Também envelhecemos nas HQs
Duas HQs lançadas em 2022 trazem reflexões sobre envelhecimento, morte e a forma como lidamos com suas implicações.
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Duas HQs lançadas em 2022 trazem reflexões sobre envelhecimento, morte e a forma como lidamos com suas implicações.
Leia a Obsolecência Programada de nossos sentimentos e Vida nas sombras, duas HQs lançadas em 2022 trazem reflexões sobre envelhecimento, morte e a forma como lidamos com suas implicações.
Por muito, muito tempo, nós, leitoras de quadrinhos, pesquisadoras, jornalistas, artistas, temos nos queixado sobre a forma irrealista que sempre fomos retratadas por homens cis nos quadrinhos. Sempre hiperssexualizadas, sem personalidade, mortas, estupradas, violentadas ou simplesmente apagadas das narrativas, ganhamos até um termo próprio para isso: mulheres na geladeira (women in refrigerators). O termo cunhado pela roteirista Gail Simone no início dos anos 1990 é o nome de um site criado por um grupo de leitoras para denunciar o problema depois que a namorada de um Lanterna verde foi morta e armazenada em uma geladeira (vol. 3 #54 – 1994). Ainda assim, mesmo depois de 3 décadas, as coisas mudaram muito pouco, do contrário, sites como a Mina de HQ não precisariam mais existir.
Menção às mulheres na geladeira em She-Hulk
De qualquer forma, nos últimos anos várias editoras têm se dedicado a trazer quadrinhos mais variados para o Brasil, possibilitando que tenhamos contato com narrativas mais diversas. Então, se por um lado nós não temos o direito de envelhecer nas mídias em geral (vide ataques recentes à Madonna e a quantidade de clínicas de estética que pipocam nas cidades em cada esquina), por outro, temos alguns quadrinhos trazendo reflexões sobre envelhecimento e morte a partir de perspectivas menos romantizadas sobre os nossos corpos. Dois exemplos que trago aqui são A Obsolecência programada de nossos sentimentos, do belga Zidrou com ilustrações da holandesa Aimée de Jongh (Pipoca e Nanquim, 2022) e Vida nas sombras, de Hiromi Goto, Nipo canadense queer, e Ann Xu, japonesa (Conrad, 2022).
Resolvi trazer uma comparação das duas porque foram hqs que li recentemente e que me foram altamente recomendadas por diversas pessoas.
Em A Obsolecência programada de nossos sentimentos, como o próprio nome indica, a questão do tempo de validade das coisas em um contexto em que aparelhos eletrônicos expiram rapidamente é tensionada a partir da perspectiva de 2 pessoas idosas: Ulisses, viúvo de 59 anos que foi compulsoriamente aposentado da empresa de mudanças que trabalhava e Mediterrânea (sim, esse é o nome dela), uma ex-modelo de 62 anos que herdou um empório de queijos de seu pai e se dedica a cuidar do empreendimento.
Os caminhos dos dois se cruzam logo após Mediterrânea ter perdido a mãe em decorrência de um câncer contra o qual ela lutou por 9 meses. 9 meses que a morte demorou para levá-la, o tempo de uma gestação. A partir daí, acompanhamos os flertes e a evolução do relacionamento de Ulisses e Mediterrânea com direito a imagens de sua intimidade, seja entre trocas de carinho ou mesmo durante o sexo e, definitivamente, esse é o maior trunfo do quadrinho e um dos motivos pelo qual tem sido tão elogiado. O traço delicado e a paleta em tons acolhedores apresenta esses momentos de forma tão natural que nem nos lembramos que esse tipo de representação é extremamente rara. Por mais que alguns veículos, fotógrafos, cinegrafistas estejam produzindo trabalhos sobre a vida sexual e afetiva de pessoas idosas, historicamente, envelhecer com qualidade de vida é um processo relativamente atual para a humanidade. Minha avó paterna, quando tinha a minha idade, era uma senhora curvada e de cabelos brancos que foi levada pelo câncer quando eu tinha apenas 4 anos.
Ou seja, não é apenas um tabu pensar que pessoas depois dos 50 tenham uma vida ativa, estudem, produzam, amem e façam sexo, é também uma questão de falta de referência nas narrativas mesmo. Então, a questão central dessa HQ é justamente sobre até que ponto nós aceitamos que os afetos não precisam ter data de validade e sobre quais as implicações de nos entregarmos a esses afetos.
Já Vida nas sombras, traz uma perspectiva mais bem-humorada sobre a relação de uma senhora com a sombra da morte. Kumiko tem 76 anos e decide que já é hora de deixar o asilo em que estava “hospedada” desde a morte do marido, em decorrência de um acidente de carro do qual ela sobreviveu. Mulher teimosa e muito obstinada, foge do asilo em busca de um apartamento para morar sozinha, pois sentia que a morte estava à espreita para levá-la.
Então, ao longo da HQ, acompanhamos o dia a dia e as dificuldades enfrentadas por Kumiko ao realizar tarefas que antes eram simples. Ao mesmo tempo, conhecemos a sombra que segue a protagonista e que de fato é a sombra da morte, por isso, Kumiko precisa dar um jeito de despistar essa companhia. Para quem gosta de mangás e dos desenhos dos estúdios Ghibli, essa HQ é um prato cheio: por vezes a sombra parece um gatinho, outras vezes lembra uma raposa e há outras pequenas entidades que lembram aquelas poeirinhas com olhinhos (Makuro Kurosuke) do Meu Vizinho Totoro. Ou seja, apesar de termos que lidar com assuntos como a finitude da vida e a decadência de nossos corpos (Kumiko, por exemplo, tem escapes de urina), essa história (em preto e branco) aborda esses assuntos de maneira muito leve.
Agora,trarei algumas comparações porque enquanto me senti muito bem lendo Vida nas sombras, eu só sentia um grande incômodo ao ler a Obsolecência, por isso, a partir daqui só leia se não tiver problemas com spoilers (apesar de que eles não estragam a experiência de leitura já que não são grandes plot twistes): Eu sei que meus incômodos estão diretamente relacionados ao fato de eu ser uma mulher feminista e ter sempre grande desconfiança quando começo a ler personagens femininas escritas por homens cis, logo, não acredito que essa sensação seja algo compartilhado ou compartilhável (se for o seu caso, me conta!). Não é possível dissociar qualquer produção do contexto em que ela foi produzida e nem do repertório de seus leitores, assim, é importante salientar que além de feminista, sou pesquisadora de quadrinhos e questões de gênero, atualmente produzindo uma tese de doutorado sobre o tema e, estou eu mesma lidando com a questão do envelhecimento de forma nada agradável ou leve.
Zidrou é belga e os personagens da HQ são franceses e, até onde conheço dos franceses, Ulisses e Mediterrânea são muito verossímeis. Franceses tendem a lidar com sexo e sexualidade de forma diferente da dos brasileiros, então, meu primeiro incômodo foi que enquanto Ulisses é um homem bem méh, sem atrativos, não é culto, não é muito inteligente, não é nada bonito, é apenas um homem velho comum, meio chucro, a Mediterrânea é uma mulher bonita, viajada, culta e muito elegante. Não só isso, um dos motes para que a conversa dos dois ficasse mais apimentada é o fato de ela ter sido capa de uma revista erótica e eles lidam com essa fetichização (ele fica animado vendo as fotos dela e claramente com o ego inflado por estar saindo com uma modelo de revista de mulher pelada) como se fosse algo super divertido. Veja, eu até poderia dizer que essa relação não é verossímil, mas quase todas as mulheres incríveis e hétero que conheço, estão ou estiveram em relacionamentos com Ulisses. E isso me incomoda por ser um retrato de uma situação que acho muito problemática e que não tenho meios de mudar, ou seja, sim, estou projetando minhas frustrações nesse quadrinho (oi, Freud!).
Mas isso não é tudo, me incomoda que o filho de Ulisses seja o ginecologista dela, que haja falas como que a sexualizam e objetificam como se fosse uma piadinha boba, aquela sensação de que a mulher tá lá com 62 anos, é uma fucking empresária, ex-modelo, e nem assim é enxergada pra além dos seus atributos físicos. Ao mesmo tempo, sinta como é complexo, é meio desesperador passar a vida buscando esse tipo de validação e simplesmente ter que aceitar que depois de uma certa idade você não pode mais ser enxergada como uma mulher desejável… Dilemas. Porém, a cereja do bolo para mim, é o final da história que eu não sei se é de fato aberto para interpretação, se se trata de uma metáfora para a morte como alguns colegas me apontaram: aos 62 anos de idade essa mulher me aparece grávida e os dois, sei lá porque, resolvem ter o bebê. Sim, eles se mudam para uma cabana no interior da França, contrariando o filho de Ulisses e passam o resto da história grávidos. Se for uma metáfora para a morte, se aquela é uma visão romântica que Ulisses tem para o seu futuro e Mediterrânea na verdade também tem um câncer e morre, que merda, né? Teríamos uma mulher ideal desenvolvida exclusivamente para um cara médio que morre no final para justificar a narrativa dele, sei lá, odiei essa possibilidade. Mas pensar que agora que ela está curtindo a vida ela seria punida com uma gravidez (sim, aos 62 anos não é absolutamente nada interessante ter a perspectiva de correr atrás de uma criança de 7 quando você estiver com 70) porque esse era um sonho dela, argh, piegas demais. Então, esse final estragou o que pra mim já não era grande coisa, salvo a arte da Aimée que rende imagens lindíssimas. Ufa…preciso que mais pessoas leiam e me digam quais foram suas impressões, sério, leia e me diga que eu estou apenas viajando demais. Achei realmente interessante as impressões diferentes que as pessoas tiveram.
Bom, ler uma HQ produzida por duas mulheres me deixou bem mais confortável. Li Vida nas sombras em uma tarde chuvosa e fiquei especialmente feliz com a delicadeza que as autoras trataram as relações de Kumiko com as filhas, com os vizinhos. Mesmo diante de uma história com elementos sobrenaturais, tudo soava muito verossímil. Mas, um dos maiores trunfos dessa HQ foi ter tratado a questão da bissexualidade de Kumiko de forma muito natural e sensível, principalmente se pensarmos no quanto o Japão é um país com valores extremamente tradicionais e machistas. Eu não consigo imaginar o que é não se encaixar nos padrões como Kumiko não se encaixava em uma sociedade como a japonesa. Ao trazer a ex-namorada para a história, vemos que esse elemento não é dramático, é apenas mais uma informação importante para entendermos quem é a protagonista.
Assim, apesar desses percursos e de as HQs trazerem questões que não são muito fáceis de lidar quando você mesma tem a sensação de estar envelhecendo rápido demais, as duas me abraçaram em momentos diferentes por terem feito com que me sentisse enxergada pelo traço da Aimée e pelas mãos da Ann Xu e da Hiromi Goto. Espero ler mais coisas delas.
Daniela Marino é pesquisadora de quadrinhos e questões de gênero, graduada em letras, mestre em comunicação e doutoranda em ciência da informação.
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Dani Marino é especialista em histórias em quadrinhos e questões de gênero. Mestre em Comunicação e doutoranda em Ciência da Informação pela ECA/USP, também atua como professora de Literatura Inglesa. Ganhadora de 2 troféus HQMIX com o livro Mulheres e Quadrinhos, que organizou com Laluña Machado, já colaborou com diversos sites e canais especializados em cultura pop.