HQs nos ajudam a entender o outro
Quadrinhos são excelente aliados na produção de um conhecimento que promova a empatia e a escuta atenta de vozes diversas
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Quadrinhos são excelente aliados na produção de um conhecimento que promova a empatia e a escuta atenta de vozes diversas
Quadrinhos são excelente aliados na produção de um conhecimento que promova a empatia e a escuta atenta de vozes diversas.
Há algum tempo pesquisando gênero e feminismo, noto que por mais que eu fale, explique, desenhe, há sempre um grupo de pessoas que não consegue entender exatamente o que eu digo. Nas redes sociais, especialmente no Twitter, é evidente a dificuldade de as pessoas lerem atentamente o que alguém diz, assimilar o que é dito, refletir criticamente sobre o assunto e só então, responderem de acordo. Isso porque as redes são movidas a afetos e isso nos leva frequentemente a agir de forma passional.
Mas para além de toda impulsividade estimulada pelas redes, percebo que quando alguns homens cis héteros buscam agir de forma mais inclusiva a passam a consumir mais produções de mulheres, isso não resulta necessariamente em uma capacidade de compreensão do que leem. E não é algo que tenha a ver com a capacidade cognitiva de alguém, mas com a falta de repertório e de vivência dessa pessoa no convívio com a diversidade.
HQ Afeto – De Natália Sierpinski e Vivi Melancia
Como assim? Eu falei sobre a crítica de quadrinhos aqui, lembra? Mencionei que mesmo quando alguns homens de fato leram as obras da Liv Stromqüist e elogiaram o que leram, isso não significou que foram capazes de absorver o que foi dito, os levando a incorrer em uma série de discursos preconceituosos e de senso comum.
No texto sobre crítica, fica claro que embora muitos críticos estejam lendo obras produzidas por mulheres, suas percepções seguem recheadas de preconceitos. Por isso acontece? Você se lembra quando aprendeu a ler e a professora frequentemente pedia que alunos lessem textos em voz alta para a sala? Você compreendia imediatamente o que lia? Certamente, não. E aquele livro que você leu na adolescência que, ao reler na vida adulta, te afetou de maneira completamente diferente? Isso ocorre porque sua compreensão das coisas é ampliada à medida que você adquire repertório sobre o mundo.
Não só isso: uma das funções da crítica de quadrinhos (ou de qualquer outra produção) não é a de estabelecer um juízo de valor sobre as obras, mas de colocar em crise as certezas e os conhecimentos prévios que seu leitores tenham. Ao propor imagens e discursos que fogem do padrão que estamos mais acostumados a consumir, somos levados a questionar o porquê de nos sentirmos incomodados com algumas representações. Esse incômodo, se não for tensionado, “cutucado”, gera análises do tipo “esse quadrinhos é muito ruim” e o que se busca então, é que o leitor se questione a respeito disso e articule seu pensamento a partir desse desconforto. É assim que construímos novas perspectivas e chaves de leitura das obras e do mundo.
Agora imagina se durante sua vida toda, se durante séculos, tudo que você aprendeu sobre o mundo foi a partir de uma única perspectiva? Tudo que você aprendeu sobre pessoas diferentes de você não foi a partir da voz dessas pessoas, mas a partir da voz de alguém que as observava sempre pela mesma janela? Perspectiva, repertório, vivência, são janelas através das quais nós enxergamos o mundo. Se tudo que temos ao longo de nossa vida é uma única janela, temos uma visão muito limitada dos fatos, não é mesmo? Por isso, gostaria de fazer uma pausa aqui e pedir que assista a esse vídeo curtinho sobre o perigo de uma história única, da Chimamanda Adichie. Ainda tenho muita coisa para dizer, então, respire e depois retorne ao texto em seguida.
Bom, até aqui você deve ter entendido então que a chave para a empatia e para a compreensão do que o outro quer dizer, passa, necessariamente, pelo convívio constante com a diversidade de vozes às quais somos expostos ao longo da vida, certo? Caso ainda não tenha entendido, sugiro que procure o filme À primeira vista (1999), dirigido por Irwin Winkler, com Mira Sorvino e Val Kilmer. Inspirado em uma história real contada pelo neurologista Oliver Sacks, o filme narra a trajetória de um massoterapeuta que ficou cego ainda bebê e, que ao se apaixonar por uma cliente, é incentivado por ela a realizar um procedimento que o faria enxergar novamente. O resultado é frustrante e o leva à depressão, porque ver não é o mesmo que enxergar, e Virgil (Kilmer) não tinha repertório para entender o que via, ele não tinha nenhuma referência para nomear o mundo à sua volta.
Nos quadrinhos, assim como ocorre em todas as esferas da produção humana, as obras mais privilegiadas em premiações e críticas ao longo da história, sempre foram as de homens cis. Isso já sabemos há bastante tempo. Mas ok, um cara começa a se policiar e passa a ler mais quadrinhos produzidos por mulheres, lê tudo que a Mina de HQ indica, porém, ele já tem uns 30 anos, passou a vida toda sendo educado dentro de uma cultura que nos enxerga como inferiores, menos interessantes, histéricas, fracas. Ele lê uma HQ produzida por mulheres por semana, se dedica uma hora a isso. O resto da semana, ou seja, as outras 167 horas, ele trabalha em um escritório onde todos os chefes são homens, ele vai à academia onde as mulheres são vistas apenas como objetos a serem admirados, ele participa de grupos no Whatsapp onde todos os homens compartilham nudes não autorizados de suas ex, sempre com comentários pejorativos… Você está entendendo onde quero chegar?
Arte de Luiza Lemos e Alice Pereira
Apesar de estarmos falando do machismo estrutural aqui, isso não é justificativa para inércia, afinal, se usamos a desculpa de que algo é estrutural na tentativa de eximir pessoas da culpa por suas ações nocivas, nós não avançamos e não agimos em prol de uma solução. E há solução.
Então, quando alegamos que o machismo estrutural permeia nossa sociedade a tal ponto que até mesmo as mulheres irão reproduzi-lo, isso significa apenas que a mudança desse sistema não virá naturalmente. Um exemplo disso é a universidade na Holanda que durante 18 meses contratou apenas mulheres. Isso porque, após estudo detalhado sobre entrevistas e práticas de contratação envolvendo homens e mulheres responsáveis pelo recrutamento de novos funcionários, foi constatado que mesmo as mulheres tendiam a contratar mais homens, apesar de mulheres possuírem currículo tão bom quanto os deles (devido ao machismo estrutural), assim, o meio encontrado para reverter o problema foi apelar às cotas de gênero e contratar apenas mulheres.
As cotas de gênero, assim como as raciais, não visam contemplar pessoas incompetentes apenas pela sua cor ou gênero. É justamente o oposto disso: homens incompetentes já ocupam cargos de liderança desde sempre (tá aí o Bolsonaro que não me deixa mentir). Então, o que se busca é privilegiar pessoas competentes APESAR de sua cor e gênero serem consideradas menos adequadas dentro da nossa cultura racista e misógina.
Vamos às soluções?
A ong sueca The Ink Link reúne cientistas de diversas áreas e de várias partes do mundo que se dedicam a transmitir conhecimentos científicos de maneira acessível por meio dos quadrinhos. Para isso, o grupo dispõe de um banco de quadrinistas e muitos deles são também cientistas. O pessoal do The Ink Link então é contratado por outras ongs ou governos para realizar uma atividade, workshop ou para produzir alguma peça publicitária, institucional ou informativa em quadrinhos.
Em uma de suas primeiras atividades, os pesquisadores foram convidados a produzir uma HQ para uma campanha de vacinação na região que faz divisa entre o Suriname e a Guiana Francesa. Região de aldeias situadas em florestas, com pouco acesso a vários recursos. Pois bem, o pessoal do The Ink Link produziu uma HQ com super-heróis, relacionando a vacina com superpoderes e o resultado foi que a campanha não teve adesão alguma. Isso porque os nativos não tinham nenhuma referência da iconografia de super-heróis, ou seja, aquela HQ não teve nenhum apelo entre eles.
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A solução, nesse caso, foi convidar uma artista local, conversar com os habitantes da região sobre seus medos, sua cultura e aí, em conjunto com as comunidades, pesquisadores produziram uma HQ que fazia alusão aos elementos locais, como a floresta e sua fauna. O resultado dessa vez foi positivo.
A partir dessa experiência, foi constatado que pessoas de regiões diferentes possuíam repertórios muito diferentes e não acessavam novas informações de imediato porque não tinham meios de interpretar o que viam. Por exemplo, ao conhecerem ilheús e pescadores sem acesso à TV ou outros meios de comunicação com o mundo exterior, perceberam que os nativos de ilhas com topografia plana não entendiam desenho de perspectiva nas HQs onde alguém era colocado em um plano mais alto.
Assim, toda vez que os pesquisadores do The Ink Link são convidados a atuar em uma comunidade, eles aplicam um jogo que criaram especialmente para compreender o quanto as pessoas conhecem certos símbolos e recursos, para que a partir do conhecimento delas, possam desenvolver uma atividade ou um quadrinho que dialogue com suas realidades. O jogo é seguido de atividades para o desenvolvimento de novo repertório, como brincadeiras e bate-papos.
As propostas apresentadas pelo The Ink Link ilustram muito bem uma metodologia de produção de conhecimento chamada PHC – Produção Horizontal do conhecimento – que pode facilmente ser aplicada aos quadrinhos. A PHC É uma proposta para uma investigação que dialoga com as diversas formas de entender o mundo:
“Assumir que os envolvidos nos problemas também possuem soluções nos leva a equilibrar as formas de escutar, responder e enfrentar no diálogo os problemas que ameaçam a vida social”.
Diversos, mas um ponto de partida para o início da discussão pode ser sua etimologia, que se refere à interação de dois ou mais logos em oposição. Investigar, então, significa promover o encontro com o outro para alternar olhares e proporcionar uma visão mais abrangente de ambas as culturas.
“Partimos do pressuposto de que o conhecimento dos especialistas da academia não é o único, nem sempre é o mais pertinente. Defendemos uma correspondência entre o seu conhecimento e o de todas as pessoas. Por isso, vale a pena dedicar algumas palavras ao que entendemos por “respostas dialógicas” aos problemas sociais.”
Os estudos pós-coloniais mais recentes propiciaram que a questão da colonialidade pudesse ser enxergada como uma marca persistente da modernidade. De acordo com Berkin (2020, p.18), o estudo dos movimentos sociais de grupos subalternos e que não haviam sido considerados em sua própria dimensão nas ciências com critérios científicos (ccc) gerou um pensamento sobre duas modernidades: a dos subalternos e a colonial, de onde surgiram novas maneiras de aproximação dos arquivos a fim de se descobrir seus prejuízos, seus silêncios ao mesmo tempo que se resgatam outras fontes da história e da ação política.
Slide que apresentei no III colóquio de cultura pop em 2021
PHC propõe uma forma de investigação que considera vozes diversas na produção de novos conhecimentos por meio do diálogo com o outro a fim de formular novas aproximações ente o conhecimento e as perguntas sociais que dizem respeito a todos nós.
Ou seja, para sermos capazes de entender o que o outro diz, devemos construir conhecimentos de forma conjunta. Esse é certamente o papel da educação básica, muito falha nesse sentido, já que não temos educação de gênero ou racial nas escolas. Os quadrinhos também são aliados na construção desse conhecimento, mas para que seu conteúdo seja apreendido adequadamente por aqueles que não costumam conviver com a diversidade de vozes, é preciso apostar em rodas de conversa, clubes de leitura, encontros com autores diversos em painéis nos eventos e feiras de quadrinhos.
Quem participa do clube de leitura da Mina de HQ (todes são bem-vindes e atualmente há homens, mulheres e pessoas não-binárias frequentando) certamente percebem uma vantagem em relação às pessoas que não se aventuram em outros universos. Você já pensou nas atitudes que pode tomar para se tornar uma pessoa mais empática e capaz de escutar atentamente o que o outro diz?
Referências
BERKIN, Sarah Corona. Producción horizontal del conocimiento. Bielefeld University Press, Alemanha, 2020.
HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, n. 5, p. 7-41, 1995.
HERMANN, Nadja. A questão do outro e o diálogo. Revista Brasileira de Educação, v. 19 n. 57, p. 477-493, abr.-jun. 2014
Daniela Marino é pesquisadora de quadrinhos e questões de gênero, graduada em letras, mestre em comunicação e doutoranda em ciência da informação.
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Dani Marino é especialista em histórias em quadrinhos e questões de gênero. Mestre em Comunicação e doutoranda em Ciência da Informação pela ECA/USP, também atua como professora de Literatura Inglesa. Ganhadora de 2 troféus HQMIX com o livro Mulheres e Quadrinhos, que organizou com Laluña Machado, já colaborou com diversos sites e canais especializados em cultura pop.