A crise humanitária que vem se agravando no mundo todo não é um fenômeno recente. Não à toa, a ONU possui um departamento dedicado a lidar com políticas públicas de diversos países (a ACNUR), a arrecadar doações e buscar alocar refugiados de vários locais de forma digna, o que nem sempre é possível.

Embora saibamos que muitas das mazelas que acometem países em situação de guerras ou calamidades são em grande parte consequências diretas de séculos de exploração colonialista por países europeus, o fato é que esses mesmos países não possuem estrutura geográfica, social ou política para acolher todos os refugiados de forma minimamente humana, ou seja, parte da conscientização sobre a situação dessas pessoas em situação de extrema vulnerabilidade consiste em nos alertar que uma crise humanitária nas proporções que se encontram hoje é responsabilidade global.

Com a pandemia, a situação econômica de muitos países piorou, acarretando um número cada vez maior de pessoas chegando pelo mar nas costas de países como Grécia, Portugal, França, Espanha e Itália.

Em 2017, a maior parte de refugiados que saiam de países em conflito como Iêmem, Síria e Líbia chegava pela Grécia, que possuía alguns campos onde os imigrantes eram obrigados a esperar uma autorização para que pudessem de fato entrar na Europa e essa espera levava em média um ano. Por isso, a Grécia ficou conhecida a partir de então como a sala de espera da Europa.

As pessoas que chegavam no maior campo, chamado de Moria, tinham sua vida suspensa durante o tempo que precisavam esperar por essa autorização e essa espera se dava em condições precárias: em 2017 o acampamento já abrigava cerca de 6.500 pessoas, 3 vezes a mais do que o número que deveria comportar de acordo com o projeto inicial. Em 2019, a superlotação superava 13.000 pessoas, o que resultava em uma média de 167 pessoas para cada banheiro e 247 para cada chuveiro (Fonte: A sala de Espera da Europa, 2022).

As condições precárias em que viviam esses refugiados não podiam ser observadas por qualquer pessoa ou registrada por tvs, por exemplo, mas em 2017, a quadrinista holandesa Aimèe de Jongh, foi convidada a conhecer o campo de Kara Tepe, na ilha de Lesbos, também na Grécia.

A iniciativa partiu de uma ONG que atua em Kara Tepe, um acampamento menor e mais bem estruturado que o de Moria. Além de Aimèe, outras duas colegas suas foram convidadas a registrar o que pudessem durante 7 dias. Apesar de não poderem usar câmeras, elas poderiam usar lápis e papel e precisariam seguir algumas regras para garantir a segurança e a privacidade dos residentes. Por isso, para registrar o interior dos contêineres que funcionavam como abrigos, Aimèe precisaria ser convidada por um dos moradores.

Essa experiência resultou a HQ A sala de espera da Europa, publicada em 2022 pela Conrad no Brasil dentro da iniciativa HQ para todos, cujo principal objetivo é possibilitar maior acesso aos quadrinhos por meio de publicações mais em conta. Essa da Aimèe, por exemplo, pode ser comprada por R$14,90 ou pode ser lida gratuitamente em sua versão digital para o Kindle (aqui). E não se deixe enganar pelo tamanho compacto dessa publicação: o que ela tem de curta, tem de intensa, afinal, estamos falando de uma experiência que nos coloca em contato com um contexto trágico e que não deve ser esquecido.

Tendo em mente a densidade do tema, perguntei à Aimée sobre como ela lidou com tudo que viveu nos 7 dias em Lesbos, pois em sua produção usal é notável a sensibilidade da autora e como questões humanas costumam impactá-la. Sobre isso ela me disse:

“Essa HQ é muito diferente dos meus outros trabalhos por ser uma não-fição, ou seja, aquelas pessoas retratadas realmente existem, então eu tinha uma responsabilidade em contar suas histórias e isso me afetou bastante. Elas me contavam suas histórias de vida, sobre como lutaram na guerra da Síria e viajaram pelo oceano em pequenos barcos. Mesmo quando penso nisso hoje ainda sinto vontade de chorar, porque tudo foi mito difícil para elas. Mas sinto que eu realmente tinha que tornar suas histórias públicas pois as pessoas precisava saber. Espero que muitas pessoas leiam para que conheçam essas histórias.”

Nesse sentido, A sala de espera da Europa é um registro que se soma a tantos outros para nos fornecer um panorama sobre uma situação grave. Uma reportagem em quadrinhos cuja relevância se assemelha aos trabalhos de pintores, escritores, jornalistas e cineastas que ao longo da história da humanidade se dedicaram a gerar fontes e referências para a posteridade a fim de nos lembrar de momentos que não deveriam se repetir.

Esse tipo de narrativa me remeteu ao filme Mil vezes boa noite (2013), com Juliette Binoche como uma fotógrafa de zonas de conflito. São esses relatos marcantes que nos aproximam de uma realidade trágica e nos abrem os olhos para injustiças que merecem mais atenção do que normalmente recebem dos conglomerados midiáticos internacionais.

Assim, não deixe de ler essa HQ e, se possível, incentive outras pessoas a lerem também, converse com quem puder sobre o assunto, porque a crise humanitária está muito longe de acabar.

Para saber mais: https://news.un.org/pt/tags/crise-humanitaria

Bonus: A série Falcão Negro e o Soldado Invernal (Marvel/Disney) é uma produção ficcional de super-heróis que usa desaparecimento de metade da população mundial, causado pelo Thanos, como metáfora para abordar a situação dos refugiados na Europa. É uma boa forma de apresentar o assunto para quem está começando a se interessar pelo tema.