Quadrinhos digitais, uma tendência
Aumento de publicações virtuais levanta dúvidas sobre a experiência de leitura em plataformas digitais e reforça o saudosismo de quem curte quadrinhos impressos
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Aumento de publicações virtuais levanta dúvidas sobre a experiência de leitura em plataformas digitais e reforça o saudosismo de quem curte quadrinhos impressos
Você pode me chamar de cringe, e confirmo: sou do tempo em que se comprava gibis da Turma da Mônica aos fins de semana na banca. As revistinhas me ensinaram a ler quadrinhos. Olhos na direção horizontal, da esquerda para a direita, quadradinho a quadradinho. Na tirinha da última página, olhos de cima para baixo. O costume de ler gibis na infância perdurou e virei leitora também de histórias longas. Enchi minha estante de novelas gráficas.
Agora, assim como outras linguagens artísticas (cinema, música, teatro, dança) se adaptaram, se apropriaram e se reinventaram no ambiente virtual, os quadrinhos também estão disponíveis em versões digitais, aplicativos, redes sociais e plataformas de streaming. Com a pandemia, então, essa cena arrebatou novos leitores. Mas, será que muda muita coisa? E para quem não nasceu com um celular na mão, como é ler quadrinhos digitais?
Publicado originalmente em 2000, e cinco anos depois no Brasil, o livro Reinventando os Quadrinhos – Como a imaginação e a tecnologia vem revolucionando essa forma de arte (M.Books), de Scott McCloud, desenhava um novo cenário para as HQs. Defensor dos quadrinhos como uma forma literária e arte autônoma, McCloud já falava em criação e distribuição digital. Mesmo naquela época, quando a internet avançava globalmente, muita gente franziu a testa para a tal visão futurista. Será que o quadrinho impresso e todas as relações afetivas que compõem esse pacote de experiências estariam com os dias contados?
Jornalista e editor da Todavia, que lançou recentemente a HQ O Essencial de Perigosas Sapatas, de Alison Bechdel, em formato impresso e e-book, André Conti lembra-se das apostas de McCloud. Fã de quadrinhos, Conti recorda como esse livro reverberou no meio editorial brasileiro. “Há dez anos, começamos a ter essa conversa. Uma das promessas feitas lá atrás era a de que o quadrinho fora do livro ia ganhar novas dimensões formais, novas explorações de linguagem. Ia ganhar uma liberdade e poderia entrar em uma fase mais experimental, sem as restrições do objeto impresso.”
Além da linguagem, Conti recorda discussões sobre qual seria o suporte para essa nova leitura. “Fiz muita reunião com empresas que iam criar aplicativo no celular para ler quadrinhos. Foi uma época em que todo mundo estava tateando o que estava acontecendo”, diz. Caso de gigantes como a Marvel e a DC, que criaram aplicativos próprios com títulos para comprar e ler, bem como serviço de assinatura para acesso a um acervo de milhares de títulos. Paralelamente, “surgiu um quadrinho que nasce e se aproveita do online das mais diversas formas: a webcomic”, complementa Conti.
Publicado em redes sociais, esse formato de tirinhas – histórias curtas ou sequenciadas – faz uso do feed e do “carrossel de imagens” do Instagram, por exemplo. Historietas que podem, ou não, compor um livro impresso e também sua versão e-book. Essa foi a forma que quadrinistas, em sua maioria independentes, encontraram para divulgar seus trabalhos. “A webcomic é uma maneira de o público permanecer lendo os nossos trabalhos. Tem gente que até ativa as notificações e espera o próximo episódio”, conta a autora Helô D’Angelo.
Além disso, as webcomics passaram a impulsionar muitas publicações impressas, e isso prova que é possível uma soma de forças entre esses dois formatos. Em 2019, Helô conseguiu lançar sua primeira HQ impressa, Dora e a Gata, e, neste ano, Isolamento, a partir de histórias de seu feed no Instagram e de outras inéditas. Ambas obras foram financiadas por campanhas virtuais, impulsionadas pelo engajamento de seus seguidores. “Se você já conquistou um público fiel àquela narrativa com as webcomics no seu perfil, você vai lançar um produto que, com certeza, eles vão se identificar e querer comprar”, observa.
Por um preço acessível, podemos ler quadrinhos de qualquer lugar do mundo sem esperar a chegada de lançamentos às prateleiras. E a pandemia deu uma significativa turbinada no consumo de títulos digitais. Houve aumento de venda de e-books dada a necessidade de restrição social e fechamento das lojas físicas no ano passado. A Bookwire Brasil, que distribui conteúdo digital para mais de 500 editoras brasileiras, divulgou que o número de livros distribuídos nos dois primeiros meses da quarentena (março e abril de 2020) foi o equivalente a 80% do que foi distribuído no ano de 2019 inteiro. E, entre os gêneros literários mais vendidos, a empresa de estudos de mercado alemã GfK apontou para os quadrinhos, que saltaram do 5º para o 2º lugar no ranking brasileiro.
É possível ler quadrinhos digitais por meio de desktop, tablet, Kindle e, o mais popular dispositivo de todos, o celular. Aliás, entre as pessoas que leem livros digitais, 73% optam pelo celular como suporte, segundo novos indicadores incluídos na 5ª edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada entre os meses de outubro de 2019 a janeiro de 2020.
Dá até para alugar HQ em plataformas e aplicativos de streaming. Nossa “Netflix” brasileira de quadrinhos, a Social Comics, foi lançada em 2015 e segue o modelo da Comixology, plataforma de comics digitais da Amazon, ainda indisponível no Brasil. Com assinantes majoritariamente do gênero masculino, na faixa dos 18 aos 34 anos, a plataforma vem crescendo e diversificando seus usuários, além de incrementar títulos lançados diariamente.
“Quando nós criamos a Social Comics, era tudo mato”, brinca Giulliana Oliveira, diretora de operações e uma das sócias. “Vemos o fortalecimento do mercado, um novo hábito de leitura e que o modelo de negócio que nós criamos é algo potencial”, analisa. Na pandemia, Giulliana conta que a plataforma ultrapassou 30 milhões de páginas lidas pelos usuários e que, em breve, a Social Comics deve começar operações no México.
“Também queremos aumentar cada vez mais o nosso catálogo, principalmente com artistas nacionais e obras originais, produzidas pela Eleven Dragons. Iniciamos a produção da série documental A importância do Quadrinho Nacional e, durante os lançamentos, estamos anunciando novos títulos de artistas independentes de acordo com o tema que estamos abordando”, compartilha Giulliana.
Mesmo que haja aumento de consumo de quadrinhos digitais, o investimento e lançamento de HQs em formato impresso não para. “Há um estudo da Amazon do mercado norte-americano que indica que ter uma versão digital da HQ ajuda a vender mais sua versão física. No Brasil, esse mercado digital ainda está engatinhando e, por isso, não se compara ainda ao mercado de impressos”, explica o editor Cassius Medauar, gerente editorial da Conrad.
A Conrad, aliás, foi uma das primeiras editoras a abrir espaço para os quadrinhos nas livrarias do Brasil e, depois de um tempo de “hibernação”, voltou a lançar quadrinhos nacionais e internacionais também em e-books, completos ou em capítulos digitais publicados com periodicidade semanal e mensal. A HQ Cais do Porto, da quadrinista Brendda Maria, é um desses exemplos. Lançada, primeiramente, em versão impressa e de maneira independente, o livro foi editado em formato digital pela Conrad.
“A editora fez todo esse processo para mim de adaptação para o e-book. O digital tem sido ótima saída para quem não está podendo comprar quadrinhos de forma física nas comic shops ou nos espaços tradicionais de venda. Sem contar que são acessíveis pelo preço, o que facilita também para a pessoa que tem um celular e uma conta em lojas digitais para ter acesso a quadrinhos”, observa Brendda. No final, HQs independentes ou publicadas por editoras começam a ganhar tanto uma versão impressa quanto digital, o que amplia o leque de opções para leitores.
HQ “Cais do Porto”, de Brendda Maria
Como fica a experiência da leitura de quadrinhos no digital? Para Cassius Medauar, nem pior nem melhor que a leitura do papel. “Acho que é diferente. No digital, por exemplo, dá para ampliar a HQ e ver detalhes que no impresso não daria. Existe a leitura dedicada na Amazon, em que se pode ler quadro a quadro. E acho que ao ler em um tablet, por exemplo, a parte do suspense é quase a mesma: você não está virando as páginas, mas tem que passá-la do mesmo jeito. Eu acho interessantíssimo nós, leitores, termos mais essa opção”, constata.
Como leitora de quadrinhos, Helô D’Angelo gosta das publicações no Instagram e no Twitter, ainda que esta última rede não seja a ideal, segundo a quadrinista, para as webcomics. Ela também acessa o site Tapas, que permite a publicação de trabalhos independentes bem como a leitura gratuita de webcomics e mangás. Mas a quadrinista ainda prefere consumir títulos impressos. “Acho que a leitura no papel é muito mais interessante e instigante do que na internet. Acho que ler um livro é algo que você pode fazer com mais calma, porque na internet você está sempre com pressa e ansiosa pelo próximo episódio. No final, são experiências diferentes.”
Apesar de não poder “tocar o papel nem virar a página”, a quadrinista Brendda Maria acredita que os quadrinhos digitais se tornaram uma possibilidade diferenciada de interação com obra e autora. “Temos uma conexão diferente com o material do autor e podemos adicionar alguns extras que edições físicas não permitem.” Outro fator positivo, destaca Brendda, é poder alcançar um público ainda maior. “Neste período de pandemia, o digital trouxe pessoas para acompanhar meu trabalho. Recebi muitos feedbacks, como o de um rapaz que estava internado com covid-19 e que, ao ler Cais do Porto, se sentiu muito próximo da rotina que ele tinha antes da pandemia.” Até o fim deste ano, a quadrinista deve publicar Apartamento 501, lançada no formato webcomic em suas redes sociais.
E qual o melhor dispositivo para a leitura de quadrinhos digitais? Editoras e editores se dividem entre tablets, desktops e kindles. Neste último caso, a leitura se limita a edições em em preto e branco por conta da tecnologia do dispositivo. Para André Conti, independentemente do device, o formato digital democratiza o acesso aos quadrinhos. “As pessoas querem ler, querem trocar e compartilhar leituras. Se todo mundo na internet está falando que leu um título, você também quer ler. Dessa forma, as pessoas se adaptam, leem no celular, numa situação que não é ideal, não veem a página inteira, mas isso faz parte. Consumir cultura num país como o Brasil, onde o acesso é difícil, o dinheiro é curto, e hoje a gente tem mais acesso à internet, onde todas essas coisas estão disponíveis, ler no celular é uma necessidade. Ser brasileiro é um pouco adaptar formatos e viver de acordo.”
Enquanto o mercado editorial tateia aprimoramentos de suportes e melhoria da experiência de leitura, desafios que já faziam parte do universo de impressos, como a pirataria, também compõem a cena digital. No entanto, esse é um dos problemas que as editoras já contabilizam, segundo André Conti, da Todavia. Para o gerente editorial da Conrad, o maior desafio para as editoras que investem na aquisição de quadrinhos digitais é não se comparar com o mercado internacional. “É preciso ter paciência. Esse é um projeto de longo prazo, porque as HQs digitais ainda estão começando no Brasil. Exige muito planejamento, trabalho, divulgação e criação de novos formatos e estratégias.”
André Conti endossa a importância do livro como uma tecnologia que, desenvolvida ao longo de séculos, ainda é moderna e resiliente. “Experimente levar um Kindle sem carregador para um sítio? Sem bateria. Você não lê”, destaca. Sim: o livro não vai morrer. E a previsão de que todos os leitores iriam migrar para o digital tampouco se concretizou. “É uma questão de esperar um pouco as coisas se formatarem. Com o tempo, os hábitos das pessoas vão ficar mais claros. Apostar que um menino que está lendo hoje mangá no celular vai fazer questão de ler o livro impresso é complicado.”
Sem achismos e apostas futuristas, podemos acreditar que vai haver cada vez mais quadrinhos digitais por aí, fazendo uso de novas redes e plataformas que irão surgir na internet. E também vamos ver a multiplicação de leitores e de quadrinistas. De pessoas que irão nascer lendo quadrinhos digitais e que poderão criar, como previa Scott McCloud, um quadrinho digital revolucionário. “Que vai capturar a atenção de todo mundo e só vai poder ser lido online. Então, está tudo em aberto. E a graça é um pouco essa”, arremata Conti.
Maria Júlia Lledó é jornalista, redatora e editora da Revista E – Sesc São Paulo, gosta de compartilhar suas impressões (e sensações) sobre HQs.
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