A Morte me fez companhia esse ano
Como em “Sandman”, o passeio da Morte pela saga de Sâmela Hidalgo para cuidar da avó e da tia, vítimas da Covid-19, em Manaus
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Como em “Sandman”, o passeio da Morte pela saga de Sâmela Hidalgo para cuidar da avó e da tia, vítimas da Covid-19, em Manaus
“Quando a primeira coisa viva existiu, eu estava lá esperando… Quando a última coisa viva morrer, meu trabalho estará terminado… Então, eu colocarei as cadeiras sobre as mesas, apagarei as luzes, e fecharei as portas do universo, enquanto o deixo para trás…” Morte. Sandman.
Certamente não estava nos meus planos viver um momento de catástrofe histórica. Mas – infelizmente – cá estamos nós no segundo ano da maior pandemia do século.
Parei para pensar e percebi que nesses últimos 6 anos inserida no mercado de narrativas gráficas, estudei os quadrinhos exatamente por suas eras históricas. E sabemos bem que as HQs sempre refletiram a história do mundo perfeitamente quadro a quadro.
E agora me dou conta que isso sempre me fascinou de um modo completamente irreal.
Irreal porque por mais que eu tenha lido Gen – Pés Descalços, eu não estava lá quando Hiroshima foi bombardeada. Por mais que Maus seja um dos meus quadrinhos preferidos, eu não estava em Auschwitz quando tudo aconteceu. Por mais que eu ame a Mulher Maravilha dos anos 70, eu não estava lá marchando pelos direitos femininos.
Mas quer saber onde eu estava? Em Manaus, no dia 14 de janeiro de 2021.
Foi ali que vi Ela diversas vezes, nas ruas, procurando a minha porta, rondando cada vez mais perto.
Eu estava em Belém – numa sexta-feira – quando recebi a notícia que a Morte havia chegado na minha casa, em Manaus, para um café. Minha vó de 86 anos e minha tia surda sinalizante, que moram com meus pais, receberam essa visita inesperada e serviram um belo banquete amazônico enquanto Ela, vagarosamente, degustava faminta.
No mesmo dia, tentando não entrar em pânico, arrumei minhas coisas e tentei embarcar em qualquer voo disponível para Manaus.
Mas. Não. Havia. Vaga.
O próximo vôo com vaga seria somente na segunda-feira.
Entrei em desespero. Chorei no aeroporto, supliquei para atendente me colocar no próximo vôo, em qualquer assento. Eu só precisava chegar em casa a tempo de guiar a Morte porta a fora.
Mas a resposta no aeroporto foi a mesma: sem vaga – Essa frase ainda me perseguiria nos próximos dias em circunstâncias diferentes. Sem mais o que fazer, esperei na angústia.
E esperei por 3 dias.
E enquanto eu esperava, recebia notícias: a Morte abraçava a minha vó tão forte que lhe faltava o ar. Ela deixava minha tia tão próxima ao fogo, que a febre se instaurava e ali permanecia.
E a Morte esperou pacientemente em casa, quando decidiram procurar um hospital para internar as duas. Circulou livremente por todos os cômodos, porque sabia que elas seriam recusadas nos 4 hospitais e voltariam.
Sem vagas para pessoas com 86 anos, eles disseram.
Sem vagas para pessoas que precisam de atendimento em libras.
Sem vaga para qualquer outra pessoa, estamos lotados!
Nas entrelinhas: morram em casa.
E Ela esperou. Esperou porque sabia que elas voltariam.
Mesmo com medo de encontrá-la, embarquei naquele avião esperando a Morte ser uma das passageiras destinadas a me preparar para o que viria. Fui equipada da cabeça aos pés com luvas, roupas adequadas e máscara. Seria eu quem faria uma surpresa.
Quando cheguei, parecia que eu estava entrando em uma instalação hospitalar de guerra. E era mesmo. Ela estava ali!
Minha vó e minha tia definhavam. A Morte estava deitada confortavelmente na cama da minha vó, sorrindo para mim, com o cilindro de oxigênio vazio nas mãos me observando enquanto ela agonizava sem ar.
Entrei devagar, não queria assustá-la! Pus meus olhos nela, tentei entendê-la, saber por que estava ali. E depois disso… não tirei os olhos dela nem por um momento.
“Que poder teria o inferno se os prisioneiros daqui não fossem capazes de sonhar com o céu?”
Ah, querido Sandman! Eu já estava no inferno. E naquele momento eu não conseguia sonhar com nada. O meu único desejo era simplesmente retardar a visita dela até onde eu pudesse. Até onde meu corpo aguentasse, até onde meu amor pudesse levar.
A cada dia e noite que passava, ela se instalava mais! Cravava suas unhas longas e pretas em cada viga da minha casa. E mesmo quando eu não estava ali, Ela me seguia.
Ela estava nas ruas, nos corpos empilhados, nos hospitais, no soar da sirene da ambulância, na casa ao lado, no mercado da esquina, na casa de amigos e outros familiares. Ela estava comigo naquela fila nefasta e me acompanhava enquanto eu passava 24h por dia atrás de oxigênio para tirar minha vó e minha tia das mãos dela.
Até que semanas depois acordei e ela estava de malas prontas. Guardava todos seus pertences, pronta para partir. Eu sorri aliviada, preparada para acompanhá-la até a porta. Finalmente ela estava deixando aquele lugar. Acompanhei ela pelos corredores da casa, cantarolando feliz. Até que…
Ela parou. Eu parei logo em seguida. Minha mãe passou e a encarou nos olhos, desafiando-a.
Mas assim como tantos, a Morte não teve coragem de enfrentá-la!
Olhei nos olhos Dela enquanto eles brilhavam sorrateiros na direção de um outro cômodo.
O quarto do meu pai.
Ela começou a desfazer as malas, pronta para ficar mais uma vez. Eu tentei com todas as minhas forças, e a força de outras milhares de pessoas, continuar levando-a para fora. Eu chorava e gritava tentando em vão, barganhar e fazê-la mudar de ideia. Mas ela entrou no quarto, abriu as malas e se acomodou mais uma vez.
E, se até aquele momento eu estava quebrada e a evitando, foi ali que eu, por aquele segundo, me entreguei a Ela completamente, sem forças.
Uma coisa talvez tenha nos diferenciado naquele momento: ao contrário da Morte, eu não estava conseguindo ser otimista e bem-humorada. Eu estava exausta, em pedacinhos, e isso fazia com que cada vez mais eu procurasse a sua mão.
“Se houvesse tempo para voltar, eu teria continuado. Se houvesse tempo para continuar, eu teria vivido.” Sandman
Ela ficou ali por mais duas semanas. Abraçando e soltando meu pai. Tirando-lhe o ar e devolvendo. Apertando sua garganta e largando. Sempre indo e voltando.
Até ir embora de vez!
Até todos nós nos despedirmos dela e, juntos, levarmos até a porta esperando que nunca mais volte.
Ela colocou a máscara e partiu.
Desde que Ela chegou, essa foi a primeira vez que eu – enfim – pude respirar.
“Hoje a morte está diante de mim: como a recuperação de um doente, como adentrar um jardim após a doença.” Sandman
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Sâmela Hidalgo é manauara, editora de quadrinhos, consultora editorial, trabalhou na Devir Brasil por 4 anos e meio como assistente editorial e assessora de imprensa, podcaster no DFP (devíamos fazer um podcast), produtora Editorial no Stúdio Eleven Dragon, colunista no site Minha de HQ e idealizadora do projeto Norte em Quadrinhos que visa dar visibilidade para quadrinistas do Norte do país.
Siga: @samelahidalgo e @norteemquadrinhos
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