Resenha: Persépolis e Bordados
Quando uma mulher escreve sua história ela escreve por muitas outras. As histórias de coragem e testemunho de Marjane Strapi
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Quando uma mulher escreve sua história ela escreve por muitas outras. As histórias de coragem e testemunho de Marjane Strapi
2020 vai ficar marcado como o ano que nos levou muitas coisas embora: além de um bom pedaço da nossa saúde mental, pessoas e lugares que frequentávamos agora parecem tão distantes. Diante de tantas ausências, ao menos pra mim, vai também ficar marcado com o ano que me trouxe algo pra ficar: a companhia dos quadrinhos. A leitura já é velha amiga pra todas as horas, mas não me sentia convidada a me aventurar pelos quadrinhos. Até que Marjane Satrapi e Alisson Bechdel (e a Mina de HQ, claro!) chegaram em minha vida e foram grandes aliadas para tempos tão difíceis.
2020 também é o ano que Persépolis completa 20 anos. Obra que lançou Marjane Satrapi pro mundo (algo que descobri depois de começar a me aventurar nos quadrinhos), que tem uma importância cultural gigante, e que abriu caminhos para muitas outras autoras a partir de seu lançamento. Persépolis traz o ponto de vista de uma mulher que cresceu em meio aos conflitos da introdução do Islã no Irã. Marjane conta uma história que conhecemos de forma tão superficial aqui no Brasil, a partir de um ponto de vista tão íntimo.
“Tentei entender e descrever minha experiência, o que foi importante porque as pessoas sabem muito pouco. Eles veem imagens na TV e pensam: Ah, é assim que as coisas são. E eles me perguntam todo tipo de perguntas estranhas (…) Não tinha outra maneira de escrever sobre minha história. Eu não poderia dizer de repente: “Oh, esta é uma análise do que aconteceu nos anos 70 e nos anos 80 e 90 no Irã”, porque eu não sou um historiador e não sou um político. Sou uma pessoa que nasceu em um determinado lugar, em um determinado tempo, e posso não ter certeza de tudo, mas não tenho certeza do que vivi. Eu sei isso. (…) Eu me peguei dizendo a mesma besteira sem parar e enfrentando tantos preconceitos. Cheguei a um ponto que eu simplesmente pensei, tenho que colocar em um livro, porque enquanto eu gosto de falar, me repetir constantemente era muito cansativo. Eu realmente não acreditava que alguém o leria, mas se as pessoas me fizessem perguntas depois que eu o escrevi, eu poderia dizer: “Há um livro; você pode ler.” (Em entrevista com Emma Watson)
O Irã é um país que é comumente visto com muito preconceito. A ausência de narrativas mais diversas cria, por exemplo, a percepção de que o extremismo religioso sempre esteve presente e é algo de todos os cidadãos do país. Por isso mesmo ler e conhecer sua história de um ponto de vista tão próximo ajuda a quebrar esses preconceitos. Depois de ler Persépolis mergulhei em busca de saber mais sobre este país e adorei conhecer mais. Marjane não só sabia que essa curiosidade poderia ser despertada em seus leitores como enxergou o potencial de transformação que essa proximidade poderia trazer:
“Assim que você conhece alguém de algum outro lugar, então é muito mais difícil considerá-lo apenas como “o inimigo” porque a pessoa se torna real. Não é mais uma noção abstrata. Então eu realmente acho que o trabalho cultural é extremamente, extremamente importante. (…) Você sabe, aquele filme mudou minha vida. Sim. Eu li um livro, isso muda minha vida. Eu ouço música, isso muda minha vida. Tudo o que acontece com o cérebro tem o poder de mudar sua vida.” (Em entrevista com Emma Watson)
Até porque é só passada a barreira dos preconceitos que conseguimos acessar e aprender com o que nos conecta. A possibilidade de um regime radical se instalar no país se deu depois de um levante popular que “despertou o povo de um longo sono de 2500 de submissão”, como diz o pai de Marjane no livro. Se isso te soa parecido com um tal “gigante que acordou” não é mera coincidência. Essa passagem histórica tem uma grande relação com a história recente do Brasil. Reler Persépolis no Brasil pós-eleições de 2018 é receber a porrada de perceber que estamos vivendo, hoje, coisas bem parecidas com as que precederam os momentos de conflitos extremistas contados no livro. E se, ainda sim, achamos que a nossa história está muito distante de se conectar com a história de uma mulher que cresceu junto com uma guerra, o que dizer do 2020 da pandemia? Temos muito a aprender com a forma como ela perdeu tanto e ainda sim seguiu tentando construir novas possibilidades para si e para as pessoas ao seu redor.
Acompanhamos o processo de crescimento de Marji a cada página e o como ele vai ser sendo influenciado por tudo que a rodeia (não que fosse possível pra ela se alienar dos temas políticos) sem deixar de perder o espírito da jovem que apenas busca espaço para fazer coisas consideradas normais para jovens de sua idade: ouvir música, explorar seus gostos e estilos, dançar. A cena em que ela vai a sua primeira festa, seguida de uma das conversas em que ela vai adquirindo consciência de classe, é um retrato de como o político e o pessoal estão tão colados em sua história:
Se Persépolis é um livro sobre o crescimento de uma mulher, Bordados, livro que ela lançou 3 anos depois, nos convida a chegar ainda mais perto dessas mulheres. Inclusive, recomendo muito a leitura na sequência pra sentir essa construção de relação de intimidade. A conexão entre estas duas obras, muito marcada pela personagem de sua avó, demonstra o papel central que esta mulher, e seus conselhos, tiveram na história de Marjane.
Em Bordados, reunidas ao redor do Samovar, chá típico do país que é consumido de forma ritualística, as mulheres trocam confidências e falam da vida alheia. O foco da narrativa é a relação das mulheres com os homens e com o casamento. O jeito leve com que elas fazem seus relatos se contrapõe a densidade das histórias retratadas: mulheres obrigadas a se casar com 13 anos com generais com 50 anos, outras que são casadas há anos sem nunca ter visto um pênis e assim por diante. Embora possa ter um ar mais engraçado, o livro retrata intimidades permeadas por questões relacionadas à violência doméstica e submissão feminina. Temática que inclusive remete ao título do livro: Bordados não é apenas sinônimo de fofoca, sendo um equivalente ao nosso “tricotar”, mas também o apelido para um tipo de procedimento cirúrgico ao qual mulheres se submetem na tentativa de “permanecerem” virgens até o casamento.
A voz de Marjane carrega a força e a coragem do seu testemunho. E também as consequências de se erguer a voz num mundo tão patriarcal e machista. Sendo uma iraniana que contou como é crescer em um país fundamentalista e bélico, em que o testemunho das mulheres não tem valor nem juridicamente (tanto que se alguém morrer na frente de uma mulher não será punido) quase não é preciso dizer que na história do Irã, Marjane Satrapi foi a primeira mulher a publicar uma história em quadrinhos. E também que, apesar de seu primeiro livro ter vendido milhões de cópias ao redor do mundo, não pode ser publicado nem circular oficialmente em seu próprio país de origem.
Persépolis inspirou muitas mulheres a pensarem suas histórias, usando a ilustração como linguagem. Acontece que lidar com traumas através da linguagem do desenho é um jeito de acessá-los e sem acessar a dor com a mesma riqueza de detalhes (como confirma a conversa da Gabi Borges [editora e criadora da Mina de HQ] com a Amanda Miranda e Aline Zouvi, nesta live aqui). Assim, acaba por desencadear quase que um processo de cura, como a própria Marjane conta que foi pra ela:
“Passei por uma mega depressão. Aí sabe o que aconteceu? Eu estava muito deprimida, e quando eu fico deprimida eu não respiro. O ar não entra. Aí teve uma noite em que eu estava sozinha e a respiração começou a parar. Liguei pra emergência e disse: ‘Eu não consigo respirar.’ Aí vieram, me enrolaram no alumínio como se eu fosse um frango assado, me botaram um cobertor, me colocaram na maca e começaram a me descer pela escada, que era em espiral. Acabou que eu caí, desabei escada abaixo e abri a cabeça. Tiveram que dar quatro pontos! Aí minha depressão acabou. Foi tanta dor que minha respiração voltou e ali eu decidi: Vou ter que fazer alguma coisa. Aí escrevi Persépolis.” (Em entrevista com Emma Watson)
Marjane Satrapi é uma filha de família de tradição de esquerda, de classe média no Irã e ensinada por valores de igualdade de gênero, da luta anti-imperialista e da emancipação da classe trabalhadora. Essas particularidades em sua vida marcaram sua obra. Um literatura de combate ao machismo, ao capitalismo, ao imperialismo, e ao tradicionalismo. São tantos temas (drogas, divórcio, relacionamento, família, questões de classe) e nuances que certamente são livros que valem várias releituras. Ela tem se aventurado também no universo do cinema, pra ela, uma máquina de criar empatia, tendo levado o próprio Persépolis às telonas em um longa de animação que chegou a concorrer ao Oscar. Vale conferir e acompanhar suas futuras criações.
Depois que a Gabi me convidou pra escrever essa resenha sobre Persépolis e Bordados descobri que Marjane Satrapi foi a porta de entrada para várias outras mulheres no mundo dos quadrinhos (ufa! não fui a única a achar que se eu não gosto de heróis, eu não gosto de quadrinhos.). A própria Marjane precisou ler outras obras para tomar coragem para escrever a dela. Ela conta em algumas entrevistas que foi fundamental para que ela terminasse de visualizar o projeto de Persépolis ler Maus, de Art Spiegelman – uma referência potente, porém escrita por um homem. Quando você não encontra referências talvez esteja descobrindo que você será a referência. Se a Marjane criança tinha um desejo de ser profeta, já devia imaginar que suas palavras iriam abrir caminho para muitas outras pessoas: “Estou muito envolvida com as questões dessas mulheres, porque me pergunto por que não acreditamos um pouco mais em nós mesmas.”
Certamente a existência artística de Marjane nos inspira a acreditarmos um pouco mais em nós mesmas. Não há dúvidas: Nossas experiências se conectam por mais diversos que sejam os contextos em que estamos. Muitas outras histórias de mulheres foram contadas a partir da coragem da escrita da Marjane nos últimos 20 anos. Mal posso esperar pra ler todas elas.
Mari Pelli, apaixonada por escrita desde sempre, se descobriu escritora recentemente, em meio ao grupo de mulheres do Ninho de Escritoras, com quem compartilha os desafios de colocar em palavras as inquietações que moram dentro da gente. Acredita tanto na importância de contarmos novas histórias para construir realidades mais justas e humanas que facilita encontros de escrita e ajuda pessoas e projetos a colocarem suas ideias pro mundo. www.maripelli.com.br
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