Resenha: Meu diário de Nova York
Dani Marino escreve sobre a clássica HQ underground de Julie Doucet, publicada no Brasil pela editora Veneta
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Dani Marino escreve sobre a clássica HQ underground de Julie Doucet, publicada no Brasil pela editora Veneta
Quando vi algumas publicações falando sobre Meu Diário de Nova York, de Julie Doucet, lançado nesse ano pela Veneta, eu sabia que precisaria ler essa HQ. Hillary Chute a menciona 6 vezes em seu livro Graphic Women, produção fundamental para entender a produção de quadrinhos underground norte-americanos, ou seja, é uma autora muito relevante para qualquer pessoa que goste de conhecer narrativas biográficas e autobiográficas de um grupo que costuma ser frequentemente apagado das obras sobre quadrinhos.
Nesse sentido, o que as editoras como a Veneta fazem ao lançar obras semelhantes, é garantir o registro dessas autoras e a sua existência na história dos quadrinhos, além de nos possibilitar conhecer uma maior diversidade de narrativas e vivências.
Doucet é realmente uma feminista de mau gosto, uma má feminista, como sugere o provocativo título do prefácio de Cris Siqueira, tradutora da obra? Isso realmente não importa, mas as considerações da Cris sobre a HQ importam, portanto, não pule o texto dela! Essa apresentação é imprescindível para a contextualização das histórias e, principalmente, para que possamos pensar sobre o papel de Doucet dentro da produção de quadrinhos autorais femininos.
Mas por que trazer o feminismo para pensar essa produção é relevante? Bom, Meu diário de Nova York reúne algumas das várias histórias publicadas na Dirty Plotte, revista da Doucet que começou como um zine e foi produzida entre o final dos anos 1980 e anos 1990. Ou seja, se pensar feminista não era algo tão recorrente como é hoje para muitas quadrinistas da geração atual, que já possuem maior repertório sobre o movimento. Natania Nogueira, pesquisadora já citada na Mina de HQ algumas vezes, também notou essa mesma relutância em se assumir feminista entre algumas das pioneiras de quadrinhos na França e em sua apresentação no IV ASPAS NORTE, evento acadêmico de quadrinhos, ela apresentou algumas questões sobre a produção de quadrinhos feitos por mulheres (cis, trans ou não-binaries) sob o título de “Quadrinhos femininos ou quadrinhos feministas?”. Essa é uma ponderação importantíssima para entender o trabalho da Doucet e outras quadrinistas que não se autointitulam feministas.
Se hoje a Doucet é feminista ou não, o fato é que em Meu diário de Nova York não há nenhuma intenção de apresentar ou discutir o feminismo (ou os feminismos) como um fator norteador dessa produção e, sinceramente, esse também não deveria ser um critério de juízo de valor sobre a HQ, pois é uma ideia muito equivocada e reducionista pensar que mulheres só deveriam produzir quadrinhos sobre determinados assuntos ou que deveriam ser feministas para terem seu valor reconhecido entre o público feminino, que definitivamente representa o leitor ideal desse trabalho.
O que vemos na HQ são recortes, passagens da vida pessoal de Doucet entre a conclusão do ensino médio em um colégio de freiras em Montreal e sua busca por estabilidade profissional e emocional após concluir a graduação em Artes em Nova York. Seu traço remete a outros quadrinhos underground da mesma época como os da Aline e do Robert Crumb, ou seja, um traço mais “sujo” e cartunesco que não tem a menor intenção de representar qualquer fidelidade anatômica. Os personagens, incluindo ela mesma, são caricatos. Isso significa que há um exagero intencional nas representações, como se o tom jocoso pudesse ajudá-la a lidar com a realidade que ao longo de toda a HQ, era muito, muito dura.
Já na primeira história, sobre sua primeira relação sexual, o que senti foi embrulho no estômago, pois sou mulher e mãe de uma menina. Então é apenas desolador pensar que se lá atrás Doucet tivesse tido acesso à informação sobre sexo, gênero e sexualidade, ela provavelmente teria pensado duas vezes antes de perder a virgindade aos 17 anos com um cara abjeto que devia ser uns 20 anos mais velho que ela. Ela não teria como entender na época que o que ela viveu não deixa de ser um estupro, assim como grande parte das mulheres da minha geração não entenderiam. Aí, já fica claro o quanto a autora estava distante do feminismo ou do acesso à informação que o feminismo possibilita. Uma pena, pois o feminismo poderia tê-la conscientizado do quanto as situações que ela viveu em seguida eram extremamente tóxicas.
Já na faculdade e morando em Nova York, o que acompanhamos é uma sucessão de relacionamentos abusivos, homens tóxicos em suas mais variadas apresentações e uma autocrítica extremamente potente sobre suas escolhas. Ela, uma mulher epilética, não tinha noção do quanto as drogas e uma vida insalubre ao lado de homens horríveis piorava sua condição de saúde, o que não chega a ser uma surpresa considerando que estamos nos anos 1980/1990. Mas, ler esses quadrinhos com a mente de 2022, nos faz querer entrar na história e resgatar Doucet, como a própria Cris Siqueira comenta em sua introdução.
Não é uma HQ feliz, na verdade, bem longe disso: ela tem gatilhos de violência sexual e de gênero. Ainda assim, eu fiquei extremamente feliz de poder conhecê-la. Mais uma vez, ler essas histórias me possibilitou enxergar vários homens e mulheres que conheço. Talvez também sirva como alerta para muitas pessoas que se envolvem com homens manipuladores e chantagistas como os que Doucet conheceu e se relacionou em sua vida e eu gostaria de crer que ela superou tudo isso, pois sua honestidade é potente. Sua coragem em se expor como fez, é inspiradora. Tão inspiradora que em 2022 recebeu o Grand Prix em Angouleme pelo conjunto de sua obra. Então, eu só tenho a agradecer a ela por ter me proporcionado uma leitura tão impactante e importante.
Obrigada, Julie! Fique bem!
Daniela Marino é pesquisadora de quadrinhos e questões de gênero, graduada em letras, mestre em comunicação e doutoranda em ciência da informação.
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Dani Marino é especialista em histórias em quadrinhos e questões de gênero. Mestre em Comunicação e doutoranda em Ciência da Informação pela ECA/USP, também atua como professora de Literatura Inglesa. Ganhadora de 2 troféus HQMIX com o livro Mulheres e Quadrinhos, que organizou com Laluña Machado, já colaborou com diversos sites e canais especializados em cultura pop.