O grande vazio na era digital
E se você literalmente desaparecesse quando mais ninguém lembrasse que você existe?
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E se você literalmente desaparecesse quando mais ninguém lembrasse que você existe?
Eu costumo dizer que as teorias sobre os impactos sociais das tecnologias digitais não conseguem acompanhar a velocidade com que essas tecnologias mudam. Quando nós, os cientistas, conseguimos entender mais ou menos as implicações de uma determinada tecnologia, ela já se tornou obsoleta e foi superada por outra que iremos demorar vários anos para compreender. É como enxugar gelo, sabe? Ainda assim, não desistimos.
Autores como Byung-Chun Han, Manuel Castells, Nestor Garcia-Canclini têm se dedicado produzir conhecimento sobre redes sociais e seus impactos há alguns anos, mas, recentemente, li a A construção mediada da realidade (2020), de Couldry e Hepp, e eles propõem algumas sugestões para compreendermos o contexto atual, que é um período de profunda midiatização do mundo social, uma noção que pode ser ilustrada pela constatação de que mesmo as relaçoes offline são afetadas por nossas ações online.
Couldry e Hepp entendem que as ondas de evolução tecnológica, que experimentamos desde o surgimento da prensa, podem ser definidas pelo papel que os meios de comunicação desempenham na construção do mundo social em oposição à ideia de uma evolução em estágios de superação de uma mídia em relação à outra. Nesse sentido, a mudança no nível de importância das interações presenciais frente à possibilidade de se organizar e estabelecer conexões à distância, envolve não apenas mudança de paradigmas sociais como representa mudança significativa na forma como as pessoas têm acesso à informação e produzem conteúdos diversos, ou seja, na forma como conferem sentido a dados e informações aos quais não teriam amplo acesso há algumas décadas. Ou seja, mesmo as interações face-a-face são estabelecidas a partir de decisões que foram tomadas via dispositivos digitais primeiramente.
Veja, a HQ, que foi publicada pela Comix Zone (2023) ilustra justamente a tentativa da autora de entender esse contexto que vivemos, totalmente mediado pelas redes sociais, corroborando o que Couldry e Hepp falam sobre a primazia das interações online em comparação com as relações face-a-face, que até então eram o centro dos estudos sociais. Essa mudança de paradigma tem implicações gigantescas não só na forma como nos relacionamos uns com os outros, mas na forma como nos desenvolvemos como seres humanos em um mundo hiper conectado e, consequentemente, hiper vigilante também.
O que Léa propõe é uma reflexão sobre nossa dependência dos dispositivos e redes digitais a ponto de esquecermos quem realmente somos. Ou seja, ela leva a máxima “quem não é visto, não é lembrado” a níveis distópicos, mas que, ao mesmo tempo, são extremante palpáveis na nossa realidade atual, o que torna o quadrinho um tanto assustador em alguns aspectos, mesmo não sendo uma história de terror. No entanto, ao entrevistá-la, pude ter acesso às outras dimensões que ela buscou retratar na HQ e que vão bem além da questão digital:
Tentei escrever sobre um grande painel de pressão social, onde as redes sociais ocupam um grande espaço claro, mas não só: medo de não ir a festas, de expectativas familiares, de não ser produtivo como trabalhador, tudo tem a ver com isso.
É também sobre a memória e como tentamos sobreviver à morte colocando-nos no espaço público, como dar nomes de pessoas mortas nas ruas, ou ter os nossos nomes escritos em pedras nos cemitérios, mesmo que ninguém na Terra se lembre dessas pessoas. Isso me deu a ideia de usar nomes como algo que você precisa lembrar neste universo.
Imagine que você é uma pessoa como a protagonista Manel Naher, que vive a sua vida meio avessa à exposição excessiva promovida pelas redes sociais, mas se dá conta que se você não for vista constantemente, se não for bem lembrada pelas pessoas, você simplesmente desaparece. Pensando em termos de mídias sociais, não parece algo tão dramático, mas em O grande vazio, quem não é lembrado pelos outros moradores da cidade, realmente morre.
Por isso, Manel tem um plano de escapar da cidade e investigar o grande vazio, lugar mítico onde talvez as pessoas pudessem viver sem a pressão de serem lembradas o tempo todo. Esse plano vai por água abaixo quando uma outra Manel Naher viraliza com músicas grudentas e se torna uma grande celebridade, fazendo com que qualquer pessoa que pense nesse nome, o associe apenas à cantora. Isso significa que a protagonista homônima vai morrer e a partir daí, ela precisa tomar uma série de medidas para evitar que isso aconteça. Obviamente, essas medidas acabam sendo um tanto drásticas e meio inescrupulosas, exatamente como observamos nas redes sociais. Por isso pergunteo à Léa o quanto ela se identificava com Manel:
Me identifico com Manel porque a fiz viver os meus medos. Para tornar um personagem realista, é importante colocar algo que você viveu, é muito íntimo, mas também não é autobiográfico, é um estado intermediário.
Também fiz Manel tomar decisões erradas perante as adversidades, porque não acredito que sejamos perfeitos como ser humano. Através dela, eu queria me perguntar honestamente: o que eu faria no lugar dela estando na mesma situação?
Minha interpretação sobre a HQ é que ela é metáfora maravilhosa para nossa relação com as redes sociais e a quadrinista é extremamente feliz em seu uso de técnicas de lettering que se mesclam às ações, gerando um efeito visual muito interessante. Eu achei o nome da quadrinista argentina Sole Otero e fiquei pensando se seria uma homenagem, então, caçar os nomes que aparecem ali na tentativa de achar algum nome familiar é divertido também. No entanto, as referências da autora estão muito mais centradas no surrealismo e na fantasia do que nas discussões sobre tecnologias digitais, o que reforça a noção de que apreendemos os conteúdos apartir dos nossos repertórios, não da intenção do autor:
Eu leio todo tipo de livro. Acho que o tema de O Grande Vazio foi inspirado por minhas leituras de histórias fantásticas como “Fictions” de Borges ou “L’invention de Morel” de Bioy Casares, ou histórias com conceitos como os primeiros filmes de Yorgos Lanthimos. Também leio ensaios, como os de Philippe Ariès, historiador dos costumes e tradições francesas relacionadas à morte. Mas minha principal inspiração vem dos quadrinhos. Shanghai Chagrin de Léopold Prudon, Ces jours qui disparaissent de Thimotée le Boucher, L’humain de Lucas Varela et Diego Agrimbau, Quitter la Baie de Bérénice Motais de Narbonne, La salle de la Mappemonde de Yuichi Yokoyama, Dororo de Ozamu Tezuka, Fullmetal Alchemist de Hiromu Arakawa, Brat de Michael Deforge, Jimjilbang de Jérôme Dubois, Ted Drôle de Coco de Emilie Gleason e C’est comme ça que je disparaît de Mirion Malle.
De qualquer forma, O grande vazio é aquele tipo de trabalho que além de muito atual e de possibilitar uma série de reflexões, seu impacto não se resume ao momento da leitura apenas. Ele vai ficar aqui na minha cabeça, ilustrando uma série de situações e me fazendo pensar criticamente sobre elas, retornando ao meu pensamento constantemente.
Soube pela quadrinista Ing Lee que Léa teria levado 2 anos para produzir sua HQ, mas o que chamou nossa atenção, foi que dificilmente uma quadrinista brasileira (até mesmo um quadrinista) conseguiria se dedicar um trabalho extenso pelo mesmo período de forma exclusiva. Por isso, perguntei à Léa como foi o processo de criação desse quadrinho.
Recebi muita ajuda para fazer O Grande Vazio. Levei 2 anos trabalhando nisso, mas comecei a escrever a história antes, quando era estudante. Eu não tinha ideia de como fazer uma história em quadrinhos e era bem lenta. Então, logo depois de me formar, solicitei uma bolsa da minha escola em Angoulême para trabalhar na história em quadrinhos, e poderia desenvolvê-la em tempo integral. Com esta bolsa, ganhei um apartamento e um estúdio gratuitos na La Maison des Auteurs em Angoulême, para que eu pudesse economizar dinheiro. Meu editor me deu um adiantamento baixo e eles estavam enviando dinheiro quando eu precisava. Não fiquei o tempo todo trabalhando no livro, durante todo o processo precisei parar de trabalhar para fazer ilustrações e encomendas editoriais ou dar workshops para poder pagar meu aluguel. Quando terminei de trabalhar no meu livro tinha pouco dinheiro sobrando, mas felizmente o livro foi um sucesso na França e agora que a maior parte do trabalho em torno da promoção é pago (palestras, workshops, sinings), graças a La Charte des Illustrateur. ices jeunesse e sindicatos de autores.
ALMEIDA; Marco Antonio de; NOGUEIRA, João R. F. Memória, Cultura Popular e Tecnologias
de Informação e Comunicação. Conference on Technology, Culture and Memory – CTCM.
Strategies for preservation and information, 2011.
COULDRY, Nick; HEPP, Andreas. A construção mediada da realidade. Unisinos, Sâo
Leopoldo, 2020
Daniela Marino é pesquisadora de quadrinhos e questões de gênero, graduada em letras, mestre em comunicação e doutoranda em ciência da informação.
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Dani Marino é especialista em histórias em quadrinhos e questões de gênero. Mestre em Comunicação e doutoranda em Ciência da Informação pela ECA/USP, também atua como professora de Literatura Inglesa. Ganhadora de 2 troféus HQMIX com o livro Mulheres e Quadrinhos, que organizou com Laluña Machado, já colaborou com diversos sites e canais especializados em cultura pop.