Mulher Maravilha brasileira
Sâmela Hidalgo analisa as primeiras HQs da Yara Flor e mostra como a construção desta protagonista traz a invsibilização dos povos indígenas brasileiros
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Sâmela Hidalgo analisa as primeiras HQs da Yara Flor e mostra como a construção desta protagonista traz a invsibilização dos povos indígenas brasileiros
Criada em 1941, Mulher Maravilha – a primeira super heroína dos quadrinhos, completa 80 longos anos em 2021. No auge da onda feminista que explodia nos anos 70, a Mulher Maravilha foi reformulada para representar e consolidar a luta pelos direitos das mulheres. Mas, esses direitos eram os direitos de todos os corpos femininos ou somente os direitos de corpos femininos brancos? Não me entenda mal, os primeiros levantes feministas foram super importantes para conseguirmos o direito ao voto, por exemplo. Mas, você entende que, enquanto as mulheres brancas lutavam pelo direito de votar, as mulheres negras lutavam pelo direito de sobreviver? E podemos ir ainda mais fundo nesse recorte social, se pensarmos que as mulheres indígenas lutavam e lutam até hoje pelo direito de simplesmente existir.
Em todas essas oito décadas de existência da Mulher Maravilha, tivemos a oportunidade de ver várias versões da mulher mais forte do mundo nos quadrinhos: loira; negra; asiática; muçulmana; antropomórfica na versão de uma lebre; a Tempestade dos X-men já foi mais ou menos a Mulher Maravilha no universo Amálgama (aquela história horrível onde o universo da dc e marvel se encontram), já tivemos versão nazista da personagem e até uma versão em que ela é o Homem Maravilha! E agora, 80 anos depois, a existência dos povos nativos na cultura pop mundial, parece finalmente conseguir espaço com a inserção de uma Mulher Maravilha indígena, com a nova era da personagem, que de acordo com a própria DC quer introduzir também essa diversidade étnica-racial em suas obras, criando assim a Yara Flor.
E, pensando nisso, faço a seguinte pergunta: quantas personagens do mundo das super heroínas a gente conhece que são mulheres indígenas? Ok, vamo lá! Na Marvel temos Rainmaker, Rosa Apache Kid, Risque, Amka (Snowguard), Eco, Talismã, Dani Moonstar, Kayla Silver Fox e Moonstalker. Já na DC temos: Manitow Danw, Raven, Vesper, Equinox, e a Ya’Wara. Legal! Agora me diga, quais dessas são personagens que protagonizam suas próprias revistas? Pois é, nenhuma! Percebe? O apagamento dos povos indígenas é algo tão intrínseco na sociedade que muitas vezes quando a gente fala de diversidade, eles sequer são lembrados para serem inclusos e são invisibilizados dentro da própria minoria.
Bom, achávamos que isso seria diferente com a chegada de Yara Flor. Tivemos expectativas altíssimas quando a nova personagem foi anunciada, e ainda por cima, Brasileira! Uma protagonista que finalmente representassem as mulheres indígenas dentro da cultura pop.
Maaaaaaaaaas, como alegria de pobre dura pouco, as grandes marcas editoriais, mais uma vez, deixaram a desejar. Tanto que a DC foi alvo de críticas das próprias mulheres nativas brasileiras, apesar de ter sido bem recebido pelo resto do público.
Para falar sobre isso, primeiramente precisamos entender o termo Folclore e por quê os povos indígenas discordam desse termo para se referir as suas cosmovisões.
A palavra Folclore vem do inglês Folk-Lore, que significa Povo-Conhecimento, portanto, é o conhecimento de um determinado povo. Até aí tudo bem, né? Só que devemos ficar atentos para ao utilizarmos esse termo, não reproduzirmos pensamentos colonizadores e preconceituosos que por anos subjugaram os povos nativos. Esse é o caso aqui. Com o passar do tempo, os colonizadores passaram a usar o termo Folclore para mitificar e banalizar a cosmologia dos povos originários que já habitavam o Brasil muito tempo antes da invasão, vale lembrar. É como se toda a cultura que fosse relacionado a essa visão não-branca, fosse lenda, ou seja, não fosse verdade. Mas, nesse caso, estamos falando da verdade de quem?
E para termos uma visão mais assertiva do que estou retratando aqui, convidei a artista visual indígena Tupinambá Moara Brasil para explicar o termo e suas implicações:
“Folclore é um termo estrangeiro que generaliza e tenta colocar num só lugar diversas cosmologias, inclusive a indígena, colocando-a num lugar de “folclore brasileiro”, mesmo que o Brasil nunca tenha respeitado os povos indígenas, sua territorialidade e nem sua cosmovisão. Os ditos brasileiros se apropriam da nossa cultura originária e ganham dinheiro sem reverter aos verdadeiros detentores dessa cultura, que nunca são colocados como protagonistas, enquanto roubam nossa história e colocam como se fosse do Brasil. O Brasil é plurinacional, e precisa compreender e respeitar esta diversidade étnica e cultural.”
Então quando tratamos as entidades da religião indígena, por exemplo, como parte do “Folclore Brasileiro”, estamos desrespeitando toda a crença de um povo e afirmando que sua cosmovisão é incorreta.
E isso já foi um problema no marketing da editora, quando se referiam à história da Yara como uma história folclórica brasileira. E esse tipo de questionamento também me ocorreu enquanto lia Mulher Maravilha: Future State. Porque essa tal folclorização foi notada na cena em que a protagonista Yara Flor ameaça e amarra a Caipora, uma entidade religiosa da cultura tupi-guarani. E o tratamento que o encantado recebe da Yara, é considerado desrespeitoso perante suas crenças. Isso quer dizer que, em nenhuma hipótese, um indígena trataria uma de suas divindades dessa forma. Então, temos uma incoerência na forma como isso foi representado, é como se os criadores da história não tivessem nem se dado o trabalho de fazer uma pesquisa mais profunda da realidade em que eles estavam inserindo a personagem.
Um ponto legal da história a ser destacado é que a Yara é metade Amazona-de-Themyscira e metade indígena-brasileira. Então, os seus dois mundos ‘místicos’ se misturam aqui – suas crenças greco-romanas e sua ancestralidade indígena. Tanto que a história começa se passando na Floresta Amazônica enquanto encontra a Caipora e termina com ela adentrando o Mundo Inferior, no território de Hades, pegando uma carona com Carontes. Mas, aqui caímos em mais um estereótipo – sua personalidade “explosiva” e “inconsequente” muitas vezes passa a impressão de mulher selvagem e exótica, que é exatamente a visão que um branco ‘civilizado’ tem em relação à uma mulher indígena. Como se o lado animalesco da personagem se sobressaísse quando ela está furiosa ou é afrontada e isso definisse completamente quem ela é. Em contrapartida, seu lado mais moleca e brincalhona que não leva muita coisa a sério, veio bem a calhar em firmar sua personalidade espontânea e corajosa.
Longe de mim tirar o mérito de Joelle Jones que é uma grande quadrinista que admiro muito, e que escreveu e desenhou a personagem, mas todos esses problemas poderiam ter sido evitados se uma roteirista indígena tivesse sido responsável por essa história, porque possivelmente não teria cometido esses erros, já que ninguém melhor que uma indígena para retratar a história de outra. Ou melhor, se a equipe criativa tivesse pelo menos uma consultora indígena-brasileira por trás. Isso, com certeza, daria toda uma profundidade para a personagem e seu background, e ainda conseguiria realmente retratar a cultura indígena como ela deve ser retratada: baseada na representação e representatividade dos povos originários dentro e fora das páginas.
Isso me lembra um feito da outra grande marca editorial e rival da casa de Yara Flor: a Marvel, que em 2020 (sim, o fatídico ano passado) lançou a HQ Marvel Voices – Indigenous Voices #01 para comemorar o mês do Patrimônio Nacional dos Nativos Americanos, onde autores e artistas indígenas foram convidados a dar voz e visibilidade aos super heróis nativos da editora. Bingo! Infelizmente, a DC perdeu uma grande oportunidade de fazer história com a maior heroína de todos os tempos.
Mas, depois de toda a discussão sobre a personagem que foi levantada no twitter pelas próprias mulheres indígenas brasileiras – e que também foi ouvida e lida por Joelle Jones – só nos resta esperar que pelo menos uma vez na vida, os povos originários parem de ser tão invisibilizados. E que, principalmente, as mulheres indígenas possam além de resistir, também existir.
Sâmela Hidalgo é manauara, editora de quadrinhos, consultora editorial, trabalhou na Devir Brasil por 4 anos e meio como assistente editorial e assessora de imprensa, podcaster no DFP (devíamos fazer um podcast), produtora Editorial no Stúdio Eleven Dragon, colunista no site Minha de HQ e idealizadora do projeto Norte em Quadrinhos que visa dar visibilidade para quadrinistas do Norte do país.
Siga: @samelahidalgo e @norteemquadrinhos
A arte que ilustra essa coluna é da Ty Silva: @tysilva_
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