Por que nos diminuímos tanto?
Como alguns tropos narrativos naturalizam uma prática nociva para as mulheres que é a de se diminuir para não ferir o ego masculino
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Como alguns tropos narrativos naturalizam uma prática nociva para as mulheres que é a de se diminuir para não ferir o ego masculino
Como alguns tropos narrativos naturalizam uma prática nociva para as mulheres que é a de se diminuir para não ferir o ego masculino
Uma das principais motivações para que eu produza meus conteúdos é analisar as obras que aprecio a partir de uma perspectiva de gênero, ou seja, Isso significa que, uma vez que eu aprendo e noto que certos recursos narrativos refletem intenções tóxicas que a sociedade já nos impõe, fica cada vez mais fácil identificá-los nos filmes, séries, quadrinhos. É como se eu enxergasse algo que sempre esteve ali, mas não tínha filtros ou repertório para enxergar antes.
Alguns desses recursos, nós chamamos de tropos e são explorados à exaustão, de forma bem clichê, ajudando a reforçar estereótipos que hoje sabemos que são bem nocivos. Ainda assim, apesar de alguns avanços, alguns desses tropos continuam sendo reproduzidos mesmo quando há mulheres envolvidas nas produções das obras, como ocorreu na HQ – A Vida da Capitã Marvel (02/2019), com roteiro da Margerithe Sthol.
Quando você consome muita teoria sobre questões de gênero e cultura pop, é inevitável que passe a interpretar o que vê a partir das perspectivas com as quais se identifica, de forma que alguns discursos ou acontecimentos se destacam mais que outros. Certamente, o que vou mencionar aqui passou batido por 100% dos homens que leram a HQ A vida da Capitã Marvel e, provavelmente para muitas leitoras também:
Carol Danvers precisa resolver umas questões pessoais com a mãe e o irmão, por isso retorna à casa onde a família costumava passar as férias de verão. Ao chegar na cidade, ela encontra seu irmão mais velho jogando basquete em uma quadra e ele a desafia para acertar a bola em um cesto de lixo bem distante.
Veja, ela é a Capitã Marvel já, da equipe dos Vingadores e uma das heroínas mais poderosas da Marvel, no entanto, quando desafiada pelo seu irmão, ela erra a cesta para que ele não se sinta humilhado. Ela ainda ressalta mentalmente, que joga esse mesmo jogo há 20 anos e que nos últimos 15 ela o deixou ganhar. Me pergunto: por quê? É meio óbvio que sendo quem é, tendo o poder que tem, acertar uma mísera cesta não seria um problema, então, por que ela precisa se diminuir, fingir que não tem todo esse poder? Apenas para que o irmão não se sinta humilhado?
Na mesma HQ, a mãe de Carol é uma mulher também extremamente poderosa que abre mão de ser quem é porque se apaixonou pelo pai de nossa heroína, reforçando mais uma vez um recurso extremamente clichê de que mulheres fortes não podem exercer todo seu potencial se quiserem manter um parceiro (no caso da HQ ele é um pescador humilde) e reiterando o ideal romântico de que a maior realização na vida de uma mulher, seja ela alienígena, Atlantis ou humana, é conseguir arranjar um marido.
Esse mesmo recurso é usado no filme do Aquaman, quando Atlanna, uma rainha poderosíssima abre mão de tudo para fugir de um casamento arranjado e se torna uma mulher completamente ordinária e feliz ao lado de seu homem. E mesmo antes disso, a pesquisadora Natália Sierpisnki, em sua pesquisa de iniciação científica no curso de Educomunicação da USP, alertou para esses estereótipos da mulher que nunca consegue conciliar o grande poder que recebe com outros aspectos da sua vida, como a Jean Grey na Saga da Fênix Negra, a Feiticeira Escarlate nos quadrinhos, na série e no filme do Dr. Estranho e como a Danearys em Game of Thrones. Aparentemente, somos “instáveis demais” para lidar com o poder, no entanto, mesmo quando somos possuídoras dele, precisamos fingir que somos menores para que nossa grandiosidade não afete a masculinidade dos homens.
Atlanna em Aquaman
No entanto, os estudos de Betty Friedan apontados no livro A Mística Feminina, deixaram claro que as mulheres que tiveram que abrir mão de suas potencialidades e sonhos para se tornarem esposas nos anos 50, devido ao retrocesso norte-americano, se tornaram, em sua grande maioria, doentes e frustradas. Então, por que ainda é tão recorrente a ideia de que a maior realização de uma mulher, que entre tantas coisas, pode ser uma cientista, uma guerreira, uma rainha, preferiria abrir mão de tudo por um homem? Por que esses homens não podem aceitar essas mulheres como elas são? Por que as mulheres precisam constantemente se diminuir para que o ego masculino não seja afetado?
Já no filme da Capitã Marvel, Carol Danvers meio que se recusa a continuar tentando caber nesse papel de uma mulher submissa às expectativas de um homem (incrível que as sociedades alienígenas sejam avançadas o suficiente para dominar tecnologias inovadoras, mas não o suficiente para abolir o machismo e o patriarcado, não?) e dá um basta na tentativa de Yon‑Rogg de lhe dizer qual é o seu lugar.
Ou seja, me chama a atenção o fato de que esse recurso, embora seja um clichê, retrata o que muitas de nós somos obrigadas a fazer o tempo todo: fingir que somos estúpidas, que não estudamos, que não entendemos de um assunto, apenas para que o homem ao nosso lado não se sinta diminuído, ou como eles dizem, intimidado. E por isso, por não sorrir o tempo todo, por não se subemeter, a atriz Brie Larson recebeu ínumeras críticas e pedidos de cancelamentos de homens que a julgaram antipática demais para o papel.
Quantas mulheres incríveis você não conhece que, ao serem promovidas em seus empregos, se mostram apreensivas de como irão lidar com a autoestima de seus parceiros? Quantas vezes você não viu uma mulher ser interrompida e corrigida sobre um assunto que ela domina, sem que ela se posicionasse, apenas para não chatear aquele amigo?
Até quando nós iremos fingir sermos menos do que somos para não parecermos arrogantes e não “intimidarmos” homens cuja masculidade é frágil demais para lidar com nosso sucesso? Você já parou para pensar nisso?
Então siga o exemplo da Capitã no filme e dê um basta! Não deixe que alguém faça com que você se sinta menos do que você é: MARAVILHOSA!
ARte de Helô D’Ângelo
Daniela Marino é pesquisadora de quadrinhos e questões de gênero, graduada em letras, mestre em comunicação e doutoranda em ciência da informação.
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Dani Marino é especialista em histórias em quadrinhos e questões de gênero. Mestre em Comunicação e doutoranda em Ciência da Informação pela ECA/USP, também atua como professora de Literatura Inglesa. Ganhadora de 2 troféus HQMIX com o livro Mulheres e Quadrinhos, que organizou com Laluña Machado, já colaborou com diversos sites e canais especializados em cultura pop.