A monstruosa potência de ser trans
Vitorelo conversa com Lino Arruda sobre suas histórias em quadrinhos, que nos provocam sobre a forma como vemos e vivemos gênero, sexualidade e identidade
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Vitorelo conversa com Lino Arruda sobre suas histórias em quadrinhos, que nos provocam sobre a forma como vemos e vivemos gênero, sexualidade e identidade
Lino Arruda, quadrinista e pesquisador de Campinas, São Paulo, lançou em 2021 Monstrans: Experimentando Horrormônios, uma história em quadrinhos autobiográfica contemplada pelo edital Itaú Rumos. O livro, que já levou o Prêmio Mix Literário, continua impressionando a crítica em suas metáforas e analogias autênticas da monstruosa potência de ser trans.
Eu já vinha acompanhando o trabalho de Lino desde a época do meu mestrado em semiótica, quando percebi que a monstruosidade era frequentemente evocada por autories em HQs sobre gênero: desde a autobiografia sobre violência de gênero Desconstruindo Una, de Una, passando pelo nacional e independente PQ CA?, de Lalo, até a ficção Minha Coisa Favorita É Monstro, de Emil Ferris.
Então, durante minha pesquisa me deparei com o trabalho acadêmico de Lino, que pesquisou autorrepresentação travesti/trans* em zines latino-americanos em seu doutorado. Seus zines já eram conhecidos meus, com destaque para os Sapatoons Queerdrinhos e o Queimer(d)a: Quadrinhos Dissidentes Antiespecistas.
Tive a oportunidade de bater um papo com o Lino sobre sua trajetória, seu livro, e o que o futuro lhe reserva: seu projeto de ficção-científica foi contemplado em primeiro lugar com o Proac de financiamento de Histórias em Quadrinhos, chamado Cisforia.
Ironicamente, Lino nunca foi dos quadrinhos: nem de fazer, nem de ler. Isso talvez porque sempre tenha buscado algum tipo de representação LGBT na cultura que consumia, o que era muito escasso nos anos 90 e 2000. “A gente ficava procurando música feita por mulheres, coisas lésbicas no cinema, enfim, até o Mix Brasil era uma grande referência, o único momento no ano em que tinha como ver filmes com essa temática”. E isso se repetia nos quadrinhos, onde buscava por alguma referência fora da heterossexualidade ou até da autoria masculina.
O interesse pela linguagem se solidificou de fato quando os zines foram uma possibilidade de expressão das histórias que vivia e dividia em coletivos lésbicos ou com amigas, querendo de alguma forma materializar e propagar essa cultura munido também da metodologia dos grupos anarquistas dos quais participava. Era a facilidade e acessibilidade de pegar papel, caneta e simplesmente criar que atraía Lino: bastava xerocar sem se preocupar muito com layout ou diagramação, pois o foco era fazer o conteúdo circular em ambientes nos quais eles fizessem sentido. Eram as redes sociais de uma época em que a internet ainda começava a se popularizar no Brasil.
“Eu queria explorar mais era a questão de gênero, de enfrentar todos os problemas identitários não necessariamente através de uma ótica romântica” – Lino Arruda
“Foi por aí que comecei a fazer quadrinhos. Acho que comentei que foi uma história de uma amiga que, hoje, é um cara trans. Ele me fez querer falar mais sobre lesbianidade de um ponto de vista descentralizado da relação sexual de casal. Acho que até então a gente falava pouco sobre gênero, e muito sobre sexualidade. As histórias eram sempre românticas, de quem se apaixona e se descobre lésbica; tem toda uma geração de livros e filmes que vão nesse sentido. E o que eu queria explorar mais era a questão de gênero, de enfrentar todos os problemas identitários não necessariamente através de uma ótica romântica”. Em outras palavras, Lino resume: “sexo, gênero e sexualidade para além do que se faz na cama – enfim, como uma forma assertiva de ver o mundo”.
Com humor, ironia e sarcasmo, Lino busca explorar questões densas como violência e solidão estrutural, por vezes invertendo as expectativas da convencional tragédia LGBT. É um trabalho carregado de agenciamento, em que cada dor encontra seu equivalente na linguagem afiada do autor.
Nesse sentido, me recordei de uma fala de Lino sobre deficiência, em uma mesa em que participamos juntos durante o Mix Literário. É um tema também mencionado em Monstrans, e que encontra ali suas metáforas bem como acontece com o corpo trans. Lino sempre se interessou por dissidências, e enxerga entre elas “intersecções interessantes, e também diferenças cruciais”. Cita o livro de Naomi Ortiz: “ela fala muito sobre não ser mulher porque antes do gênero vem a deficiência dela, […] porque ela é deficiente antes de ser mulher”.
“No Monstrans eu quis trazer esses momentos de convergência entre ser trans, ser deficiente, ter nascido visivelmente deficiente e visivelmente masculina, com o gênero visivelmente meio torto. É um dos momentos em que os discursos são muito diferentes, como o discurso médico: essa ideia de que nasci trans ou de que nasci no corpo errado”. São discursos convenientes, que trabalham com o objetivo de “arrumar o corpo”, de ter “o corpo correto”.
Lino chegou a cogitar lançar seu livro de forma anônima, ideia que o Itaú Cultural apoiaria caso o autor decidisse seguir por esse caminho – mas, no fim, concluiu que “é um tiro no pé fazer um livro anônimo, as pessoas querem [te] ver, e hoje em dia a gente vende tudo pelo Instagram…”.
“De forma geral, é ainda mais agravado quando a autoria é trans, porque as pessoas querem ver a cara das pessoas trans, querem construir um antes e depois, elas querem consumir esse lugar que você representa… É difícil”. Para Lino, esse necessário respiro de toda a exposição que veio com uma autobiografia, está começando a criar forma: forma de ficção-científica. Lino tem trabalhado no roteiro de Cisforia, seu novo projeto, com Lui Castanho.
“É um trabalho em parceria. E acho que a ficção-científica – e a ficção de forma geral – é um lugar muito mais fértil para você inclusive se expor mais, trazer mais das suas questões”, inclusive questões que foram deixadas de fora do Monstrans pelo receio da exposição. Aqui, Lino divide com a gente a apresentação da história:
E se vivêssemos sob um Estado feminista autoritário, que enquadrasse a masculinidade cisgênero numa categoria potencialmente criminal? Cisforia é uma distopia de gênero que se passa numa espécie de “Vale dos Homossexuais”, onde o consentimento é a base moral de todas as relações afetivo-sexuais. Não-monogamia, fetiche, sado-masoquismo, práticas não-reprodutivas, dissolução da família nuclear e exaltação da transgeneridade são a norma. Mas será que uma sociedade que se baseia em policiamento e vigilância das identidades pode de fato garantir liberdade?
“Já tem algumas páginas, storyboard, tem algumas coisas fechadas… É muito mais liberdade, criatividade e articulação de experimentação de ideias sobre raça, sobre gênero, sobre classes, sobre geopolítica. Me sinto muito mais criativo no movimento de pensar em universos paralelos, realidades paralelas.”
“Cisforia é uma distopia transcentrada, transfuturista. É uma sociedade com outros vieses, outros acessos… Como seriam os corpos de pessoas trans numa sociedade hipertecnologizada, e onde as identidades mais marginalizadas são as identidades cisheterosexuais, especialmente os homens? Quais as formas de controle social, quais problemas identitários apareceriam nesse tipo de sociedade? Então a gente se vê fazendo uma série de paralelos entre a nossa realidade brasileira trans e uma distopia – então não é tão fora da realidade, não é completamente outro planeta. São essas mesmas questões de identidade, deslocadas, invertidas.”
Independentemente de gêneros literários, o trabalho de Lino promete colocar mais indagações sobre a forma como vemos e vivemos gênero, sexualidade e identidade – seja pelas fantásticas realidades que somos capazes de criar para interpretar o mundo, seja pela surreal e crua lente autobiográfica.
Cisforia: o pior dos dois mundos é uma história em quadrinhos escrita por Lui Castanho e Lino Arruda, que será desenvolvida em 4 volumes. O primeiro volume será publicado este ano, e é possível acompanhar seu desenvolvimento através do instagram @monstrans_hq.
Vitorelo é artista, autora de TILT (finalista Prêmios Dente e Grampo), sobre enxaqueca crônica e saúde mental, Tomboy (Mostra Diversa do Museu da Diversidade Sexual), sobre performance de gênero, e Lilibel, sobre demônios condenados ao inferno paulistano, e Kit Gay (Veneta), um manual que te prepara para o futuro, quando a alegria de viver e o respeito pela vida vencerão o preconceito, os ódios de gente recalcada, a alienação, as superstições e a estupidez. Seu trabalho autoral faz uso de experimentações gráficas e narrativas. Semioticista, pesquisa quadrinhos experimentais, resistência política e gênero. Siga: @vitorelo.art
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Vitorelo é artista, autora de TILT (finalista Prêmios Dente e Grampo), sobre enxaqueca crônica e saúde mental, Tomboy (Mostra Diversa do Museu da Diversidade Sexual), sobre performance de gênero, e Lilibel, sobre demônios condenados ao inferno paulistano. Seu trabalho autoral faz uso de experimentações gráficas e narrativas. Semioticista, pesquisa quadrinhos experimentais, resistência política e gênero. Siga: @vitorelo.art