Mulheres no quadrinho político
Invisibilidade e resistência: jornalista, quadrinista e ilustradora, Carol Ito trabalha para que haja mais mulheres no debate público sobre política por meio das HQs
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Invisibilidade e resistência: jornalista, quadrinista e ilustradora, Carol Ito trabalha para que haja mais mulheres no debate público sobre política por meio das HQs
“O humor mostra não como as coisas devem ser, mas como as coisas não devem ser”, disse a quadrinista Ciça Pinto, em uma entrevista para a pesquisadora Cintia Lima. Elias Thomé Saliba, historiador e autor do livro “Raízes do riso”, evoca o aforismo do filósofo Wittgenstein: “O humor não é um estado de espírito, mas uma visão de mundo”. Em comum, as duas frases entendem que o humor é um confronto de ideias.
A ideia de confronto, de choque de opiniões, não parece nada engraçada. Ainda mais em tempos de nervos à flor da pele, fascismo e pós-verdade, em que a própria ideia de um debate saudável e racional parece estar sendo esvaziada. Prova disso, são os processos de censura e investigações que estão atingindo chargistas nos últimos tempos, como é o caso de Aroeira, Laerte, João Montanaro e outros casos recentes. Como uma simples tirinha pode ofender uma instituição com tantos poderes como a Polícia Militar, que detém o poder, inclusive, de escolher quem merece viver e quem merece morrer?
Do ponto de vista da comunicação, que é minha área, vou recorrer à Walter Benjamin, que a pesquisadora Dani Marino cita no artigo “Liberdade de expressão frente às novas formas de recepção cultural”. Ele diz que, dentro da cultura de massas, a arte está vinculada à experiência, percepções e usos. Se funciona, é porque dá respostas a interrogações e vazios não-preenchidos. Será que o humor, sobretudo na forma de memes replicados nas redes sociais de modo vertiginoso, não seriam como respostas para o vazio de vivermos, uns mais, outros menos, desamparados em meio à necropolítica? Uma política ou, melhor, um político que é capaz de dizer durante uma coletiva de imprensa que “tá nem aí” para os mortos por Covid?
Ora, o papel de apontar absurdos como esse, de exagerar situações justamente para que elas possam ser compreendidas pelo público de maneira rápida e direta, é (ou pelo menos era) o papel do chargista. Mas a própria política virou um meme, não é necessário apontar os absurdos porque eles já estão lá. Tempos atrás, viralizou no Twitter uma montagem com a fala real do atual ministro da cultura, Mario Frias, se gabando por não ter feito um green card para vazar do país. Ao final, fizeram uma montagem como se o vídeo encerrasse com a vinheta do Porta dos Fundos. É um exemplo disso que eu estava dizendo.
Ao que me parece, trabalhar com humor vem se tornando cada vez mais complexo e desafiador. E isso é bom. Precisamos expandir as fronteiras do que é o humor, para que ele serve, por quem ele luta e em qual contexto. Não dá mais para ficar repetindo as mesmas fórmulas, as mesmas piadas. Nesse ponto, acredito que artistas de grupos historicamente sub-representados, como mulheres, pessoas negras, LGBTs e indígenas, por exemplo, tem muito a contribuir, pelo simples fato de que suas visões de mundo (que nunca tiveram um espaço decente na imprensa e em outros lugares de legitimação) podem contribuir para a construção de algo novo.
Vou me atentar a questão das mulheres no humor gráfico, em que me sinto um pouco mais de propriedade para falar. Em 2017, escrevendo minha dissertação de mestrado sobre mulheres que fazem quadrinhos e publicam na internet no Brasil, fui buscar quem foram as mulheres que ajudaram a construir a cena nacional de quadrinhos ao longo do século 20. Me deparei com nomes que nunca tinha ouvido falar, mesmo sendo quadrinista e já discutindo sobre representatividade feminina na área.
Não foi fácil encontrar informações sobre produções de artistas como Pagu, Hilde Weber, Conceição Cahú, Mariza e Ciça Pinto, que não figuravam entre os grandes nomes do humor nacional em antologias, enciclopédias, documentários e mesmo em pesquisas acadêmicas.
Assim, decidi criar o Políticas, num impulso quase desesperado de registrar o que mulheres cis, trans e pessoas não-binárias têm feito hoje, com medo de que também ficassem apagadas na história.
Desde então, publicamos mais de 20 artistas, de mais de 17 estados, cujos trabalhos são garimpados atualmente por mim e pela quadrinista Thais Gualberto, ou enviados voluntariamente pelas próprias artistas. Realizamos duas exposições também e, no ano passado, fui convidada a falar sobre o projeto na CCXP, o maior evento de cultura geek do país.
Publicamos trabalho de artistas muito talentosas, como Line Lemos, Luli Penna, Thais Linhares, Bennê Oliveira e Ana Paloma Silva.
Sendo mulher, dentro dos meus critérios subjetivos e objetivos do que seria um bom cartum de humor, eu não entendo porque o Políticas ainda é tão pequeno, tem pouca ou nenhuma relevância na cena do humor gráfico nacional. Afinal, o grande barato da internet não é a possibilidade de um quadrinho viralizar de uma hora pra outra, sem a mediação de instituições que, tradicionalmente, excluem mulheres?
Já sacamos que quem tem poder de decisão dentro dos espaços tradicionais de legitimação, como a mídia hegemônica e mesmo a mídia especializada, não vai abdicar de seus privilégios para que tenhamos onde divulgar nossa produção. Criamos nosso próprio espaço. O que falta?
Em quase três anos de trabalho, feito puramente pela militância, chegamos em mais de 7 mil seguidores no Instagram. A maioria deles, acredito que sejam mulheres. É inevitável pensar que nós, coordenadoras, não damos atenção suficiente ao projeto (afinal, estamos envolvidas com outras mil e uma coisas para pagar as contas) ou que os trabalhos simplesmente não são tão bons assim. Como artista, me questiono, com mais frequência do que seria saudável, se meu trabalho é realmente bom.
Mas a questão é: bons para quem e dentro de qual repertório de referências para se avaliar o que é um bom cartum político? Certamente, essas referências não foram construídas por artistas mulheres. Certamente, vai demorar para que mais artistas se sintam à vontade (primeiramente, com elas mesmas) de publicar esse tipo de trabalho. Sabemos que a ideia da mulher artista, irreverente, ousada e atuante na discussão pública ainda é muito recente. Mas seguimos lutando para existir e admirando as mulheres corajosas que vieram antes de nós, contrariando as expectativas sobre elas.
Não acredito que nessa existência eu veja isso acontecer, talvez nas próximas gerações de meninos e meninas que vão crescer com um entendimento mais diverso sobre gênero. Enquanto o mundo ideal não chega, precisamos de aliados, aliadas e aliades, dispostos a olhar e admirar nosso trabalho, repercuti-lo. Pode parecer fácil, mas, num mundo que diz que ainda somos o segundo sexo e que o “universal” está associado à masculinidade, é um desafio e tanto.
* Carol Ito é jornalista, quadrinista e ilustradora de Marília, interior de São Paulo. Vem despontando como um dos nomes do jornalismo em quadrinhos no Brasil. É autora das webtiras Salsicha em Conserva e Quarentiras, uma das fundadoras do Políticas HQ, projeto dedicado a publicar quadrinhos políticos feitos por mulheres. Mestra em Ciência da Informação pela ECA-USP, Carol pesquisou sobre mulheres que produzem webcomics no país. Siga: @carolito.hq
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