Para quê um Kit Gay?
Vitorelo escreve sobre sua primeira publicação impressa, lançada pela editora Veneta
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Vitorelo escreve sobre sua primeira publicação impressa, lançada pela editora Veneta
Grupos de ódio vão sempre esvaziar de sentido nossas reivindicações legítimas, nossas expressões artístico-culturais. A comunidade LGBT+ especializou-se em transformar ofensa em grito de guerra e usar palavras para destruição em ferramentas para construir algo inédito, afetuoso, poderoso.
Kit Gay é o nome de meu livro de estreia no mercado editorial.
Digo no mercado editorial, porque eu já tinha feito um zine chamado Kit Gay antes. Mas uma coisa é imprimir em sua jato-de-tinta caseira seus pequeninos em folhas A4 dobradas à mão; outra coisa é me desdobrar durante dois anos em escrever e desenhar 96 páginas dedicadas à livraria mais próxima de você.
Para um autor neurótico (acredito que sejamos todos), o que mais me assustou nesse processo todo é a imediata responsabilidade que o título carrega. O que deveria ser um kit gay? Algumas possibilidades são:
Com o anúncio do lançamento do livro, surgiu uma questão entre o público: ao publicar um livro com esse nome, eu não estaria entregando aos bolsonaristas exatamente o que eles desejam? Ou seja: não seria este livro a própria cara do inimigo número um da nação, a representação da panfletagem inflamada que Bolsonaro usa para ameaçar a paz das famílias brasileiras? De certa forma, é como vestir, enfim, a fantasia de bicho-papão. Ainda bem que a gente gosta de se montar.
Minha tranquilidade quanto a isso se deve às origens do “kit gay” sobre o qual tanto se falou nos jornais, telejornais, redes sociais e afins. Ele surgiu de forma completamente ingênua e inofensiva: o projeto Escola Sem Homofobia, desenvolvido para combater esse tipo de violência em sala de aula. Sem sequer ter tido chance de sair do papel, o projeto se tornou bode expiatório de inúmeros personagens políticos que desejavam agradar setores conservadores da sociedade, como a bancada religiosa, muitas vezes pegando carona também na demonização do PT – visto que o projeto surgiu durante o governo petista, embora tenha sido também vetado pela própria então Presidenta Dilma Rousseff. Nem o PT queria nos bancar.
“Kit gay” se tornou uma espécie de alcunha pejorativa e estrategicamente abstrata, “incorporando” diferentes conteúdos conforme a conveniência da agenda conservadora: durante as eleições presidenciais de 2018, Bolsonaro chegou a exibir o livro Aparelho Sexual e Cia acusando-o de fazer parte do “kit gay”, apesar do livro jamais ter sido comprado pelo MEC.
A verdade é que Bolsonaro precisava de algo palpável para mostrar e, nessa ocasião, escolheu esse livro como objeto cênico para sua performance. Sim, performance, pois a campanha de Bolsonaro foi dramática no sentido puro da palavra: cheio de gestos, bordões, poses, danças e roupas coordenadas. Talvez ele se surpreendesse ao se identificar um pouco com o Kit Gay que eu proponho. Provavelmente não.
O fato é que o problema não somos nós: não é o que fazemos, como fazemos, para que fazemos. É preciso aceitar que, por princípio, para essas pessoas, estamos e precisamos estar fadadas ao fracasso – porque, estrategicamente, o sucesso delas depende disso. Tudo o que fazemos é vil porque nós somos, em essência, pessoas ruins para eles. Então não adianta nos pautar por aquilo que esperam de nós; ser LGBT+ já é estar contra algumas normas sociais. Ceder às pressões violentas para ser assimilado é diferente de ser apontado como pária, mas são dores que vêm da mesma causa.
O kit gay é um símbolo disso: um programa antiviolência que sequer foi aplicado e, uma década depois, ainda é constantemente deturpado sem possuir uma forma concreta na opinião da população.
Como um verdadeiro valentão de escola, Bolsonaro apelidou o programa e destruiu sua reputação antes mesmo que ele pudesse ser alguém, não muito diferente da trajetória de muitos de nós. Minha proposta é que, desta vez, seja uma pessoa LGBT+ a reinventar esse livro e reescrever essa história, como tantos já o fizeram – mas, dessa vez, que seja por nós, e não por eles. Para nós, e não para eles.
Kit Gay está agora disponível para pré-venda em http://bit.ly/kit-gay, e uma série de perguntas e respostas sobre o livro está sendo promovida no Instagram da Editora Veneta (@editoraveneta) e Vitorelo (@vitorelo.art).
Vitorelo é artista, autora de TILT (finalista Prêmios Dente e Grampo), sobre enxaqueca crônica e saúde mental, Tomboy (Mostra Diversa do Museu da Diversidade Sexual), sobre performance de gênero, e Lilibel, sobre demônios condenados ao inferno paulistano. Seu trabalho autoral faz uso de experimentações gráficas e narrativas. Semioticista, pesquisa quadrinhos experimentais, resistência política e gênero. Siga: @vitorelo.art
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Vitorelo é artista, autora de TILT (finalista Prêmios Dente e Grampo), sobre enxaqueca crônica e saúde mental, Tomboy (Mostra Diversa do Museu da Diversidade Sexual), sobre performance de gênero, e Lilibel, sobre demônios condenados ao inferno paulistano. Seu trabalho autoral faz uso de experimentações gráficas e narrativas. Semioticista, pesquisa quadrinhos experimentais, resistência política e gênero. Siga: @vitorelo.art