Resenha: Gender Queer
Lemos a graphic novel autobiográfica de Maia Kobabe, artista não binárie de São Francisco, que se tornou o livro mais proibido nas escolas dos Estados Unidos
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Lemos a graphic novel autobiográfica de Maia Kobabe, artista não binárie de São Francisco, que se tornou o livro mais proibido nas escolas dos Estados Unidos
Para mim, é meio impossível ler essa frase e não sentir uma curiosidade enorme de saber o que poderia causar tanto medo em relação a um livro, em pleno 2022. Ainda mais quando se trata de uma história em quadrinhos.
Eis, então, que me deparei com Gender Queer, graphic novel autobiográfica de Maia Kobabe, artista não binárie de São Francisco. Claro, tinha que ser uma história LGBTQIA+.
Lançado em 2019 pela Lion Forge Comics, uma editora especializada em histórias queer, o livro teve uma tiragem pequena, de 5.000 mil cópias. Em 2021, a abordagem franca sobre sexualidade e identidade de gênero começou a gerar manchetes em jornais dos EUA. Várias escolas retiraram o livro de suas bibliotecas. Autoridades republicanas nos estados americanos de Carolina do Norte, Carolina do Sul, Texas e Virgínia apelaram pela proibição do livro nesses locais, em certos casos rotulando a obra como “pornográfica”. Mais uma vez, vemos uma tentativa de abordar identidade de gênero virar alvo de organizações e políticos conservadores.
Não existe ainda uma edição brasileira, traduzida para o português. Então, comprei a versão digital da edição original em inglês e li no meu tablet – essa tem sido uma boa estratégia para ler livros estrangeiros.
Para quem acha que se trata de um livro denso, provocativo, a verdade é que essa é uma HQ delicada, bonita, leve. Na história e no traço. Maia Kobabe tem desenho lindo, que às vezes pode até lembrar um pouco ilustrações de um livro infantil.
Sua história é marcada por uma infância no meio do mato, família hippie, escola Waldorf. Maia aprendeu a ler e a amar ler com Harry Potter, e tinha muitas dúvidas e desconfortos sobre ser uma garota. Até que passou a frequentar um grupo queer na escola, ter exemplos e referências mais diversas, e começou a se sentir um pouco mais livre. Foi uma adolescência vivida no começo dos anos 2000, influenciada pela música, pelos filmes e pela literatura, quando falar sobre transgeneridade não era tão comum como hoje. Muito menos sobre a não binariedade. Isso não significa que pessoas trans não existiam, é claro. Mas eram outros tempos, quando a Internet ainda não era parte essencial das nossas vidas. Só em 2015 Maia vê pela primeira vez alguém usando pronomes neutros (they/them, em inglês).
Me identifiquei demais com as cenas das aulas sobre sexo na escola. O sexo realmente parecia algo muito arriscado. Fora que totalmente héternormativo. Avançamos MUITO, é verdade, mas com todas essas censuras de hoje em dia e as discussões sobre gênero e sexualidade sendo tratadas como perigosas (“precisamos proteger as nossas crianças”), penso como as coisas seguem sendo confusas para crianças e adolescentes.
Por sorte, temos acesso a obras como os sucessos recentes Heartstopper, de Alice Oseman, e Arlindo, de Ilustralu, que falam sobre identidade de gênero e sexualidade de uma forma maravilhosa. Assim como eles, Gender Queer é um livro que provavelmente muitos adolescentes gostariam de ler. Aliás, nós, adultos, deveríamos incentivar leituras assim.
Gender Queer não tem nada de sexo explícito, nudez ou coisas do tipo que costumam ser o terror dos conservadores. É um livro sobre autoconhecimento. Mas, pensando bem, autoconhecimento leva à liberdade, ao autorrespeito e ao pensamento crítico. Como uma pessoa ousa não querer caber em um gênero binário? Ousa não querer se relacionar amorosamente com alguém? Ousa não querer ter filhos? Isso tudo, com certeza, é o maior terror dos conservadores…
Principalmente quando existe, por exemplo, uma página inteira de reflexão de como Maia pode ser uma referência e ajudar outras pessoas que têm as mesmas dúvidas sobre gênero. Esse é um livro que uma pessoa fez para que outras pessoas a conheçam e compreendam coisas sobre sua vida. Coisas que muitas vezes são difíceis de colocar em palavras. A conversa que Maia tem com a mãe, a partir da página 148, é sensacional para entender a dificuldade que pessoas trans têm em compreender e encontrar palavras sobre sua identidade de gênero.
São 239 páginas e cada uma conta uma história. Isso é ótimo, inclusive, para a experiência de leitura digital, página por página. O estilo do desenho me lembra também o trabalho de Sirlanney Nogueira, quadrinista do Ceará, autora de Magra de Ruim. E, assim como as obras de Alison Bechdel, é possível pegar muitas referências de outros livros para ler. A biblioteca diz muito sobre a pessoa que conta a história.
Gabriela Borges é jornalista, mestra em antropologia e curadora de conteúdo. Em 2015, criou a Mina de HQ, plataforma que se tornou referência para quem quer ler histórias em quadrinhos mais diversas, conhecer artistas mulheres e trans (homens, não bináries etc), e também criar estratégias de comunicação a partir das HQs. Mídia independente e feminista, é um dos mais relevantes canais sobre HQs e gênero no Brasil. Autora do livro Encuentre su Clítoris, pela Marca de Fantasia, e editora e co-organizadora da antologia Quadrinhos Queer, pela Skript.
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