com a Índia, então é muito ofensivo confundir as pessoas dos dois países. Isso aconteceu, por exemplo, quando a internet queria que a atriz indiana Maitreyi Ramakrishnan (A Devi da série Eu Nunca, da Netflix) interprestasse Kamala no MCU. A atriz veio a público explicar que os dois povos são diferentes e que ela, em respeito ao povo paquistanês, nunca aceitaria fazer o papel.
Bom, a colonização aconteceu em boa parte do mundo e principalmente nas Américas, África e na Ásia e foi uma das coisas mais monstruosas já feitas pelo ser humano. Foi nessa monstruosidade que perdemos povos, culturas, etnias, línguas e milhares de histórias que poderiam estar sendo contadas aqui hoje. Parece que o ser humano sempre foi essa arma de destruição em massa, mesmo antes da descoberta do armamento nuclear.
E, como bons americanos, sabemos muito da colonização consumada aqui no Ocidente e como isso afetou os povos indígenas e como temos que lidar com rastros da colonização até hoje. Mas, muitas vezes, esquecemos que a colonização de povos asiáticos também aconteceu e ainda acontece, vale lembrar. Principalmente quando falamos da colonização de povos marrom asiáticos.
“Para além da colonização do século XIX, presenciamos diversas vezes a interferências dos Estados Unidos em dezenas de países, desmantelando totalmente suas culturas e as construções sociais. Foi essa interferência que ocasionou o estabelecimento do Talibã no Afeganistão e no Paquistão, há muitos anos, na época da Guerra Fria. A necessidade de apoio na região, fez com que os EUA investissem no grupo, visão uma aliança futura. Mesmo após a Guerra Fria, as consequências são latentes e extremamente nocivas para esses países”, explica Clarice Lima.
Atualmente, os jornais estão tomados por toda a crise política e religiosa que está rolando no Afeganistão. E com isso, passamos a ler muita desinformação, islamofobia e, principalmente, xenofobia. E é aí que lembramos que o Ocidente – mesmo que uma grande parcela da sua população tenha sido um povo colonizado e que teve sua cultura apagada – também perpetua esse tipo de preconceito e se acha no direito de ser um “white-not-too-white savior” ou ter o “complexo do branco salvador”.
Vemos muito isso quando observamos famosos indo em ~missões~ no continente africano e postando toda a tragédia como um alimentador de ego, como se no continente só existisse isso – desgraça – e o grande salvador está indo em resgate de pessoas racializadas. E sim, isso também acontece com pessoas marrom-asiáticas.
E muito mais que um salvador branco, o Ocidente também tem essa mania de ter um entendimento completamente errado sobre o Oriente. E isso vai além da nossa etnia, é algo estruturalmente cultural ocidental.
Conseguimos ver isso perfeitamente na HQ Ms Mavel – Guerra Civil II, onde a Kamala – mesmo sendo uma pessoa racializada, filha de imigrantes paquistaneses – também reproduz pensamentos ocidentais por ter sido nascida e criada nos Estados Unidos. Tanto que quando ela vai para o Paquistão passar um tempo com sua família, os próprios parentes a tratam como se fosse uma “branca americana” já que ela mostra algumas dificuldades com a língua local, cometendo erros gramaticais e eles até suavizam os temperos da comida para ‘níveis de brancos’ pra Kamala conseguir aguentar melhor.
Nesse arco, ela se sente perdida no mundo como se não se encaixasse em lugar nenhum. Em uma de suas falas na HQ ela diz que os estado-unidenses a consideram muito paquistanesa, e os paquistaneses a consideram muito estado-unidense. E essa sensação de não pertencimento faz com que ela trave uma batalha interna sobre suas próprias raízes e a faz pensar como é ser uma pessoa multicultural, onde ser quem ela é nunca parece ser suficiente.
E quando viaja pro Paquistão em busca desse encontro com si mesma e suas origens, ela se depara com problemas completamente orientais e comete um erro característico de uma pessoa do Ocidente: tenta resolver os problemas do país oriental, como uma ocidental. Isso acarreta muito mais problemas do que ajuda para o povo local, como por exemplo, quando ela tenta impedir um grupo de foras da lei que fazem poços de água artesianos ilegais e acaba destruindo completamente os carros-pipa deixando a população daquela cidade sem água.
É nesse instante que ela conhece o Adaga Vermelha, um herói local que a mostra o problema de ter uma visão ocidentalizada para resolver dilemas paquistaneses (e ele ainda enfatiza isso se referindo a ela como ferengi* – estrangeira).
E aí a gente chega a outro ponto: o feminismo ocidental comparado ao feminismo oriental. E só para constar, é importante lembrar que feminismo sem intersecção não existe. Para ser realmente um movimento a favor de direitos e igualdade pra mulheres é necessário abranger muito mais que somente mulheres cis brancas. O nosso feminismo tem que envolver mulheres trans, negras, amarelas, pcd’s, indígenas, ciganas, judias, marrons e todas as outras etnias e intersecções existentes. E isso também precisa levar em conta o feminismo islâmico, que é um movimento completamente diferente e que tem pautas distintas do que as que a gente conhece e lida aqui no Ocidente.
“Quando falamos de feminismo islâmico, estamos falando de uma vertente construída por muçulmanas para muçulmanas, que desejam a reconquista dos seus direitos, mas sem abrir mão da sua religiosidade. O olhar ocidental observa as mulheres muçulmanas, principalmente, aquelas inseridas em sociedades majoritariamente islâmicas, como oprimidas, submissas e desprovida de qualquer senso de autonomia. Na verdade, a realidade pode ser bem diferente. Mulheres muçulmanas se articulam, sabem se articularem, saber lutar pelos seus direitos, sabem conciliar a religião com a luta. Aliás, é a religião a principal motivadora desse sentimento questionador, que não aceita ser subjugada, é a religião que define que haja equidade de gênero e Justiça Social, mas que em muitas sociedades, esses conceitos foram “esquecidos” propositalmente pelos homens, enquanto classe dominante”, explica Clarice Lima.
Bom, por hoje é só! Deu para gente conversar um pouco sobre orientalismo, complexo de white savior, etnias e culturas e ainda envolver a Ms Marvel nisso tudo, né? Olha como é incrível quando uma heroína carrega tanta representatividade e representação que a mensagem atravessa as páginas do quadrinho e gera toda esse debate na vida real.
Siga @fem.islamico
E leia Ms Marvel! <3
Sâmela Hidalgo é manauara, editora de quadrinhos, consultora editorial, trabalhou na Devir Brasil por 4 anos e meio como assistente editorial e assessora de imprensa, podcaster no DFP (devíamos fazer um podcast), produtora Editorial no Stúdio Eleven Dragon, colunista no site Minha de HQ e idealizadora do projeto Norte em Quadrinhos que visa dar visibilidade para quadrinistas do Norte do país.
Siga: @samelahidalgo e @norteemquadrinhos
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