Tá, mas será que é quadrinho?
Um debate nas redes sociais levantou questões sobre as definiçoes de memes e tirinhas e a crítica e pesquisadora de HQs Maria Clara Carneiro contribuiu com algumas considerações sobre o tema.
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Um debate nas redes sociais levantou questões sobre as definiçoes de memes e tirinhas e a crítica e pesquisadora de HQs Maria Clara Carneiro contribuiu com algumas considerações sobre o tema.
Um debate nas redes sociais levantou questões sobre as definiçoes de memes e tirinhas e a crítica e pesquisadora de HQs Maria Clara Carneiro contribuiu com algumas considerações sobre o tema.
Hmmfalemais: os limites do humor dos quadrinhos
Nas últimas semanas, a seção de comentários do jornal Folha de S. Paulo ficou em polvorosa e não foi só por conta de editoriais enviesados sobre Lula III ou montagens fotográficas ocupando espaço de jornalismo. Também foi por ocupação de espaços; porém, no caso que vamos abordar aqui, sobre quadrinhos feitos com montagem ocuparem, supostamente, o espaço de quadrinhos feitos pelos artistas de sempre.
Aos fatos: na dança das cadeiras costumeira do jornal, demitiram alguns colunistas de texto, como Gregório Duvivier, e contrataram o sujeito que desenvolve o perfil @hmmfalemais no Instagram (como trabalha de forma anônima, vamos chamá-lo aqui de Dr). Na mesma época, o jornal deixou de publicar as tiras Adão Iturrusgarai, após 30 anos de casa e, no lugar dele, contrataram Galvão Bertazzi. Como acontece com essas mudanças, muita gente ficou chateada, e não sem razão. Além do carinho, da admiração e do hábito de ler sempre os mesmos autores, lembrou-se que a renovação, dentro de empresas, também implica em redução de custos (pagar menos para alguém novo em vez de apoiar progressão de carreira). Mas sem entrar nesse mérito, e muito menos no de qualidade (essa que vos escreve, por sinal, gosta bastante dos dois quadrinistas), em meio a essas mudanças editoriais, leitores ficaram confusos com a introdução das tiras do Hmmfalemais no caderno Ilustrada do jornal.
A primeira menção nas redes do jornal, por sinal, foi uma grande bola fora. Chamaram de “charge” a página publicada – que fazia piada sobre BBB. Choveram comentários: “é meme”. Mas também: “tiraram o Adão para isso?” e ainda alusões ao uso de inteligência artificial para gerar conteúdo.
O debate foi caloroso, e é até divertido, para alguém que pesquisa quadrinho, como eu, ver tanta gente interessada em definições, e a euforia (ou até histeria) para se defender o dispositivo popular. Afinal, para a pesquisa, hoje, essa discussão nem é importante: o importante é discutir, justamente, os efeitos desses objetos culturais, compreender contextos. Mas essa reverberação da discussão esbarrou em certo extremismo conceitual, e acabaram por atacar sujeitos-autores que, afinal, só estavam produzindo seu conteúdo de boas.
Por partes:
A tira da discórdica publicada na Folha Ilustrada – 21/02/23
Davide Crippa, meu amigo filósofo, pediu a uma IA para produzir piadas com Bolsonaro…
Quadrinho não é a matéria do que é feito. É seu dispositivo, ou seja, a gente enxerga quadrinho a partir da articulação entre diferentes elementos em uma página (ou em uma tira, ou o uso específico dos carrosséis do Instagram), em que texto e imagem fazem parte de uma mesma matéria. Quadrinho também é a forma como se lê, a forma como circula.
Um dos princípios dos quadrinhos é o fato de repetirem diferentes elementos para gerar o efeito narrativo: ou seja, de gerar certa progressão discursiva. Isso se dá pelo uso de personagens, pelo recurso do quadro, por uma repetição textual também. Se o dispositivo “espalha” e articula os elementos da história, é a repetição que a conduz. Assim, o pessoal do Oubapo e outros artistas vão recorrer à repetição em excesso para brincar com esse dispositivo. Esse “espalhamento” e uma possibilidade de progressão narrativa é o que diferem o quadrinho do cartum e da charge, que apresentam discursos mais pontuais, mínimos. Como um pictograma que se lê inteiro, enquanto a leitura da tira, da página e do livro de história em quadrinhos se dá de forma mais parecida com o ideograma: é a relação entre os elementos que cria o sentido da “frase”, não o quadro isolado.
Outros artistas vão brincar com imagens pré-fabricadas (jogo centenário, muito usado pelos situacionistas e até pelo Art Spiegelman) para criar um quadrinho feito de readymade. Algo bem artsy, bem refinado. Mas pode ser o jogo tosco de um copy-paste bem-humorado.
Diversos artistas, há uns 60 anos, vão fazer jogo com a imagem pronta, bem antes de existir imagem gerada automaticamente por computador. Lembraram da intervenção do Jaguar sobre o quadro do Pedro Américo, impossível esquecer do Cersibon. E as tirinhas da Alexandra, O pintinho, que, por usarem uma técnica “pixelada” de desenho, simulando o malfeito, com copiar e colar, seria menos quadrinho por isso. E o que dizer de inúmeros artistas que fazem da repetição e da pobreza estética da internet seu recurso estético para dar visualidade a textos cômicos e potentes? Para ficar em um contemporâneo do já citado Galvão Bertazzi, ou seja, outro alguém com 3 décadas de trabalho com quadrinhos na internet, é só lembrar do começo dos Malvados. Que também publica na Folha de S. Paulo.
O pintinho, de Alexandra, foi publicado em duas coletâneas da Lote 42
O quadrinho, afinal, é uma arte que demanda uma montagem da página para criar o efeito plástico e narrativo. E a montagem se organiza por seleção e composição. É uma criação artística, mesmo com recursos pré-existentes. Ou, como em alguns desses artistas, há simulação de uma pobreza estética pela própria estrutura imagética que a gente encontra nos memes, em que o desenho tosco gera comicidade e ainda emoldura um texto forte.
Minhas aventuras pessoais com tiras a partir de imagens pré-existentes (site stripgnerator já desativado)
Esses acima são alguns poucos exemplos de quadrinhos ancorados em gêneros do humor. Claro, tá liberado não achar graça. E até poderia explicar a piada – inclusive sou melhor nisso do que gerar humor, vide minha tentativa de tira. Mas não vem ao caso, é outro assunto mais amplo, e já escrevi demais. O importante, aqui, é lembrar que limitar o quadrinho ao desenho, à imagem, é esquecer disso tudo. E esquecer, principalmente, de umas seis décadas de invencionismo estético do underground ao post-comics de galeria (sim, isso existe).
Assim: é muito evidente, para mim, a potencialidade estética e humorística do Hmmfalemais. E o fato de que um quadrinho reutilize formas visuais tão integradas à linguagem “das internets” ocupe um espaço ainda privilegiado de um jornal desse porte, mostra que os editores da Ilustrada estão atentos a essas transformações importantes em nosso consumo cotidiano de imagem, de texto, de humor. Seria mais interessante se o resto do jornal largasse mão to negacionismo semiótico e dos velhos ideias liberais. Mas aí estou sendo utópica demais.
Algumas referências para ir além
Maria Clara Carneiro é professora, pesquisadora de quadrinhos, crítica no site Balbúrdia, revisora e coordenadora do grupo de pesquisas de histórias em quadrinhos da Universidade Federal de Santa Maria, RS.
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