Resenha: Duplo eu
A jornalista Maria Júlia Lledó escreve sobre a HQ “Duplo eu” e como a narrativa gráfica a trouxe reflexões sobre auto-observação e autoimagem
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A jornalista Maria Júlia Lledó escreve sobre a HQ “Duplo eu” e como a narrativa gráfica a trouxe reflexões sobre auto-observação e autoimagem
Querida (quer dizer, não tão querida), doppelgänger*. Agora eu sei onde você mora. Conheço seus hábitos e a insistente mania de se passar por mim. Foram anos sem saber como era seu rosto, qual era o seu nome… Mas a quadrinista Audrey Lainé e a roteirista Navie me contaram. Na verdade, elas me ajudaram a decifrar você, que vem me perseguindo desde a puberdade. Dessa vez, vamos ficar cara a cara.
É assim, nesse processo de auto-observação que me encontro após ter lido a graphic novel Duplo eu (Ed. Nemo, 2019). Enquanto Navie compartilha um relato pessoal dessa “outra versão de si” que a acompanha todos os dias, convencendo-lhe a assaltar a geladeira na madrugada, a não dar atenção à saúde física e mental e, sobretudo, a boicotar seus sonhos e desejos, eu-leitora começo a me enxergar.
Em linhas vermelhas, essa espécie de stalker se descola do corpo de Navie e a domina como um peso do qual ela não consegue se desvencilhar. O “duplo eu” não permite que ela faça algo sobre sua obesidade mórbida, sobre os problemas no casamento, sobre sua autoimagem mas, principalmente, sobre seu amor próprio.
Navie carrega um peso do qual tenta escapar, luta para amar e, por fim, deseja matar. “Mas como você se mata sem morrer?”, desabafa Navie, nos primeiros das primeiras páginas. De mãos dadas, vamos juntas — personagem e leitoras — pelo emaranhado de sentimentos dos quais estamos sempre fugindo. Medos que nunca encaramos. Monstros que nós mesmas criamos, e alimentamos, porque seguimos repetindo: “Quando eu perder 10 kg; Quando eu fizer uma lipo; Quando minha bunda for menor/maior; Quando meu peito for maior/menor; Quando minhas coxas pararem de assar na praia… Quando eu for aquilo que eu acho que esperam de mim, aí sim, eu vou ser linda e vou me amar. Afff…
No desenrolar dessa história, impossível não se emocionar com os traços de Audrey Laine que gritam tão alto quanto o texto autobiográfico de Navie. Impossível não olhar para seu próprio “duplo eu”. O que eu faço agora? Penso ao chegar à última página.
Na HQ Duplo eu, as autoras Audrey Lainé e Navie podem não ter dado a exata resposta que eu imaginava para esse peso que me acompanha. Aliás, seria ingenuidade minha que elas magicamente resolvessem a duplicidade que me persegue…
Mas por causa delas, agora, eu sei que posso me olhar no espelho e conversar cara a cara com minha doppelgänger. Vou pedir-lhe espaço. Espaço para que ela me deixe vestir o meu próprio corpo.
*A palavra doppelgänger vem do alemão “doppel” que significa dublê, uma versão de você, um duplo ambulante.
Maria Júlia Lledó, café com leite no universo dos quadrinhos, é jornalista, produtora/editora de conteúdo, redatora e editora da Revista E – Sesc São Paulo, gosta de compartilhar suas impressões (e sensações) sobre HQs. Saiba mais: julialledo.com
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