Todo boy é um pouco dodói
Por que a coletânea de quadrinhos “Boy Dodói” é tão necessária? 11 artistas brasileiras ilustram histórias reais de homens doentes de patriarcado
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Por que a coletânea de quadrinhos “Boy Dodói” é tão necessária? 11 artistas brasileiras ilustram histórias reais de homens doentes de patriarcado
Eu estava lá no momento da epifania da Bebel (Bebel Books) enquanto ela conversava com a Carol Ito e a Helô D’Ângelo, as 3 organizadoras e editoras do sucesso Boy Dodói, em pós-evento do FIQ (Festival Internacional de quadrinhos de BH). Apesar do momento de descontração e muitas risadas enquanto compartilhavam casos de homens cis abusivos, inseguros, imaturos e que lhes renderam temas para inúmeras sessões de terapia, o fato é que a incidência do boy dodói de patriarcado, como as autoras definiram na introdução da HQ, é um problema social e cultural bem sério.
Talvez por isso que tratar esse problema por um viés humorístico possibilite que essa discussão esteja alcançando tanta gente. Durante o lançamento da coletânea dessas histórias reais na Bienal de Quadrinhos de Curitiba, não foi raro eu observar muitos homens comprando Boy Dodói e se divertindo enquanto liam e comentavam com amigos em volta. Como relata Gregório Duvivier no posfácio do livro, para a maioria dos homens se trata de uma grande porrada, ainda que isso seja feito de maneira divertida. Isso porque, apesar de conhecermos apenas 11 das histórias recebidas em um universo de mais de 300 relatos, todo mundo conhece um boy retratado ali, TODO MUNDO.
Arte de Helô D´Ângelo
Essa generalização não é um exagero: em recente relatório do programa das Nações Unidas para o desenvolvimento (PNUD) o órgão afirma que no Brasil 75,69% das pessoas possui alguma crença que compromete a integridade física das mulheres, ou seja, 3 em cada 4 pessoas que conhecemos têm atitudes e discursos que reforçam uma cultura que nos enxerga como cidadãos de 2ª categoria e isso acarreta uma série de implicações em todas as esferas da atuação humana. Por exemplo, na medicina, temos menos acesso à pesquisa sobre problemas de saúde das mulheres (se você adicionar aí um atravessamento racial, mulheres negras são as que menos recebem analgésicos e cuidados paliativos por serem consideradas “mais fortes”), na política temos menos presença e isso compromete nosso acesso a políticas públicas etc. Mas, no âmbito social, a coisa se complica ainda mais: em uma cultura que sempre nos entendeu como propriedade masculina, é importante notar que o conceito de estupro marital é muito recente na lei, tanto quanto a derrubada da tese da violência cometida em defesa da honra masculina.
Doente de patriarcado. By Helô D’Ângelo
Esses dados são importantes porque certezas compartilhadas social e culturalmente fundamentam ideias que nos são muito nocivas sobre o que é o não violência contra a mulher e dificultam o entendimento de que a violência de gênero não é uma exceção, mas uma regra que sustenta todo um sistema secular onde somos mortas, estupradas, apagadas, apenas por não pertencermos ao gênero “certo”. Uma cultura que ainda promove a ideia de que mulheres maduras reclamam demais quando essas se manifestam sobre a desigual sobrecarga física, mental e emocional à qual somos submetidas ou de que mulheres que denunciam assédio ou estupro querem fama, quando estima-se que no Brasil apenas 10% dos casos sejam denunciados mesmo quando temos um estupro a cada 2 minutos no país.
Estupros denunciados x condenações e falsas denúncias via Washington Post
Assim, ainda que as histórias em Boy Dodói sejam bem leves comparadas ao que costumamos vivenciar e ouvir das amigas (as autoras pegaram bem leve, acredite), elas podem promover uma conscientização dos homens cis sobre atitudes que estamos muito cansadas de ter que lidar, seja direta ou indiretamente. Por mais que muitos caras sejam muito legais mesmo, isso não muda o fato de que todos, sem exceção, se beneficiam dessa cultura que nos coloca em constante estado de alerta e define nossas atitudes diárias, inclusive a de não reagir diante de uma violência ou injustiça com medo de uma violência ainda maior. Então, ainda que divertidas, essas HQs ilustradas por 11 autoras diferentes têm uma intenção muito séria em seu cerne.
By Carol Ito. Não Integra a coletânea
“Homens têm medo que as mulheres riam deles. Mulheres têm medo que os homens as matem.”
Margaret Atwood
O que quero dizer é que Boy Dodói é uma excelente oportunidade para que os caras reflitam sobre suas atitudes e se esforcem para mudá-las. O número de mulheres optando pelo celibato só aumenta e esse fato está exclusivamente na conta dos homens cis. Para além do sexo, não são poucas as mulheres que eu conheço que estão desenvolvendo profundo desprezo pelo sexo masculino, principalmente quando elas são financeira e emocionalmente independentes.
Em seu livro Eu odeio os homens, a francesa Pauline Hermage defende um direito à misandria de forma ácida e divertida, não como uma proposta de vingança ou aversão aos homens, mas como uma aceitação do direito de não se sentir confortável diante das atitudes, ou da falta de atitude dos caras cis. Veja, nós somos literalmente assassinadas todos os dias por homens que não souberam ouvir “não”, todas nós, em maior ou menor grau, sofremos uma série de violências de gênero ao longo da vida, violências relacionadas exclusivamente ao fato de sermos quem somos (cis, trans, negras, gordas, mas sempre, mulheres). Não existe um sistema que oprima os homens cis no mesmo grau, não existe um sistema misândrico, ou seja, enquanto uma ideia que acolha nossa insatisfação no mundo, ela é bem válida.
Como funciona a violência de gênero by Não me Khalo
Mesmo assim, Boy Dodói está longe de uma proposta parecida. O que se busca ali é dar um recado, um puxão de orelha e lembrar que precisamos que os caras se responsabilizem por suas ações e que chamem a atenção dos colegas que agem de forma machista, porque não agir diante de uma injustiça significa ser conivente com ela.
Por isso eu posso afirmar que todo boy é um pouco dodói de patriarcado e é necessário que todos os boys reconheçam isso, afinal, se você não reconhece um problema, não precisa agir sobre ele e sua inação e inércia só fortalecem esse sistema que denunciamos diariamente. E veja, nem sou eu que estou generalizando gratuitamente, a sociologia já constatou isso diversas vezes (oi, Bourdieu, Elias, Beauvoir, Butler…): pessoas integrantes de um grupo dominante irão agir, conscientemente ou não, para se manter em determinada posição social e, apesar de essas serem as pessoas que mais teriam poder para agir nos problemas que elas causam ou se beneficiam de, também são as menos inclinadas a agir. Ou seja, antes de partir para o “nem todo homem”, lembre-se que “SEMPRE UM HOMEM”*, o que significa que a menos que cada cara reconheça seu papel na luta por um mundo menos machista, será muito difícil que paremos de reclamar ou que publicações como Boy Dodói não sejam mais necessárias (bom, a Mina de HQ nem precisaria se os boys não fossem tão dodóis).
Por fim, leia Boy Dodói e empreste, recomende a todas as pessoas que você conhece. Um trabalho de utilidade pública que deveria estar nas escolas e nos consultórios de psicologia e que eu espero que se torne mesmo uma enciclopédia como a quadrinista Triscila Oliveira profetizou. Aí, quem sabe, em vez de Boy dodói, possamos falar sobre os boys curados.
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Boy Dodói é uma coletânea criada e editada por Bebel Abreu (@bebelbooks) Carol Ito (@carolito.hq) e Helô D’Angelo (@helodangeloarte), com HQs de:
. Bruna Maia – Vingança Ragatanga
. Ale Kalko – Quem quer pão
. Carol Ito – Bunda e cérebro
. Tai – Tapão
. Helô D’Angelo – Peladão
. Lila Cruz – Pôr do sol
. Marília Marz – Só em off
. Bennê Oliveira – #paideinstagram
. Cecília Marins – Creme
. Vitorelo – Porra, cara!
. Luiza Lemos – Troféu lésbico
A coletânea BOY DODÓI parte de histórias reais enviadas por centenas de pessoas e convida à reflexão sobre comportamentos machistas, sobretudo em relações afetivas.
Afinal, o que é um Boy Dodói?
É o homem cis criado de forma doente pelo patriarcado, que reproduz atitudes ligadas à irresponsabilidade afetiva, falta de honestidade, manipulação, egocentrismo, ausência de noções básicas sobre como estar em uma relação sem ser um grande machista, entre outros comportamentos que causam sofrimento a quem se relaciona com ele.
A coletânea não inclui episódios que envolvem transtornos psiquiátricos, pois a ideia não é alimentar psicofobia, e sim tirar o conforto de caras otários com ironia, leveza e arte.
Daniela Marino é pesquisadora de quadrinhos e questões de gênero, graduada em letras, mestre em comunicação e doutoranda em ciência da informação.
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Dani Marino é especialista em histórias em quadrinhos e questões de gênero. Mestre em Comunicação e doutoranda em Ciência da Informação pela ECA/USP, também atua como professora de Literatura Inglesa. Ganhadora de 2 troféus HQMIX com o livro Mulheres e Quadrinhos, que organizou com Laluña Machado, já colaborou com diversos sites e canais especializados em cultura pop.