Qual o lugar das HQs na educação?
Natália Sierpinski compartilha a trajetória das histórias em quadrinhos na educação; seus desafios e usos na educação formal e não formal
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Natália Sierpinski compartilha a trajetória das histórias em quadrinhos na educação; seus desafios e usos na educação formal e não formal
As histórias em quadrinhos sempre tiveram influência para a formação dos sujeitos. Como toda mídia, ela tem seu espaço na educação informal, ou seja, na educação desenvolvida sem uma intencionalidade educativa ou sem um planejamento pedagógico. O mesmo acontece com a televisão e com atividades culturais, por exemplo.
Foi uma longa jornada até que as histórias em quadrinho passassem a ser usadas com uma intencionalidade educativa. Até meados da década de 60, era proibido ler HQs nas escolas. Os jovens, obviamente, liam muitos quadrinhos, mas eles eram vistas como uma subliteratura, uma leitura inferior, e por isso não educativa.
Uma obra que contribuiu para afastar as HQs da educação e repercutiu em todo o mundo foi o livro “Sedução dos Inocentes”, publicado em 1954 pelo psiquiatra alemão Fredric Wertham. Ele apresentou os quadrinhos como um tipo de produção violenta e que incentivava os jovens leitores a terem uma má conduta. A pesquisa foi muito embasada nas teorias da Indústria Cultural.
Sessenta anos depois, a Dra. Carol Tilley, da University of Illinois Graduate School of Library and Information Science, compartilhou uma pesquisa que analisou os arquivos e anotações de Wertham e conseguiu evidências de que o psiquiatra alemão fazia omissão, falsificação, manipulação e distorção dos dados de sua publicação.
Assim, casos de crianças violentas que eram explicados por elas serem leitoras de quadrinhos violentos, segundo Wertham, tinham a omissão de histórico de violência sexual, desestrutura familiar e abusos sofridos por essa criança, mostrando a importância de pensarmos todo o contexto social e cultural em que os jovens estão envolvidos, não sendo em nenhum caso a HQ quem tornou violentos os jovens do estudo de Wertham.
A pesquisa de Carol Tilley tem como base os Estudos Culturais. Em 2002, o professor e pesquisador Roberto Elísio dos Santos publicou o livro “Para reler os quadrinhos Disney”, que aborda as histórias em quadrinhos enquanto um produto cultural, ou seja, que toda HQ precisa de uma interpretação de como foi produzida, quem produziu, em qual país a obra foi feita, para qual público alvo, entre outros detalhes.
Além disso, os Estudos Culturais mostraram a importância de pensar a influência dos conteúdos midiáticos, confrontando as teorias de que as televisões iriam nos manipular totalmente e que iríamos ficar sem pensar e sem tomar decisões próprias, mostrando assim a importância de ter um pensamento crítico sobre a mídia, sobre os meios de comunicação e sobre a cultura.
Os Estudos Culturais foram desenvolvidos em meados da década de 60 pelas ciências sociais e ciências da comunicação. Nesse contexto, os quadrinhos chegaram oficialmente nas escolas a partir dos livros didáticos em 1960. Em 1996, foram consideradas como elemento constituinte do processo didático, a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), e integram os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) em 1998.
Em 2017, as HQs foram classificadas como um dos vários gêneros artístico literários que compõem a área de linguagens, códigos e suas tecnologias da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e atualmente temos HQs integrando o Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) e o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD).
Ao vencer a barreira de chegar de fato nas escolas, as histórias em quadrinhos esbarraram em muitos outros desafios, seja o preconceito de serem vistas como uma subliteratura, ao desafio de haver um uso pedagógico que valorize de fato a linguagem das HQs, até – e este desafio não é apenas dos quadrinhos – de serem usadas a partir de um recorte de gênero igualitário e que não naturalize o machismo.
Ao chegarem nas escolas, as histórias em quadrinhos tiveram o desafio de serem vistas enquanto uma subliteratura ou uma leitura inferior. Até hoje é muito comum termos diversas adaptações em quadrinhos de obras literárias, que em sua maioria são ótimas – se forem vistas enquanto uma adaptação.
Toda adaptação altera nossa percepção de alguma parte da obra, criando uma nova obra com uma nova linguagem. O problema é quando usamos uma adaptação em quadrinhos para preparar o jovem leitor para posteriormente ler o livro “de verdade” que é uma literatura considerada complexa e difícil.
Nessa perspectiva, as HQs são uma linguagem mais simples e mais infantil e, por isso, uma escada que guia o jovem aluno até a literatura clássica. Essa ideia está completamente equivocada, pois a linguagem das HQs é tão complexa – se não mais complexa – do que a linguagem escrita.
A mesma ideia guia professores que usam materiais didáticos que possuem tiras da personagem argentina Mafalda para perguntar sobre a conjugação de algum verbo. Ou seja, ignoram completamente a linguagem da HQ e olham apenas para uma frase dentro de um balão de fala para fazer uma pergunta sem contexto.
Esses exemplos mostram como é importante que os professores que querem atuar com HQs na educação compreendam o mínimo sobre a linguagem dos quadrinhos (onomatopeia, recordatório, balão de fala, tempo de narrativa, requadro, linhas cinéticas etc) e compreendam como o texto e a imagem se complementam de fato, muitas vezes o que a imagem conta de uma história o texto não conta, e vice versa.
Assim, é possível propor atividades que façam sentido serem realizadas com HQs, e que não poderiam ser feitas a partir de um filme ou uma música, por exemplo.
Nosso último antagonista das HQs na educação é o sexismo. Ao pensarmos nos quadrinhos enquanto um produto cultural, mídia e arte, sendo uma produção historicamente vista como masculina, com maior quantidade de autores homens legitimados, é importante nos atentarmos a uma perspectiva de gênero.
Mas então não vamos usar HQs de autores homens ou que tenham representações sexistas? Acaba sendo contra produtivo e irrealista ir para esse caminho. Como professor, só é válido se atentar para não naturalizar representações sexistas – seja no nível visual ou seja na construção dos personagens e das narrativas – apontando em conjunto com os alunos que é uma representação preconceituosa e por quais motivos.
Ao mesmo tempo, valorizar produções feitas por autoras mulheres, pessoas não binárias ou que subvertam questões de gênero, sempre serão bem-vindas para ajudar a desconstruir a visão estereotipada de que HQs são um gênero masculino.
O uso das histórias em quadrinhos na educação formal e não formal é muito interdisciplinar, transdisciplinar e multidisciplinar. Professores de todas as áreas de atuação e disciplinas podem atuar com HQs em suas disciplinas e temos diversos livros focados na formação de professores para uso de HQs na sala de aula.
Além das dezenas de livros, temos também muitos cursos com foco nesse tema. A professora e pesquisadora Sonia Luyten é uma grande referência e, junto com José Alberto Lovreto, produziram o projeto Efeito HQ, que é focado na formação de professores.
Outro destaque é o curso de formação para professores “Quadrinhos em Sala de Aula”, promovido pela Fundação Demócrito Rocha em parceria com a Universidade Aberta do Nordeste, que traz todos os conceitos básicos para compreender a linguagem e uso das HQs na educação.
Assim, compreendendo a linguagem dos quadrinhos e sabendo qual conteúdo, tema ou projeto o educador quer abordar a partir das HQs, as possibilidades são infinitas. É possível usá-las para trazer o contexto de um determinado momento histórico e aproximar o conteúdo do aluno. É possível usar os personagens, ações que acontecem na narrativa, conflitos e resoluções para abordar temas filosóficos ou sociológicos.
Qualquer tema pode ser retratado pelos alunos no formato de uma HQ – ao invés de uma redação dissertativa por exemplo – e a forma como o aluno constrói a narrativa, como ele narra os fatos, quem ele escolhe para ser protagonista, desenvolvem suas habilidades de comunicação, argumentação e interpretação crítica.
É possível também usar o que não aparece na história – por qual motivo esse fato foi omitido? O educador também pode omitir fatos: tirar o texto dos balões de fala e pedir para os alunos completarem ou o inverso, oferecer apenas o texto e pedir para os alunos desenharem, será que se aproximam da intenção inicial da obra? Ou será que irão criar algo totalmente novo a partir das suas interpretações?
Ler as HQs de forma coletiva ou compartilhar obras produzidas pelos alunos também é uma grande potência. Ao lerem e interpretarem as HQs, eles precisam compreender as referências visuais, culturais e regionais da obra e compartilhar com os colegas suas percepções contribui para uma formação que vai partir do repertório do aluno e de uma linguagem que os estudantes costumam se sentir a vontade de interagir.
A professora e pesquisadora Natania Nogueira destaca a importância dos espaços das gibitecas escolares para a formação dos alunos. Em 2006, ela criou uma gibiteca na escola onde trabalha e também usa as HQs no ensino de história, além de compartilhar em diversas publicações os benefícios destas práticas pedagógicas.
A educação não formal – processos educativos fora do ambiente escolar – também apresenta infinitas possibilidades, como atuar com projetos sócio emocionais, focados em comunicação e expressão, cidadania, projeto de vida. Tudo depende de como a aula será montada e qual o objetivo educativo que será levado.
Atuar com as HQs na educação contribui para um processo formativo que consegue colocar o aluno enquanto protagonista, trazer conteúdos relacionados ao repertório e memória afetiva dele muitas vezes, e fomentar o pensamento crítico.
Então, respondo à minha pergunta inicial: qual o lugar das HQs na educação? Elas possuem lugar em todos os espaços formativos, sejam na educação formal ou não formal, desde que tenhamos educadores com intencionalidade e disposição para levar essa linguagem para sua sala de aula ou ambiente educacional, sem limites para inventar possibilidades e criar novas formas de atuar com as HQs na educação.
Natália Sierpinski é paulistana, educomunicadora e pesquisadora de histórias em quadrinhos, gênero, sexualidades e educação É coordenadora da programação do premiado evento Butantã GibiCon. Atualmente está produzindo sua primeira HQ (Afeto) em parceria com Vivi Melancia que trata de questões de gênero e sexualidade no espaço de uma escola pública em São Paulo. Siga: @n.sierpinski
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Mestre em Ciências da Comunicação (PPGCOM-USP) com pesquisa sobre autoria de mulheres nas HQs no Brasil e Licenciada em Educomunicação (ECA-USP) com trabalho final sobre o uso das HQs para falar sobre gênero nas escolas. Pesquisa sobre gênero e histórias em quadrinhos desde 2014, já escreveu nos sites Garotas Nerds e Minas Nerds. É coordenadora da programação do premiado evento Butantã Gibi Con.