Sunny Sunny Ann e a liberdade
Sunny Sunny Ann! suscita ótimos debates sobre as noções de liberdade, autonomia e empoderamento feminino.
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Sunny Sunny Ann! suscita ótimos debates sobre as noções de liberdade, autonomia e empoderamento feminino.
Citada como uma artista de destaque pela crítica especializada, Miki Yamamoto ganhou o Prêmio Cultural Osamu Tezuka como Nova artista, em 2013 e foi finalista do festival internacional de Quadrinhos de Angouleme em 2019. Em seu mais recente mangá, publicado pela JBC no Brasil, Yamamoto nos apresenta Ann (Sunny, Sunny, Ann, que em tradução livre poderia significar algo como radiante, radiante, Ann), uma mulher que tem sido descrita nas resenhas como livre, independente e autêntica.
Em Sunny Sunny Ann! acompanhamos algumas situações vividas pela protagonista de forma cronológica, porém, divididas em alguns capítulos nomeados a partir dos eventos ocorridos na história. Com traços cartunescos que me remeteram ao traço rápido do Henfil, Ann aparece como uma mulher desapegada das normas sociais vigentes em uma época por volta dos anos 1990, nos EUA. Esse desapego é explorado ao longo das páginas por meio dos discursos e diálogos de Ann e dos outros personagens, porém, sempre de forma superficial, o que deixa no ar se de fato a personagem é mesmo tão desapegada quanto propõem as resenhas ou se há algo mais ali que não sabemos.
Começando pelo fato de que Ann vive no seu carro e que, ao que tudo indica, por opção. Veja, ela não mora em um trailer com estrutura, banheiro, cozinha, ela mora num carro, toma banho onde e quando dá, depende de favores de conhecidos. Nesse sentido, a ideia de liberdade ou escolha é colocada em xeque, principalmente se considerarmos que estamos falando de uma mulher, ou seja, mais facilmente sujeita a todo tipo de violência e assédio.
“Gostei bastante”, respondi à editora brasileira assim que terminei de ler. Essa frase escondia um incômodo que achei que conseguiria superar ao escrever a resenha, mas ao terminar minha primeira versão, percebi que havia muitos “poréns” tentando justificar que, exceto pela questão gráfica, o mangá me deixou descontente. Isso, acabou servindo para que eu me questionasse sobre meus gostos, já que se trata de uma obra altamente recomendada e elogiada. Então, resolvi conversar com outras leitoras.
Na minha leitura, não pude deixar de sentir o quanto o feminismo liberal permeia todo o mangá: ao colocar Ann em uma situação de prostituição (ela “escolhe” transar com homens em troca de comida, banho, dinheiro…), a autora dá a entender que se trata de uma escolha em nome de uma independência e autonomia que não existem, afinal, esses valores são constantemente condicionados a sexo com conhecidos ou não tão conhecidos. E não há qualquer julgamento moral em relação à prostituição que é de fato uma escolha válida para muitas mulheres, mas no mangá ela parece só existir em relação direta com a situação precária da Ann.
Ao mesmo tempo, há algo de interessante e cativante na história que o fato de além de não limitar Ann a uma personalidade bidimensional e rasa, ela também não propõe qualquer juízo de valor sobre as pessoas ou as ações de Ann. Em um dos capítulos, por exemplo, ela dá carona a uma jovem mulher que acabou de casar com um homem bem idoso e doente. Apesar dos clichês envolvidos nesse tipo de relação (a gostosa novinha que casa com o ricaço idoso), a relação das duas personagens mostra como o acolhimento entre mulheres pode ser muito empoderador e isso é realmente inspirador.
Aí, trago mais um dos meus “poréns”: minha inquietação com essa ideia de empoderamento é que ela foi totalmente esvaziada nos últimos anos pela exploração excessiva do termo associado à empreendedorismo de si mesmo e conquistas individuais, discurso muito típico do capitalismo e do feminismo branco hegemônico que, felizmente, tem sido questionado por autoras e feministas decoloniais e interseccionais. É muito importante pontuar essa questão porque tanto eu como a Gabriela (editora da Mina de HQ) nos identificamos com essas leituras que buscam incluir mais pessoas na luta contra diversas opressões atravessadas não só pelo gênero, mas por raça e classe também, ou seja, é difícil de engolir a ideia de uma liberdade que se pauta em uma representação de uma mulher voluptuosa e supostamente empoderada simplesmente porque não se apega a certas convenções sociais quando esse desapego não parece ser exatamente uma escolha. Quem assistiu ao premiado filme Nomadland (2020), da Chloé Zao, deve identificar facilmente as condições dessa suposta liberdade de quem vive “on the road”, “livre a voar”.
Uma outra situação que reforça a ideia de que Ann não é necessariamente desapegada, mas talvez um tanto alienada e desconectada da realidade tem a ver com um estupro coletivo que a personagem sobre e que é retratado como um contratempo, mesmo que a resolução disso tenha sido catártica. Tive a sensação de que se eu fosse uma vítima de estupro, me sentiria ofendida com a forma como o tema foi abordado. Raras mulheres seriam capazes de seguir a vida como Ann seguiu. Conversando com uma amiga, seu olhar foi de que o mangá tem um tom punitivista: todas as mulheres, sem exceção, sofrem algum tipo de violência ou abuso em algum grau, como se não houvesse a possibilidade de uma existência em que o fato de sermos mulheres (no sentido mais abrangente possível) não envolvesse uma naturalização dessas violências: Ann é estuprada, as mulheres casadas com os homens com quem Ann se relaciona não têm escolha, a menina que ela quase resgata de uma mãe negligente sofre com essa mãe, a moça que se casa com o velho tem que lidar com toda desconfiança e burocracia diante da morte dele… Ou seja, não consegui enxergar a liberdade, a autonomia e a autenticidade que esperava encontrar.
Tudo isso só reflete que o repertório prévio de cada leitor vai influenciar fortemente a leitura e a interpretação desse mangá. Porque se talvez ele tivesse sido vendido como uma crítica a esses discursos liberais ou como uma constatação que não há saída ou perspectiva de que possamos alcançar essa tão sonhada liberdade, como no filme Bela Vingança (2020), dirigido por Emerald Fennell, as chaves e filtros de leitura seriam bem diferentes.
Talvez nada do que apontei seja demérito da obra, pois Sunny Sunny Ann! certamente suscita uma série de reflexões e possibilitou alguns debates sobre suas possíveis interpretações. Esses debates são importantes e deveriam ser mais frequentes.
É possível enxergar essa trajetória de Ann como uma viagem mesmo, onde a estrada é sinuosa e com alguns buracos, como a vida da maior parte das pessoas. É intrigante imaginar qual é a mensagem que a autora quis passar e refletir sobre o lugar de onde ela está falando, os motivos que a fazem pensar que sair sem rumo por lhe passam uma sensação de liberdade e autonomia, principalmente considerando que a sociedade japonesa é sabidamente bem conservadora e machista. Então, por que você não confere o mangá e comenta em nossas redes o que achou dele? Será que ele é de fato uma celebração à liberdade e ao empoderamento feminino?
Daniela Marino é pesquisadora de quadrinhos e questões de gênero, graduada em letras, mestre em comunicação e doutoranda em ciência da informação.
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Dani Marino é especialista em histórias em quadrinhos e questões de gênero. Mestre em Comunicação e doutoranda em Ciência da Informação pela ECA/USP, também atua como professora de Literatura Inglesa. Ganhadora de 2 troféus HQMIX com o livro Mulheres e Quadrinhos, que organizou com Laluña Machado, já colaborou com diversos sites e canais especializados em cultura pop.