Tropo narrativo “Nasci Sexy Ontem”
A HQ “Lore Olympus” possibilita reflexões sobre como certos recursos narrativos nocivos podem ser utilizados para alertar contra violência sexual
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A HQ “Lore Olympus” possibilita reflexões sobre como certos recursos narrativos nocivos podem ser utilizados para alertar contra violência sexual
Tropos narrativos, como explica a especialista em narrativas Flávia Gasi (Garotas Geeks), são recursos que nos ajudam a entender a estrutura de uma determinada narrativa ou o papel de um certo personagem em uma história. Por exemplo, quando você assiste a um filme de detetive, espera que certos tropos do gênero como a busca por pistas apareçam. O mesmo ocorre nos romances, histórias de terror… E eles se diferenciam dos clichês porque enquanto eles proporcionam uma espécie de esqueleto para o desenvolvimento das tramas, os clichês pouco acrescentam às histórias e acabam caindo no lugar comum.
Ainda que os tropos possam ser usados em gêneros e mídias diferentes e facilitem bastante a vida dos escritores, alguns deles têm se tornando tão excessivos que acabam nos passando a sensação de um clichês e, consequentemente, são cansativos. Quando não se tornam cansativos, eles são datados demais ou acabam reproduzindo estereótipos e preconceitos que já não cabem mais nos dias de hoje.
Um desses tropos é o “Nasci sexy ontem” (Born Sexy Yesterday), utilizado à exaustão em filmes como O Quinto Elemento (Leeloo), Tron (Quorra), nos quadrinhos temos a Estelar e por aí vai. Nasci sexy ontem é aquela personagem geralmente jovem ou recém-criada que além de linda e sexy, é extremamente ingênua, precisa ser tutelada pelo protagonista masculino e sempre parece sexualmente disponível e muito grata a esse protagonista.
Em Lore Olympus (Editora Suma HQ), Rachel Smythe abusa do tropo ao apresentar uma Perséfone extremamente jovem, sexy e ingênua que, do alto dos seus 19 anos de idade, se apaixona por Hades, um deus de milhares de anos e regente do submundo. E, embora o uso excessivo desse tropo possa soar como um demérito para o quadrinho, na verdade acabou servindo de justificativa para abordar um tema bem mais delicado e profundo: estupro.
Com os devidos avisos de gatilhos na versão impressa, Lore Olympus tem sido publicado de forma digital e no Brasil chegou ao 3º volume. Uma verdadeira febre mundial, seus leitores garantiram que a série ganhasse não só prêmios como o Eisner, mas também tivesse uma grande repercussão bem positiva sobre a sensibilidade da roteirista ao tratar o estupro sofrido por Perséfone.
O que Rachel Smythe faz ao atualizar os mitos gregos (ela é folclorista) é trazer à tona algumas questões sobre o comportamento dos deuses que ao longo dos séculos foi bem naturalizado nas sociedades ocidentais. Grande parte desses mitos gerou as principais estruturas narrativas que conhecemos hoje, e também serviu de base para a criação de arquétipos de personalidades utilizadas na Psicologia, por exemplo.
Mas voltando à HQ, a história, extremamente ágil e muito agradável de ler, altera eventos ocorridos nos mitos originais para contemplar a perspectiva da autora, ou seja, enquanto no mito original Perséfone é sequestrada, chantageada por Hades para viver parte do ano no submundo, em Lore Olympus ela se apaixona por Hades e o verdadeiro vilão é outro.
Assim, apesar de uma certa agonia em observar Perséfone sendo extremamente sexualizada o tempo todo, é justamente sua ingenuidade que faz com que ela não e dê conta instantaneamente de que sofreu um estupro. Essa dúvida é tão comum entre vítimas de abusos sexuais que milhares de leitoras se manifestaram positivamente em agradecimento à autora.
A cineasta Marccela Moreno, ao dirigir o curta O mais barulhento silêncio, buscou ilustrar justamente essa percepção a respeito de como muitas vítimas entendem que sofreram uma violência e traz relatos pessoais de experiências que ela mesma viveu. Ela lembra que, de acordo com dados da ONU, 1 em cada 4 mulheres será estuprada na vida, enquanto 3 em cada 4 sofrerão algum tipo de violência sexual de gênero.
Ou seja, é fundamental que cada vez mais meninas e mulheres tenham acesso à informação para que entendam que a culpa por um estupro nunca é delas. Na HQ, além de Perséfone não se dar conta que havia sido estuprada, Apolo, o estuprador, não enxerga que tenha cometido tal ato e é uma falha genuína, ele realmente não entende que esse tipo de violência não implica apenas em uma penetração não consentida, mas que o consentimento não pode ser obtido mediante a algum tipo de coerção ou intimidação e que ele deve ser dado claramente e de forma ENTUSIASMADA. Qualquer gesto que não indique esse entusiasmo significa NÃO.
O tal do male gaze
Muito da culpa de Apolo não enxergar que estuprou Perséfone se deve a uma ideia bem problemática perpetuada não só pela pornografia, mas por todos os gêneros narrativos, de que “não significa talvez” e de que estupro é um ato sexual. Sexo demanda consentimento NECESSARIAMENTE. Qualquer coisa que não envolva consentimento claro é uma violência e está relacionada a uma performance de poder.
Homens cis, por sua vez, crescem acreditando que estupro é sobre sexo. Não à toa, essa noção permeia nossa cultura de tal forma (cultura do estupro) que homens como o jogador Robinho, condenado na Itália por estuprar uma mulher albanesa, segue sendo ovacionado por seus torcedores com frases como “não me importa o que ele fez fora dos campos, o que importa é seu desempenho no jogo”. Bom, o treinador Cuca, também envolvido em caso de estupro há algumas décadas, não fica sem emprego.
Esse fenômeno tem relação íntima com os quadrinhos e todas as outras produções da cultura pop, afinal, como qualquer esfera da produção humana, os quadrinhos também irão reproduzir tendências, valores e padrões sociais do meio onde estão inseridos e, sendo esse meio machista e majoritariamente articulado por homens cis hétero, não é de se espantar que a objetificação e hiperssexualização feminina sejam clichês.
Assim, não é possível dissociar essas situações do olhar masculino predador (Male Gaze) que nos avalia e nos julga no intuito de favorecer seu prazer visual. O texto A Political Use of Psychoanalysis, de Laura Mulvey, parte de uma análise psicanalítica de como o Male Gaze se tornou uma ferramenta política que estruturou, e segue estruturando, as narrativas cinematográficas, no entanto, suas considerações têm sido observadas em outros campos da produção artística como na literatura e animação, por exemplo, e esse conceito se popularizou no Brasil nos últimos anos graças à atuação de mulheres em canais sobre cultura pop como o Garotas Geeks, Delirium Nerd e o Mimimídias.
Ao refletir sobre o cinema, Mulvey acredita que ele possibilita questões sobre como o inconsciente estrutura as formas de ver e o prazer de olhar e o cinema mainstream sempre foi estruturado de maneira privilegiar e reforçar uma ideologia dominante, ou seja, o olhar que guia as câmeras é um olhar que reforça a percepção desse grupo dominante sobre os grupos minorizados, o que para a autora, consiste em uma habilidosa manipulação do prazer visual codificado de forma erótica na linguagem patriarcal.
Entre as várias possibilidades de prazer que o cinema oferece, o voyerismo (prazer de observar e ser observado) talvez seja o que mais se destaque e, ao ser transposto para uma mídia tão imersiva e cuja linguagem é pautada em erotismo, é possível observar uma certa tendência à escopofilia, ou seja, o ato de tomar pessoas como objetos (objetificação). Embora o conceito freudiano tenha sido desenvolvido pelo psicanalista a partir de sua observação de crianças, Mulvey alerta que em sua forma mais extrema, a escopofilia está relacionada à obtenção de prazer sexual por meio da observação e de um senso de controle ativo e objetificador sobre o outro, ou seja, o Male gaze pode ser compreendido no sentido do poder de quem olha e do desapossamento de quem é olhado. E um dos melhores conteúdos sobre esse assunto é esse vídeo da Clara Matheus para o Mimimídias.
Esse olhar predador, embora historicamente reproduzido por autores do sexo masculino, acaba estruturando narrativas produzidas por pessoas de outros gêneros, no entanto, nessa novela grega, a autora parece ter se valido desse recurso como uma forma de criticá-lo ou de para justificar a falta de noção de mundo da Perséfone.
Bom, há inúmeras resenhas celebrando Lore Olympus e não faria sentido que fizéssemos apenas mais uma, afinal, se há alguma chance de refletirmos sobre temas que nos são tão caros, por que não fazer isso com o auxílio de uma HQ? Nesse caso, Rachel Smythe foi muito feliz em trazer um assunto delicado de forma muito sensível em uma narrativa dinâmica e divertida que nos prende do início ao fim. Apesar da densidade desse tema em específico, não se trata de uma HQ sobre violência, mas sobre desejo, descoberta da sexualidade, intrigas e todos os outros clichês que tornam a vida dos deuses gregos sempre tão interessante.
Daniela Marino é pesquisadora de quadrinhos e questões de gênero, graduada em letras, mestre em comunicação e doutoranda em ciência da informação.
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Dani Marino é especialista em histórias em quadrinhos e questões de gênero. Mestre em Comunicação e doutoranda em Ciência da Informação pela ECA/USP, também atua como professora de Literatura Inglesa. Ganhadora de 2 troféus HQMIX com o livro Mulheres e Quadrinhos, que organizou com Laluña Machado, já colaborou com diversos sites e canais especializados em cultura pop.