Povos indígenas nas HQs em números
Pesquisadora apresenta dados sobre a desigualdade na produções de HQs com temáticas indígenas
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Pesquisadora apresenta dados sobre a desigualdade na produções de HQs com temáticas indígenas
Este texto apresenta parte da pesquisa de doutorado que desenvolvo no Programa de Pós-graduação em História da Arte na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) analisando a representação dos povos indígenas nas histórias em quadrinhos brasileiras, especialmente aquelas publicadas de forma não recorrente entre os anos 2000 e 2022. Meu objetivo é compreender as narrativas que estão sendo construídas sobre esses povos no contexto da produção de quadrinhos no Brasil.
Durante meu primeiro ano de pesquisa, meu foco foi identificar as obras que poderiam ser incluídas no meu estudo. Busquei quadrinhos que abordassem questões sociais, culturais e religiosas relacionadas aos povos indígenas, bem como obras que apresentassem personagens indígenas relevantes para as histórias. O que descobri foi que muitos desses quadrinhos foram lançados por pequenas editoras independentes, através de editais públicos que incentivam a criação e publicação de quadrinhos, ou por meio de financiamento coletivo. No entanto, frequentemente, essas obras não circulam fora das regiões onde foram criadas, o que torna desafiador identificá-las.
Acredito que essa dificuldade persistirá mesmo após quatro anos de pesquisa de doutorado, porque é improvável que eu consiga identificar todas as obras pertinentes, levando em conta a natureza descentralizada e fragmentada dessa produção, em especial aquela financiada por recursos públicos ou financiamento coletivo. De qualquer forma, é crucial compreender como esses quadrinhos são financiados em momentos diferentes e como essas diferentes formas de financiamento podem influenciar o conteúdo das obras.
Aproveito para esclarecer que ainda não encontrei outras pesquisas abrangentes sobre a representação dos povos indígenas nas histórias em quadrinhos brasileiras, nem sobre as formas de financiamento dessas obras. Dessa forma, trago dados inéditos para entendermos melhor como isso tudo funciona.
Antes de entrarmos nas descobertas, quero claro o motivo pelo qual as histórias em quadrinhos são tão significativas. Elas desempenham um papel importante em nossa cultura, podendo moldar nossa visão de mundo e refletindo as dinâmicas sociais da sociedade. Portanto, analisar como os povos indígenas são retratados nessas obras é mais relevante do que nunca, ainda mais se levarmos em consideração que a política brasileira tem sido marcada por retrocessos no que diz respeito aos direitos indígenas.
Minha análise está concentrada em 80 histórias em quadrinhos até o momento [1]. Obras de todas as regiões do Brasil, com uma variedade de gêneros, formatos, autores e processos de produção.
Meu primeiro passo foi agrupá-las em quatro categorias distintas, levando em consideração as formas de financiamento envolvidas: por editoras, através de plataformas de financiamento coletivo, apoiadas por editais públicos ou lançadas de forma independente. Em seguida, identifiquei onde cada uma delas foi publicada e se houve a participação de indígenas, seja na criação ou como consultores.
Devido à complexidade do envolvimento de indígenas na criação desses quadrinhos, há a necessidade de abrir parênteses para explicar o motivo de usar o termo “participação indígena” em vez de “autoria indígena”.
[1] Atualmente, o corpus está próximo a 100 obras.
Inicialmente, acreditei que poderia dividir as histórias em quadrinhos que fazem parte do meu estudo em obras de autoria indígena, autoria não indígena e as de autoria mista. Mas, enquanto adquiria e fazia uma primeira análise das obras, percebi que o envolvimento de indígenas na concepção destes quadrinhos era muito mais complexo. Existiam aqueles quadrinhos que não tiveram nenhum tipo de participação de indígenas em sua criação, aqueles nos quais algum indígena era apresentado como autor (tanto no caso de autoria mista, como nos de autoria exclusivamente indígena) e, em diversos casos, os indígenas não eram apresentados como autores, mas como consultores e apoiadores. Por esse motivo, creio que é mais correto pensar em participação, até porque o conceito de autoria ocidental não é compreendido da mesma forma pelos povos indígenas em geral.
Esclarecido esse ponto, a partir dos quadrinhos analisados, posso afirmar que:
Chama a atenção o fato de que as formas mais recentes de financiamento de quadrinhos no Brasil, como os editais públicos e financiamento coletivo, se destacam quando se trata de obras com temática indígena, representando metade das produções. Esses dados se tornam ainda mais significativos quando consideramos o local de publicação dessas obras e a participação de indígenas em sua elaboração.
As obras bancadas por editoras estão concentradas no eixo Rio-São Paulo, com São Paulo representando 80% desse grupo. Entretanto, nenhuma delas contou com a participação de indígenas na sua criação.
Já as financiadas coletivamente apresentam uma distribuição geográfica mais diversificada, abrangendo estados como Amazonas, Minas Gerais, Pará, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo. Em oito casos, indígenas estiveram envolvidos na autoria ou atuaram como consultores, enriquecendo substancialmente as narrativas.
Os quadrinhos apoiados por editais públicos também se espalham por diversos estados, com destaque para o Amazonas, seguido por São Paulo, Minas Gerais, Pará, Paraná, Rio Grande do Sul e Distrito Federal. Mais uma vez, em oito casos, houve a participação de indígenas na autoria ou como consultores.
As publicações independentes também estão presentes em vários estados, como Amazonas, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo. No entanto, em nenhuma delas, indígenas participaram da criação.
Publicações por editoras
Financiamento coletivo
Independentes
Editais públicos
Esse estudo demonstra que as diferentes formas de financiamento não apenas descentralizam as publicações, mas também proporcionam uma riqueza de vozes e narrativas. Além disso, evidencia como os quadrinhos podem desempenhar um papel significativo na promoção de narrativas mais inclusivas. Isso nos leva a refletir sobre como as diferentes formas de financiamento influenciam não apenas a escolha dos temas abordados, mas também a autoria e os processos de produção. Essa análise é fundamental, dado a diversidade de mais de 300 etnias indígenas vivendo no Brasil, cada uma com sua própria cultura e histórias únicas.
Os povos indígenas, ao longo da história, foram frequentemente representados por outros, sem autonomia para contar suas próprias histórias. Embora este cenário tenha experimentado alterações significativas na última década, o caminho a percorrer é ainda longo. A análise dos dados apresentados permite sugerir que determinadas modalidades de financiamento favorecem a multiplicidade de vozes e conferem maior espaço para produções que contribuam para que os povos indígenas possam ser protagonistas de suas próprias histórias, contribuindo para um equilíbrio nas narrativas.
Eu acredito que histórias em quadrinhos podem tanto reforçar quanto desconstruir estereótipos e, com minha pesquisa, estou tentando entender melhor como essas representações são construídas nas HQs brasileiras.
No geral, acredito que minha pesquisa não seja importante apenas para entendermos melhor como as culturas e a diversidade indígena são representadas, mas também para mostrar como diferentes formas de financiamento afetam a criação de quadrinhos no Brasil, incluindo os temas, quem os cria e como são feitos. Isso é algo sobre o qual ainda sabemos muito pouco!
Karoline Caetano é pesquisadora de quadrinhos, doutoranda em História da Arte na Unifesp (SP).
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