Resenha: Terra-Pátria
Dani Marino, pesquisadora de quadrinhos e questões de gênero, escreve sobre a HQ “Terra-Pátria”, de Nina Bunjevac
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Dani Marino, pesquisadora de quadrinhos e questões de gênero, escreve sobre a HQ “Terra-Pátria”, de Nina Bunjevac
Para quem gosta de HQs biográficas como Maus, Palestina, Persépolis e tantas outras narrativas premiadas, Terra-Pátria (2022), de Nina Bunjevac é certamente um prato cheio.
Em sua segunda história em quadrinhos lançada no Brasil, pela Zarabatana Books, Bunjevac traz uma narrativa que mescla memórias, investigação familiar, história e conflitos internacionais, bem diferente de Bezimena (2019), em que imagens oníricas atualizam o mito de Ártemis e Sipriotes por meio de metáforas visuais belíssimas. Porém, apesar da diferença de temas tratados em ambas as HQs, o repertório de artes visuais e de sua formação em design gráfico são facilmente notados por meio das técnicas e recursos que a artista aplica em seus desenhos, como as hachuras que conferem textura e profundidade às imagens em preto e branco de Terra-Pátria.
Nessa HQ, Bunjevac investiga a história da sua família, cujas raízes estão fincadas em países tão diferentes como Canadá e a Iugoslávia, para tentar encontrar sentido para a relação que ela tem com sua mãe e para as relações dos seus pais, dos seus avós, que tiveram suas vidas atravessadas por conflitos políticos na região conhecida dos Balcãs, no Sudoeste da Europa.
Para nos guiar entre as idas e vindas de seus familiares entre Canadá e Europa, Bunjevac opta por narrar episódios da vida de sua mãe, seu pai, seus avós em um fio histórico que possibilita um aumento de tensão conforme ela avança em direção aos últimos dias de vida de seu pai, Peter. O temperamento instável e muitas vezes abusivo de Peter é o ponto de partida para a primeira incursão do leitor na Iugoslávia: temendo pelo bem-estar de suas duas filhas e de seu filho, a mãe de Bunjevac decide voltar para a casa dos pais, porém, como seu marido não autoriza a viagem do menino, ela acaba partindo apenas com as meninas.
Já na Iugoslávia, entendemos que a relação entre a mãe e a avó de Bunjevac não é das mais tranquilas, o que acaba sendo justificado pelos traumas que a avó sofreu durante as guerras em sua região. Nesse sentido, ela lembra outros sobreviventes de guerra retratados em diversas produções, ao frequentemente trazerem as mazelas dos conflitos para as conversas cotidianas em uma constante tentativa de fazer com que seus descendentes saibam bem o quanto eles sacrificaram, o sofreram para que seus descendentes pudessem desfrutar de períodos de paz.
Ao retroceder um pouco mais, Bunjevac nos apresenta aos seus avós por parte de pai, que também foram atravessados por guerras que foram determinantes para a fragmentação de culturas que até um determinado período da história, compartilhavam não só uma mesma língua, mas os mesmos costumes, mesmos rituais e crenças. São perspectivas que normalmente não temos acesso por meio dos livros didáticos de história, o que nos causa uma impressão de que sérvios, croatas, bósnios e iugoslavos são todos muito distantes de nós, mas a verdade é que, quando se trata de certos traumas, suas consequências para as relações familiares e sociais são sempre muito profundas.
Nesse sentido, o que a autora nos proporciona é uma sensação de intimidade muito grande ao nos colocar como observadores de seus álbuns de família e, ao mesmo tempo que ela parece fazer isso despretensiosamente, ela consegue conferir uma densidade à sua narrativa de forma que o último ato da HQ revele informações sobre o envolvimento de seu pai com células terroristas no Canadá que nos deixam aflitos. A sensação que tive ao observar as ações de seu pai foi de que as coisas caminhavam para um fim dramático, mas que poderia ter sido evitado, uma vontade de entrar na HQ e dizer a Peter (pai da autora): não vá por aí, não faça desse jeito.
Nina, por sua vez não apresenta esses personagens em tom de julgamento ou de condenação às atitudes de seus familiares. Ela parece apenas recuperar uma memória com o objetivo de contar sobre si, de proporcionar um registro que, ainda que permeado de subjetividade, nos possibilita compreender, mesmo que de forma superficial, como as guerras moldaram as relações de todas as pessoas que tiveram suas vidas perpassadas por elas.
A importância desse tipo de registro reside na possibilidade de que ele atue como uma fonte de informação, que, ao ser somada a outras fontes, favorece uma percepção mais ampla sobre os conflitos em regiões que nem sempre chegam até nós por meio de outras mídias. Ao ampliarmos nosso conhecimento sobre fatos diversos, ampliamos também nossos horizontes e somos capazes de entender que, ainda que nem sempre justificáveis, algumas atitudes de nossos pais e avós são reflexo de traumas que ainda não foram superados. Ou seja, ao nos apropriarmos do nosso passado, somos capazes de compreender o presente e, consequentemente, nos preparamos melhor para o futuro.
Terra-Pátria, de Nina Bunjevac
Zarabatana Books
160 páginas
2022
Daniela Marino é pesquisadora de quadrinhos e questões de gênero, graduada em letras, mestre em comunicação e doutoranda em ciência da informação.
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Dani Marino é especialista em histórias em quadrinhos e questões de gênero. Mestre em Comunicação e doutoranda em Ciência da Informação pela ECA/USP, também atua como professora de Literatura Inglesa. Ganhadora de 2 troféus HQMIX com o livro Mulheres e Quadrinhos, que organizou com Laluña Machado, já colaborou com diversos sites e canais especializados em cultura pop.