Resenha: “Heimat”, de Nora Krug
Em uma investigação para saber mais sobre o envolvimento de seus parentes na Segunda Guerra, Nora Krug nos leva a refletir sobre culpa
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Em uma investigação para saber mais sobre o envolvimento de seus parentes na Segunda Guerra, Nora Krug nos leva a refletir sobre culpa
Em uma investigação para saber mais sobre o envolvimento de seus parentes na Segunda Guerra, Nora Krug nos leva a refletir sobre culpa
Finalmente li Heimat: Ponderações de uma alemã sobre sua terra e história (Cia das Letras, 2019)e entendi o motivo de a Gabi Borges indicar essa HQ com tanto entusiasmo.
Como eu já havia comentado no texto sobre Terra-Pátria, há certos aspectos das narrativas sobre guerras contatas por mulheres que fogem um pouco da norma do que costumávamos aprender na escola. Como bem lembra a Nobel de literatura Svetlana Aleksiévirch, autora de A guerra não tem rosto de mulher, “A história das guerras costuma ser contada sob o ponto de vista masculino: soldados e generais, algozes e libertadores. Trata-se, porém, de um equívoco e de uma injustiça.”
Embora Svetlana se refira às mulheres que estiveram diretamente envolvidas nas guerras, o fato é que ao longo de nossas vidas somos muito mais apresentados às narrativas de guerra a partir de uma ideia heróica, mesmo quando se tratam de histórias sobre sobreviventes, como em A lista de Schindler (1993) ou o Pianista (2002), sempre narradas a partir de um olhar masculino que tem grande foco na superação e outros sentimentos nobres.
Histórias como Maus, ganhadora do prêmio Pulitzer, que trazem registros de sobreviventes do Holocausto a partir de memórias e das relações interpessoais que eles estabelecem após das guerras, possuem um tipo de narrativa que nos aproxima dos personagens a partir das afinidades que estabelecemos com eles quando transportamos essas relações para a nossa própria realidade e nos perguntamos o que teria ocorrido com a nossa família caso fosse atravessada por uma guerra.
Em A espera, de Keum Suk Gendry-Kim (nossa, ainda não fiz a resenha dela), a autora parte da investigação sobre a própria família para narrar a forma como sua avó e sua mãe foram afetadas pelas separações e perdas causadas pela guerra na Coréia do Norte e que as forçou migrar para a Coréia do Sul, ou seja, o foco narrativo está nas consequências familiares dessa guerra.
O que Heimat traz de diferente em relação às obras citadas anteriormente, é que se facilmente nos comovemos com as histórias das vítimas das guerras, como somos afetados pela história de alguém cuja família é formada por aqueles que estiveram envolvidos como possíveis algozes nessas essas guerras? Nora Krug propõe então uma investigação sobre a culpa.
Em nenhum momento a autora, que é alemã, nos sugere qualquer tipo de anistia ou perdão para os alemães envolvidos na Segunda Guerra. Muito pelo contrário, ciente, enojada e culpada por tudo que ocorreu em seu país, o que ela faz é compartilhar em uma espécie de diário ilustrado, que mistura técnicas narrativas variadas, sua extensa investigação na tentativa de descobrir se seu tio Franz-Karl (irmão de seu pai) e seu avõ Willy (pai de sua mãe) se envolveram ativamente na guerra e causaram a morte de judeus.
Nora, que havia se mudado para os Estados Unidos e casado com um judeu, busca informações nos mais variados arquivos que encontra, em entrevistas com familiares e outras pessoas que possuam qualquer informação a respeito do envolvimento de seus parentes em alguns episódios específicos de violência contra os judeus na Alemanha. E, conforme ela vai descobrindo novas informações sobre seus parentes, nós também vamos aprendendo que existe uma fissura social que faz com que as famílias se recusem a visitar esse assunto na Alemanha, fazendo com que as gerações pós-guerra cresçam como se suas famílias tivessem passado a existir a partir de 1946, quando na verdade, famílias como as de Nora existiam há mais de 300 anos, ou seja, impossível que durante as guerras e outros conflitos algum de seus parentes não tenham estado “do lado errado da História”.
É sobre essa culpa e sobre esse medo que se baseia toda a HQ. A tensão que vai escalando na medida que Nora vai descobrindo novos fatos sobre seu avô e seu tio me deixou aflita, pois haja terapia para digerir a descoberta de que seus parentes foram nazistas quando você mesma repudia qualquer coisa que remeta a esse momento. Assim, a cada arquivo encontrado, a cada foto com insígnia nazista apagada, a cada nova evidência, o leitor sente a apreensão da autora ao chegar cada vez mais perto da verdade.
O ponto de partida da HQ me remeteu à uma outra leitura recente: Jeremias – Alma (2020), de Rafael Calça e Jefferson Costa. Quando a autora se pergunta: “Como saber quem você é, sem saber de onde veio?”, a premissa parecida com a graphic MSP, nos lembra que o privilégio de se saber de onde veio não é concedido àqueles que foram vítimas das mazelas causadas pelas guerras, ou seja, se Nora Krug pode ter acesso a registros de mais de 100 anos sobre sua família, o mesmo não foi garantido aos milhares de judeus que, em caso de terem sobrevivido, perderam todos os registros de quem eram. Assim como Jeremias se questiona ao observar a enorme parede cheia de quadros dos ancestrais de Franjinha: onde estariam os registros sobre seus antepassados?
Esse tipo de paralelo é importante porque, apesar de compreender e ser simpática à busca de Nora, sendo brasileira, não é possível descolar alguns privilégios que ela tem do fato de ser alemã e, como grande parte dos europeus, ter se beneficiado bastante de toda violência que seus compatriotas e antepassados infligiram a tantos outros povos. Muitos de nós jamais poderemos embarcar em uma busca parecida não apenas pela falta de recursos financeiros (Nora viaja bastante atrás das informações), mas pela completa ausência de dados sobre nossas famílias. O que isso significa? Que somos seres incompletos? Que nunca saberemos realmente quem somos? Graças a quem?
Jeremias: Alma
Apesar dessas reflexões não serem exatamente prazerosas, a leitura de Heimat é uma experiência incrível pela riqueza de detalhes que a autora traz, mesclando fotos antigas, fotos de documentos e arquivos com curiosidades interessantíssimas sobre a cultura de seu país. Em busca de Heimat, ou seja, o seu lugar ou momento de familiaridade no mundo (na HQ ela explica melhor esse sentimento), Nora nos presenteia com uma série de sentimentos que vão desde a dor e a tristeza que envolvem o tema em si, à alegria de reencontros e risos pelas curiosidades inusitadas que ela fornece, tudo isso em meio a dados históricos que não são normalmente apresentados nos livros didáticos, como a história de perseguição aos judeus séculos antes da Segunda Guerra e os pretensos motivos dessa perseguição registrados em documentos oficiais guardados em arquivos das prefeituras das cidades que ainda guardam estruturas medievais.
Minha sugestão para a leitura de Heimat é que ela seja feita com o auxílio de uma ficha de leitura e que antes de ler você anote os nomes das pessoas e sua relação com a autora (a capa e a contracapa trazem as árvores genealógicas de Nora). Ela fornece muitas informações sobre termos alemães que são muito interessantes, então, também vale muito a pena anotar.
Boa leitura e espero que você descubra seu Heimat também.
Daniela Marino é pesquisadora de quadrinhos e questões de gênero, graduada em letras, mestre em comunicação e doutoranda em ciência da informação.
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Dani Marino é especialista em histórias em quadrinhos e questões de gênero. Mestre em Comunicação e doutoranda em Ciência da Informação pela ECA/USP, também atua como professora de Literatura Inglesa. Ganhadora de 2 troféus HQMIX com o livro Mulheres e Quadrinhos, que organizou com Laluña Machado, já colaborou com diversos sites e canais especializados em cultura pop.