Narcisismo performativo
“Dedico meu amor-próprio a todos que me odeiam”. No mês do orgulho LGBTQIA+, Vitorelo reflete sobre como registrar a própria história pode ser um ato de resistência
Quer receber novidades sobre histórias em quadrinhos? Inscreva-se!
“Dedico meu amor-próprio a todos que me odeiam”. No mês do orgulho LGBTQIA+, Vitorelo reflete sobre como registrar a própria história pode ser um ato de resistência
Narciso nunca tinha visto a própria imagem. Profetizaram que ele morreria ao ver seu reflexo e assim cresceu proibido de se reconhecer. Quando se viu pela primeira vez, achou que se tratava de outro. Eu achava que Narciso tinha se afogado na própria imagem, mas também dizem que seu coração queimou apaixonado até virar flor. Justo flor, que é coisa de viado, código de amantes invertidos, símbolo de todo tipo de amor.
Não consigo parar de pensar em mim. LGBTs têm algo com o autoral. É essa pressa de se escrever e se ler em palavras. De se desenhar antes que lhe escape a figura. De se registrar antes que passe, ou que te passem. O tempo todo se construindo pela desconstrução, o único remédio pra resistir à destruição insistente, histórica, planejada, genocida.
Ultimamente a gente se acostumou com palavras compridas porque elas parecem dizer muita coisa. Muito se fala em representatividade, empoderamento, problematização. Palavras grandes cuja grandeza foi se esvaziando conforme deixavam nossas bocas e passavam a ser reproduzidas pela voz sem rosto de grandes corporações. A ironia de um sistema que permite que o dono da Riachuelo apoie políticos fascistas enquanto lucra com suas camisetas coloridas de “PRIDE”; o PayPal que posta bandeiras LGBT+ nas suas redes sociais, mas não permite que pessoas trans alterem seus nomes de registro em suas contas; a Disney que financia candidatos republicanos e democratas, sob o mesmo slogan de que todos cabemos sob o arco-íris. Às pessoas permito contradição, porque somos feitas delas. Já empresas não têm rosto – têm interesses.
“Representatividade performativa” é a palavra grande da vez, que se relaciona com “pink money”, “rainbow capitalism” ou capitalismo colorido: quando o interesse está em meramente performar o apoio por pautas progressistas em benefício próprio, e não pelos grupos minorizados em questão. Ser gay virou nicho de mercado, público alvo.
Não deixamos de nos beneficiar um pouco disso também, afinal toda comunicação sempre vale dos dois lados: quando uma empresa considera que se associar com nossa bandeira colorida é positivo para a imagem da sua marca, o receptor da mensagem também passa a associar a ideia de diversidade como positiva. De repente, um pouco da cultura queer, que se define justamente por ser contracultura, é um pouco engolida pelo mainstream – e deixa um pouco de ser nossa, também.
Não é cinismo ou ceticismo, mas apreensão. Ao mesmo tempo em que vejo com desconfiança essa festa comercial do Orgulho LGBT+, na periferia do capitalismo a LGBTfobia é institucionalizada a ponto de nossas existências desafiarem leis fundamentais. Nada é preto no branco, e reconheço as vantagens de ser, enfim, reconhecida. Mas também não será esse tipo de reconhecimento que pretendo celebrar. Nossa luta não é pelo direito de virarmos estampa de camiseta – esta é consequência de décadas de insistência, de organização política, de dedicação de tantos autores e artistas LGBT+ em tecer um repertório em que nossa vida coubesse.
Sempre fui apaixonada por histórias, e vejo que a mudança na forma como eu me via acontecia conforme eu encontrava, finalmente, personagens que eram como eu. Não era eu que mudava para encontrá-los; era meu olhar que se transformava e me permitia crescer. Demorou tanto para eu me reconhecer nos livros, e mais ainda no espelho.
Falei de tantos capitalismos que se aproveitam de nós. Mas há uma outra “palavra grande” que gosto, justamente por tirar sarro de si mesma: “capitalista de gênero”, ou gender capitalist. Quem inventou o termo (ou contou a piada) foi Rain Dove, modelo e ativista não-binárie. Enquanto pessoa queer, viveu em situação vulnerável por anos, sem ter emprego ou residência fixos. Até que foi “descoberta” como modelo de roupas masculinas apesar de ter sido designada mulher ao nascer, devido a sua aparência “andrógina”. Rain Dove percebeu, então, que da mesma forma que o sistema lhe tirava oportunidades de se inserir num mercado formal, ela tiraria proveito das mesmas falhas desse sistema por não reconhecê-la dentro dos padrões esperados.
Então volto agora a Narciso. Em obras e estudos feitos por autores LGBT+, é sempre colocada em questão nossa motivação para tratar de temas autobiográficos. Mas a verdade é que o mesmo não é questionado quando se tratam de temas outros; quando escrevo sobre dor crônica ou saúde mental, não se atribui o mesmo peso de ser uma obra autobiográfica ou não; ela apenas é uma obra sobre dor crônica ou saúde mental. Quando um homem cishétero escreve sobre uma experiência, ele é um autor universal. Quando escrevemos sobre nossas experiências, somos autobiógrafos. Será que estamos mesmo obcecados futilmente com nossos reflexos na superficialidade de um espelho? Ou estamos construindo em profundidade um repertório pelo passado e para o futuro, pensando em formas de entender, de pensar, que não se limitam a si mesmas?
Passei muito tempo me odiando por ser incapaz de me reconhecer. Meu amor-próprio é deliberado, político e politizado. Se é comercializado, é porque preciso comer. O “queer” não é belo num sentido tradicional, e deus o livre sê-lo. É hipnotizante e tentador como quem vê, curioso, uma ferida aberta. E a riqueza desse amor é impossível de ser engolida por qualquer sistema que seja, simplesmente porque não é rentável ou necessariamente “produtiva”.
Então reivindico para mim uma nova palavra grande: um narcisismo performativo. Vou me amar mesmo quando me odeio, e principalmente quando outros odiarem. Vou celebrar o relacionamento complicado que todos temos com nós mesmos. Serei e não serei autobiográfico. Porque talvez se Narciso já fosse acostumado à própria imagem, se Narciso tivesse a chance de se conhecer melhor, talvez não teria morrido afogado de si mesmo; melhor que um velório cheio de flores, é sobreviver. E eu não acredito em profecias.
Desde 2015, realizamos aqui na Mina de HQ um trabalho independente de jornalismo, pesquisa e divulgação de histórias em quadrinhos feitas por mulheres e pessoas não binárias. Somos mídia feminista, com perspectiva de gênero. Todo o conteúdo está disponível gratuitamente aqui no site, nas redes sociais e na newsletter. O objetivo é fazer com que cada vez mais pessoas leiam quadrinhos e conheçam novas artistas. E esse trabalho só existe graças aos nossos apoiadores!
Com a partir de apenas R$5 por mês você recebe histórias em quadrinhos exclusivas em primeira mão, além da newsletter quinzenal, participa dos sorteios mensais, ganha mais um monte de recompensa bacana e ainda ajuda a viabilizar financeiramente esse trabalho.
Vitorelo é artista, autora de TILT (finalista Prêmios Dente e Grampo), sobre enxaqueca crônica e saúde mental, Tomboy (Mostra Diversa do Museu da Diversidade Sexual), sobre performance de gênero, e Lilibel, sobre demônios condenados ao inferno paulistano. Seu trabalho autoral faz uso de experimentações gráficas e narrativas. Semioticista, pesquisa quadrinhos experimentais, resistência política e gênero. Siga: @vitorelo.art