Resenha: Ópera Negra
HQ de Clara Chotil, lançada pela editora Veneta, conta a história da brasileira Maria d’Apparecida, a primeira mulher negra a cantar na Ópera de Paris
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HQ de Clara Chotil, lançada pela editora Veneta, conta a história da brasileira Maria d’Apparecida, a primeira mulher negra a cantar na Ópera de Paris
Essa é a história de uma mulher negra que nunca protagonizou livros de História. Uma mulher negra, filha de outra mulher negra que trabalhou como empregada doméstica na casa de uma família branca com nome-sobrenome no Rio de Janeiro, na década de 1920. Maria d’Apparecida nasceu nesta casa, perdeu a mãe para uma tuberculose, e aos oito anos foi “adotada” pela patroa. Não nos papéis, claro, mas daquela forma: “como se fosse da família”. Cresceu com as mesmas condições dadas às suas “irmãs”: escola, bordado, balé, tênis, além de aulas de francês e de piano.
Sua vida foi viver à sombra do que se esperava de uma mulher numa família branca brasileira, de elite, no século 20: formar-se professora, ser pedida em casamento e constituir uma família. Mas nada disso estava nos planos de Maria d’Apparecida, que perseguiu o sonho de ser cantora lírica, trabalhou em programas de rádio, entrevistou nomes como Grande Otelo, e nunca foi levada a sério. Renegada pelo próprio país, que lhe fechou as portas porque “negros não cantam no Municipal”, mas na Europa traçou uma prestigiosa carreira: foi a primeira mulher negra a cantar na Ópera de Paris.
Perplexos, adentramos as primeiras páginas de Ópera Negra, primeiro romance gráfico da franco-brasileira Clara Chotil, publicado pela Editora Veneta. O lançamento, em maio passado, foi num lugar simbólico: o Theatro Municipal de São Paulo. Afinal, Maria d’Apparecida só passou a ser recebida em espaços como este quando ascendeu fora do Brasil. Inspirada pela biografia Maria d’Apparecida, Negroluminosa Voz (Alameda, 2020), de Mazé Torquato Chotil, mãe da quadrinista, esta HQ nos convida a acompanhar a vida da mais expressiva cantora lírica brasileira do século 20.
Para isso, Clara Chotil conduz os leitores a um passado colorido, dividido em atos, como a partitura de uma ópera. “A parte que eu mais gostei de desenhar foi essa porque me permitiu viajar um pouco naquele espaço-tempo. Principalmente desenhar as grandes imagens de abertura dos capítulos. Sou do desenho e da pintura e por isso tenho muito prazer em fazer grandes imagens mais detalhadas”, conta. Enquanto o presente faz um contraponto à paleta de cores e paisagens oníricas. Apenas uma cor – talvez a azul da caneta Bic de uma jornalista – nos traz à atualidade, com traços minimalistas. Mais precisamente, ao ano de 2017, quando sua mãe, Mazé Chotil, é atravessada pela notícia da morte de Maria d’Apparecida em Paris.
“A ideia é que a gente esteja assistindo a uma peça de teatro, que é a história da Maria d’Apparecida, e cada ato tem um movimento [Andante, Moderato, Allegretto…]. E que [fora dos atos], a gente tenha esses momentos de pausa, de conversa, que são os momentos da história da minha mãe”, explica a quadrinista.
Nas primeiras páginas, é a jornalista e escritora brasileira Mazé Chotil, em seu apartamento na cidade de Paris, quem se depara com a notícia de que Maria d’Apparecida havia morrido, aos 81 anos, sem parentes, sem herdeiros, e correndo o perigo de ser enterrada numa vala comum. Sim, numa vala comum seria enterrada a soprano que protagonizou Carmen, de Bizet, na Ópera de Paris, que excursionou pelo mundo, que se sentou à mesa e recebeu honras de lideranças políticas e monarcas, que brindou taças e ideias com os pintores surrealistas Salvador Dali, René Magritte e Félix Labisse, de quem foi musa em muitas obras e com quem teve uma relação amorosa duradoura – inclusive, a esposa de Félix, Jony, era sua amiga. Sim, ela que foi amiga de Villa-Lobos, Vinicius de Moraes, Tom Jobim, e que gravou um de seus últimos álbuns com Baden Powell. Sim, Ela.
Como nosso alter ego, Mazé se pergunta: “É espantoso que ninguém tenha ouvido falar dela, não?”. É espantoso não termos lido, ouvido, estudado Maria d’Apparecida, Maria Firmina dos Reis, Tia Ciata, Dandara, Antonieta de Barros, Teresa de Benguela… Então, devoramos a HQ Ópera Negra, porque a queremos dentro da gente, e não fora. Porque já passamos tempo demais sem saber quem foi Maria d’Apparecida.
Clara autografando no Teatro Municipal de São Paulo
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