Clube de leitura de HQ e a empatia
HQ sobre parto humanizado é debatida por participantes do clube de leitura e ajuda a desenvolver empatia.
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HQ sobre parto humanizado é debatida por participantes do clube de leitura e ajuda a desenvolver empatia.
Desde que comecei a participar dos encontros do Clube de leitura da Mina de HQ, fui atravessada por uma série de ideias que se relacionam diretamente com o que tenho pesquisado no doutorado, que tem relação com as instâncias de legitimação da produção feminina de quadrinhos.
Mas o que me chamou a atenção participando de outros clubes também, todos eles mistos (abertos a pessoas de todos os gêneros) foi a apreensão de sentidos por parte das pessoas, especialmente pelos homens cis.
Parto da noção que para que o acesso à igualdade de gênero avance, é preciso que as pessoas que se beneficiam das opressões de gênero reconheçam seu papel numa estrutura que, em última instância, mata integrantes de certos grupos em função de seu gênero ou orientação sexual. Isso significa que precisamos construir pontes para estabelecer diálogos que possibilitem a compreensão de que todos deveriam estar envolvidos na luta contra as violências de gênero.
Um dos caminhos para a construção dessas pontes é certamente o diálogo entre pessoas diversas a partir de uma relação de escuta atenta e compartilhamento de vivências, prática que pode ser observada em espaços como os clubes de leitura que propõem títulos diversos para os seus encontros.
No entanto, como eu já havia alertado nesse outro texto, o fato de alguém ler um determinado quadrinho não significa que essa pessoa conseguirá acessar ou assimilar as camadas e subjetividades apresentadas por seus autores. Eu notei isso mais claramente ao participar de 2 clubes de leitura sobre Aconteceu Comigo, da Laura Athayde e após ter conversado com alguns leitores cis a respeito do quadrinho: enquanto as pessoas que se viam retratadas nas tirinhas se emocionavam fortemente ao relatar o que sentiram durante a leitura, alguns homens cis permaneceram indiferentes, enquanto outros acharam as tirinhas, que são baseadas em fatos, inverossímeis, ou seja, quem não se via ali representado, não conseguia criar uma conexão com obra.
Então, no dia 22 de abril tive a chance de participar do Iti Club, o clube de leitura da Itiban, uma das mais tradicionais lojas de quadrinhos do país e que fica em Curitiba, PR. A Itiban é administrada pela Mitie Taketani, nome importante do meio dos quadrinhos, envolvida com diversas iniciativas culturais. Já a mediação dos encontros é feita pelos pesquisadores Liber Paz e Rodrigo Scama, do canal Kitinete HQ.
No encontro do dia 22, além dos participantes habituais, os autores da HQ Debaixo D’água também estavam presentes. Fernanda Baukat e José Aguiar recorreram aos quadrinhos para narrar sua experiência em busca de um parto humanizado para o nascimento de seu primeiro filho.
Bom, além de parto não ser um tema tão explorado nos quadrinhos, a questão a violência obstétrica, a máfia dos planos de saúde, a dificuldade de encontrar médicos que estejam dispostos a realizar o parto natural são algumas das questões presentes na narrativa, que conta com ilustrações e cores que conferem dramaticidade ou acolhimento dependendo da paleta utilizada. A representação de suas vivências por meio de ilustrações foi um dos pontos de maior destaque de acordo com os comentários de quem estava presente, mas a parte mais interessante de ter participado do encontro tem muito mais a ver com o que observei enquanto estava lá.
Fernanda e José transparecem pessoalmente a mesma cumplicidade e ternura que transmitem em sua HQ, o que é inspirador considerando que a gravidez pode ser um momento de muita solidão para as pessoas gestantes e essa solidão é exacerbada pelas constantes violências às quais somos submetidas ao longo do processo. Por isso, observar homens cis dispostos a se envolver na gravidez e no parto é algo fora da curva, tanto quanto é para qualquer homem cis se interessar em debater o assunto se não estiver pensando em ser pai.
No entanto, os participantes desse encontro, ilustraram um sentimento que eu tenho tido desde que comecei a observar clubes de leitura: assim como já havia comentado no texto que mencionei lá em cima, os clubes de leitura têm esse potencial de promover o diálogo em torno de assuntos que normalmente parte dos leitores não iria debater de outra forma. Por isso, perguntei a eles sobre suas impressões ao aprenderem mais sobre parto humanizado e as respostas sustentam minha percepção sobre a relevância desses eventos, principalmente se considerarmos que entre os presentes (em torno de 15 pessoas, eu acho), a grande maioria era de homens cis: das 14 pessoas que responderam meu questionário, 78,6% se identificam como homem cis.
Quando perguntados se costumavam pensar sobre o assunto, 42,9 % disseram que nunca pensava e outros 42,9% disseram que já havia pensado eventualmente e, vale destacar, que entre os participantes havia dois jovens de 14 anos que contribuíram com várias considerações sobre um tema que a sociedade insiste em dizer que não é da conta deles, além da doula que aparece na HQ acompanhando a Fernanda. Já 85% dos respondentes, alega ter mudado sua percepção sobre partos após a leitura da HQ, enquanto 100% das pessoas consideraram que a participação no encontro agregou a elas novas informações e percepções sobre o assunto. Nas respostas abaixo, estão algumas das conclusões que os participantes tiveram após o debate do Iti Club e elas demonstram como o conhecimento parto humanizado foi articulado e assimilado pelos leitores que não costumam ser o público-alvo desse tipo de material:
“Já tinha ouvido falar um pouco sobre os conceitos de “parto humanizado” e “violência obstétrica”, mas não sabia do alcance e das formas que essas coisas apareciam, de como no fim das contas a mulher é tratada apenas como uma incubadora.”
“É desumanizado e feito como os médicos querem. Tiram dos pais quase toda a agência de alvo tão íntimo.”
“O contato com as pessoas diferentes no clube serviu, na verdade, pra consolidar e ter base do que eu já imaginava que acontecia. A gente vive num país onde os médicos são médicos por dinheiro e a escolha da mulher é sempre deixada paras um segundo plano (isso se for considerada). Me abriu os olhos para alguns pontos do processo comum de parto nos hospitais que, da minha perspectiva, eu apenas especulava, mas também me trouxe uma visão do que é possível fazer para contornar os problemas e buscar soluções mais humanas.”
“como uma grande indústria, tal qual todas as demais relações que deveriam ser humanas, mas não são porque estão de tal forma atravessadas por um capitalismo predatório que a humanidade se perdeu”
“É triste que o parto natural seja de tão difícil acesso, mesmo sendo o NATURAL, transformando até isso em algo elitizado.”
Quando perguntados de que forma a participação no clube de leitura afetava a percepção sobre temas com os quais não estão acostumados a lidar, a palavra “empatia” surgiu algumas vezes, reforçando a noção que tenho sobre os quadrinhos possibilitarem novos filtros pelos quais as pessoas interpretam o mundo à sua volta (92,9% acreditam que esse tipo de atividade possibilita o desenvolvimento da empatia dos leitores e participantes):
“Participar do clube me faz ler livros que eu normalmente não leria, e a discussão com outras pessoas traz outros pontos de vista, e percepções e conclusões que eu não teria sozinho.”
“Foi meu primeiro Iti Club e, confesso, um tema bem sensível para mim. Mesmo que o tema tenha me colocado numa posição desconfortável, foi interessante ver outras perspectivas e acho que me trouxe uma visão mais empática sobre o tema — que antes eu via apenas como uma realidade distante da minha.”
“Acredito que afeta na empatia. Ao ouvir a forma como os outros relacionam-se com os temas, novas formas empáticas surgem”
“Abre completamente minhas perspectivas de vida. Há experiencias que jamais irei passar na vida. O clube é o local onde posso escutar os outros e ampliar minha visao de mundo. Isso me gera empatia e compreensão ao lidar com outras pessoas.”
Ainda que se trate de uma amostra bem pequena e esse não seja um artigo acadêmico, as informações apresentadas aqui certamente podem funcionar como um pontapé para quem deseja começar um novo clube ou estudar o assunto, que é o que eu pretendo fazer em um dos subcapítulos da minha tese.
Para Andréa Schmitz-Boccia, especialista em Docência de Língua Portuguesa, o diálogo igualitário, segundo ele, valida as falas de acordo com os argumentos e não através de uma hierarquia de poder. Ele “potencializa, em vez de anular, a reflexão de cada pessoa” (Flecha, 1998, p. 45). Em relações igualitárias (em contextos horizontais e equitativos, em que não há relação explícita de poder), o diálogo tende a caminhar rumo à superação de desigualdades, ainda que o contexto de comunicação social seja real, portanto não neutro, e algumas vozes exerçam maior influência que outras.
Tem diversidade na sua biblioteca?
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Daniela Marino é pesquisadora de quadrinhos e questões de gênero, graduada em letras, mestre em comunicação e doutoranda em ciência da informação.
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Dani Marino é especialista em histórias em quadrinhos e questões de gênero. Mestre em Comunicação e doutoranda em Ciência da Informação pela ECA/USP, também atua como professora de Literatura Inglesa. Ganhadora de 2 troféus HQMIX com o livro Mulheres e Quadrinhos, que organizou com Laluña Machado, já colaborou com diversos sites e canais especializados em cultura pop.