Os amores líquidos de Lena Finkle
O quadrinho “O Barril Mágico de Lena Finkle”, de Anya Ulinich, nos faz refletir sobre as bizarrices com as quais lidamos nos aplicativos de relacionamento
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O quadrinho “O Barril Mágico de Lena Finkle”, de Anya Ulinich, nos faz refletir sobre as bizarrices com as quais lidamos nos aplicativos de relacionamento
Recentemente li a HQ O Barril Mágico de Lena Finkle, de Anya Ulinich (Martins Fontes, 2020), e como tem ocorrido com muitos quadrinhos biográficos que tenho consumido, a história me tocou bastante e me proporcionou uma série de reflexões sobre muitas coisas. Embora se trate na verdade de uma autoficção, já que Lena é o nome da protagonista da HQ e nem todas as situações narradas são reais, os exageros em algumas representações só servem para nos aproximar ainda mais da personagem, principalmente diante de todas as bizarrices que ela tem que lidar quando resolve se envolver com homens variados em uma plataforma de relacionamentos.
Lena é uma imigrante russa nos EUA e, além de um sentimento platônico por um ex-namorado conterrâneo com quem romantiza uma relação, ela não tem muita experiência no amor. Por isso, ao seguir a sugestão de sua amiga, se cadastra em uma plataforma como o Tinder e se envolve com os tipos mais esquisitos que alguém poderia imaginar. É cômico, mas também é trágico, já que a realidade dos encontros online não é muito diferente da experiência vivida por ela. Porém, essa é apenas uma das inúmeras camadas que esse quadrinho traz. Por meio de um traço cartunesco, na maior parte das vezes em tom cômico e outras nem tanto, Lena nos apresenta à sua vida na Rússia sendo uma adolescente nos anos 1980, já rumo ao final da Guerra Fria que tinha começado há algumas décadas. Ela fala de sua paixão pela poesia e literatura russas e de como os homens de lá parecem mesmo ter saído dos textos que lia.
Já nos EUA, as comparações são inevitáveis e proporcionam muitas reflexões sobre ser imigrante em um país capitalista, ser mulher e mãe em um bairro de subúrbio onde todo mundo parece ter saído de algum filme indie. Mas a parte da HQ mais marcante para mim é mesmo quando ela se propõe a conhecer vários homens após o fim do seu segundo casamento, já com duas filhas adolescentes. Me vi muito em Lena e houve momentos que ela me fez lembrar Leda, protagonista do romance de Elena Ferrante quando se dá conta que estar no papel social de mãe 24h por dia pode ser sufocante. Ao mesmo tempo, vi todas as mulheres que conheço em diversos momentos, porque todas elas, hétero ou não, já passaram por alguma situação parecida com a de Lena ao longo da HQ, principalmente quando ela se envolve com o cara que é apresentado como “o órfão” e que representa vários estereótipos tão conhecidos pelas mulheres que é apenas revoltante observá-la se entregando cada vez mais a alguém que sabemos que irá machucá-la.
O órfão da narrativa remete aos personagens caricatos de Los Angeles na série YOU (Netflix). Embora o protagonista da série seja um psicopata odiável, as atuações estereotipadas das figuras típicas que encontramos em contextos tão hedonistas e fúteis nos fazem desejar que Joe os mate, porque eles são ainda mais odiáveis que um psicopata. Esse é o órfão, um clichê ambulante capaz de ilustrar o famoso livro de Zygmunt Bauman, Amor Liquido: sobre a fragilidade dos laços humanos (Zahar, 2004), tema também abordado na HQ A Rosa mais Vermelha Desabrocha, de Liv Stromqüist.
No entanto, se nos acostumamos com a ideia das relações líquidas de Bauman por elas terem se popularizado em alguns meios, não podemos dizer o mesmo sobre algumas outras implicações de nossas relações terem se tornado digitalmente mediadas quase que de forma majoritária a partir do início da pandemia do COVID-19. Essas implicações não se limitam aos relacionamentos amorosos ou sexuais, elas hoje atuam em todas as esferas sociais, mesmo se as pessoas não têm acesso a dispositivos digitais conectados, inclusive no trabalho – ou principalmente no trabalho.
Mas, pensando em Lena e nos relacionamentos amorosos, na disposição dos pretendentes nas plataformas como o Tinder como se estivessem em prateleiras de um açougue, não poderíamos dizer hoje que outras plataformas de redes sociais não funcionem da mesma forma. Do Facebook ao LinkedIn, passando pelo Tik Tok e Instagram, nós voluntariamente nos reduzimos a um amontoado de dados para que nossos perfis sejam atraentes o suficiente para chamar a atenção que buscamos e a fim de que isso nos garanta algum benefício: mais seguidores, uma proposta de emprego, a possibilidade de uma #publi, aproximação de um “crush”, ostentar algo “aos inimigos”.
Esse amontoado de dados que produzimos formam uma espécie de capa, um exoesqueleto a partir do qual as pessoas que conhecemos nos conhecem também. Couldry e Hepp, em seu livro A construção mediada da realidade (Unisinos, 2020) dizem que o nosso self é hoje também uma marca e nós vendemos essa marca, essa performance de nós mesmos por meio de imagens, publicações que nos tornam: profissionais competentes, amigos incríveis, pessoas apaixonantes. Ainda que seja possível que pessoas do nosso convívio mais íntimo neguem que nossos perfis são apenas representações do que gostaríamos que os outros pensassem sobre nós, raramente alguém o faz, porque ninguém quer ser visto como uma pessoa recalcada, invejosa. Então, acreditamos que esses dados que nos vestem dizem muito sobre quem somos, quando na verdade eles dizem mais sobre quem gostaríamos de ser para um determinado grupo de pessoas.
Nesse sentido, talvez as representações cômicas dos pretendentes de Lena Finkle em O Barril Mágico não sejam tão cômicas se pensarmos que em algum nível nós não estamos tão longe de nos parecer com eles. Ou seja, é possível fazer muitas leituras a partir de vários recortes nessa obra e esses foram os meus porque são questões que me atravessaram mais recentemente. Quais camadas desse quadrinho te atravessariam?
Daniela Marino é pesquisadora de quadrinhos e questões de gênero, graduada em letras, mestre em comunicação e doutoranda em ciência da informação.
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Dani Marino é especialista em histórias em quadrinhos e questões de gênero. Mestre em Comunicação e doutoranda em Ciência da Informação pela ECA/USP, também atua como professora de Literatura Inglesa. Ganhadora de 2 troféus HQMIX com o livro Mulheres e Quadrinhos, que organizou com Laluña Machado, já colaborou com diversos sites e canais especializados em cultura pop.